Menina não entra

A sociedade portuguesa é muito rica em mitos que são alimentados há vários anos como sendo verdades absolutas, provadas e por isso incontestáveis. Boa parte desses mitos radica nos hábitos da nossa vida em sociedade há muitas décadas, mas curiosamente continua a valer nos dias de hoje sem que quase ninguém questione se é mesmo assim. O mais absurdo e divertido desses mitos é o de que as mulheres conduzem mal e muito pior que os homens. O que é falso.

As pessoas conduzem mal em geral, de forma irresponsável e desrespeitosa para com os outros condutores, com uma condução agressiva e a roçar muitas vezes o limite do comportamento suicida. Infelizmente a questão de género não tem qualquer relevância. Há péssimos condutores de todos os géneros e feitios e até o mais educado cidadão se transforma numa besta ao volante. E nem é preciso grande coisa, basta que alguém tente entrar numa fila já formada que aparecem logo as buzinadelas furiosas e os apertos no já exíguo espaço disponível. Mas as mulheres nem conduzem pior nem diferem dos homens, começaram foi mais tarde.

Era eu miúdo e lembro-me bem de ver a organização familiar que fluía natural e sem sobressaltos, por exemplo ao fim de semana. Ao sábado de manhã, enquanto as mulheres ficavam na lida da casa, os homens saíam alegremente e bem cedo para lavarem o carro na rua, à "mangueirada" ou à "baldada", à porta de casa e em conjunto. A coisa acabava no café com uma leitura rápida do jornal e com uma discussão sem fim sobre as últimas incidências do futebol. Carros, café e futebol era com eles. Casa e filhos era com elas. 


No dia seguinte, ao domingo, as famílias saíam de casa para almoçar fora. Lá iam nos seus belos carrinhos, o pai a conduzir, a mãe ao lado e os filhos atrás. Se por acaso se juntavam dois casais, os homens seguiam na frente e as mulheres atrás. Se por acaso se invertiam os papéis na condução, e o homem cedia à mulher a primazia ao volante, a coisa era logo motivo para escândalo e falatório. O pobre homem ficava logo com o rótulo na testa, ou era pau mandado e fazia o que a mulher, que não era boa de assoar, lhe mandava, ou não era bom da cabeça ou então era um totó, e como conduzia mal a mulher preferia assumir a tarefa do que deixar o volante nas mãos daquele irresponsável ou daquele aselha. As sentenças populares são muito rápidas, assertivas e cheias de certezas absolutas nunca comprovadas.

Num país habituado a levar em conta o que dizem os outros, a maior parte dos homens, sempre ciosos do seu "poder masculino" - mas quem é que manda aqui em casa? - raramente cedia às mulheres a condução dos veículos. Foi preciso esperar muitos anos até que fosse natural ver mulheres a conduzirem sozinhas ou a conduzirem os maridos. Parece mentira mas foi mesmo assim.

Também era raro ver um homem em tarefas domésticas. Aspirar? Limpar o pó? Lavar a loiça? Isso eram as tarefas das esposas porque os maridos tinham mais que fazer. Carros, futebol e café, claro. Ainda me lembro de ver o ar admirado de alguns amigos da família por verem o meu pai de avental a cozinhar ou a lavar a loiça - na verdade só fazia a primeira com prazer -, ou de alguns vizinhos ao vê-lo passar na rua com o caixote do lixo na mão. Acreditem, houve uma altura em que nada disto era visto com naturalidade, e uma ida ao lixo era aproveitada pelas mulheres mais absorvidas na lida da casa para arejarem um bocado e soltarem as línguas. Eram as redes sociais da altura. Vínhamos de décadas de opressão feminina, de direitos negados e desejos reprimidos, onde se glorificava a dona de casa prendada, mãe extremosa e esposa fiel e dedicada, que estava em casa na maior parte do tempo.

Voltemos aos mitos. Há outro que é alimentado há anos. De que os lugares mais altos de chefia são maioritariamente ocupados por homens porque eles são mais capazes. Falso. Mas uma vez mais temos de voltar ao passado recente para encontrar justificações. Boa parte da geração mais velha que ainda hoje tem altos cargos de chefia em Portugal é do tempo em que a primazia nos estudos era dada aos filhos varões. As mulheres estudavam e tinham ambições, mas a maioria era olhada como um bom partido para casar, uma mãe perfeita para os filhos ou para ocupar cargos subalternos, habitualmente de secretariado. As que insistiam em contrariar esta tendência tinham de sobreviver num mundo dominado por homens, com todos os limites, e porque não dizer, perigos que isso encerra. Muitas conseguiram, mas poucas se tomarmos em conta o universo nacional, insuficientes para garantirem uma real paridade.

A condição feminina menorizou as mulheres durante muito tempo - e nem vou aos anos em que não podiam votar ou ausentar-se do país sem autorização do marido - e a verdade é que muito poucas de gerações mais velhas conseguiram resistir às pressões e à violência psicológica de competirem num mundo de homens. 

Sempre fui contra as quotas porque acho que colocam o problema ao contrário, considero que a regra deve ser escolher os mais competentes que apresentem provas de melhor preparação para os cargos. E agora escandalizem-se, mas acredito que boa parte da culpa de ainda hoje haver uma participação tão reduzida de mulheres nos cargos mais elevados da Nação radica em boa parte no comportamento das próprias mulheres em geral. Todos sabemos que - e em questões de comportamento e fenómenos grupais acho que há um pensar masculino e um pensar feminino - os homens se protegem uns aos outros na maior parte das situações. Eu costumo brincar e dizer que se a esposa de algum dos meus melhores amigos me ligar a perguntar se vi o marido na noite anterior sou tipo para lhe dizer que acabou por dormir lá em casa por ser tão tarde, mesmo que já não o veja há semanas. E se ela duvidar pergunto-lhe se quer que a minha mulher vá acordá-lo para vir ao telefone. 

Ora o comportamento das mulheres é na maior parte das vezes o contrário. De competição e quase nunca de protecção. Se um homem escolher uma equipa de trabalho tendencialmente vai buscar homens e, infelizmente na maior parte das vezes, preferencialmente amigos, passando muitas vezes por cima de critérios como a competência e a habilitação para o cargo. É mau mas é o que vemos com regularidade apesar de haver cada vez mais excepções. Uma mulher fará o mesmo, vai buscar mais homens. Porque desconfia das outras mulheres e porque há um lado feminino de competição permanente com as outras mulheres que acaba por prejudicar o género.

São tendências gerais, que são muitas vezes contrariadas, e que observo no meu dia a dia. Estou errado? Talvez, mas são argumentos que ouço todos os dias da boca das próprias.

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