O perigo de generalizar

António Barreto é culto, inteligente, pensa e analisa, lê mais do que a maioria das pessoas e escreve menos do que a maior parte dos comentadores, mas anda nisto há muitos anos, escreveu em vários jornais e pelo menos nesse ponto nunca lhe ouvimos nenhuma queixa sobre a falta de pluralismo. Provavelmente achará que o pluralismo não se aplica a si próprio, e por isso não faz mal que seja um dos comentadores mais antigos no activo. Eu acho que é por ser bom no que faz, mas ele não admite isso em relação aos outros comentadores a quem se refere de forma genérica.

António Barreto é frontal e directo nas críticas que faz, e alimenta desde sempre uma aura de quem está acima dos mortais porque tem uma ética e um carácter impolutos e à prova de bala. Desconfio sempre destes paladinos da verdade absoluta que se acham melhores que a maioria, embora lhes dê o benefício da dúvida enquanto não lhes encontro os pecadilhos que possam comprometer esta imagem que fazem e alimentam de si próprios.

Na certeza de que mais dia menos dia acabam por cair no reino dos mortais pecadores, talvez porque o sejam, e lá se vai a aura. Tal como Pacheco Pereira, António Barreto é muitas vezes brilhante, mas também leviano nas análises, mas apenas quando generaliza, quando não contextualiza e não se dá ao trabalho de saber o porquê de algumas das coisas que escreve. As coisas acontecem por uma razão, e até podem acontecer por razões com as quais não concordamos, mas devemos também tentar compreendê-las.

É estranho que, tal como Pacheco Pereira, António Barreto seja um intelectual que consegue traçar um perfil da sociedade portuguesa nas últimas décadas, mas não consegue fazê-lo no mesmo grau de profundidade e seriedade quando fala de jornalistas. Ah, são todos iguais!

Num artigo recente, e viral como se diz nos dias de hoje, Barreto coloca no mesmo pacote todas as estações de televisão, no que aos serviços de notícias diz respeito, sem fazer a distinção óbvia que existe entre alguns deles. Não é o momento nem o espaço certo para o fazer, mas não será difícil admitir que os serviços de notícias divergem de canal para canal e que em todos eles vamos encontrar pecados semelhantes mas também elementos distintivos óbvios e fáceis de identificar, assim se queira.

Diz que nas redacções a banalidade reina, que o lugar-comum impera, que a linguagem é automática e que a preguiça é virtude, sem dar um único exemplo. Generaliza como é próprio de quem recusa assumir o confronto, para assim não ter de justificar coisa nenhuma. É verdade que na mesma redacção encontramos tudo isto e o seu contrário. Tudo isto existe em todas e falta em todas. Cabe a quem dirige não só não alimentar estes comportamentos como combatê-los. Pedia-se a António Barreto que ilustrasse a prosa de exemplos para percebermos do que está a falar de facto. Ou de quem.

É verdade que o tempo, exagerado, de duração dos serviços de notícias se justifica também por uma questão de conter custos. É verdade que há uma aposta exagerada nos "directos excitantes sem excitação" e que há mais directos do que devia haver, e que em alguns casos não se deviam fazer - principalmente os que são feitos no meio de hordas de adeptos de futebol que engolem o repórter antes dos primeiros 5 segundos e acabam por não conter praticamente nenhuma informação, a não ser que todos os clubes têm adeptos alarves. Infelizmente fui obrigado a fazer muitos destes directos, e por isso sei do que falo.

Atalhando, é falso que exista um absoluto desprezo por tudo o que é estrangeiro em todos os serviços de notícias a não ser quando há atentados. Qualquer editor de Internacional poderá dizê-lo ou justificá-lo melhor do que eu, e também é falso que a Cultura não vá tendo o seu espaço, cada vez mais aliás. Até há um canal vocacionado e dirigido em especial para a divulgação cultural - a RTP 2 - coisa que Barreto omite de forma propositada para que não se estrague a argumentação de um artigo que deu tanto trabalho a construir. E a palavra é mesmo construir. E sim, também acontece Cultura nos espaços informativos do canal 2 e não apenas nesse. Menos do que devia? Claro, mas os canais também são o reflexo do país.

Ao dizer que quase não há comentadores isentos, teremos de responder que nenhum é isento, começando por ele, e que por isso o segredo é que sejam diversificados e não apenas os mesmos ao longo de tantos anos como acontece com ele próprio, criando a ideia de que quase não há pensadores no país. Claro que há mas com menos influência para chegarem ao espaço mediático. Também não é verdade, é até ofensivo, que não existam especialistas competentes. Há, cada vez mais, e em todos os órgãos de comunicação social. Também existem os incompetentes e os vazios e vulgares, os que falam bem mas não dizem nada.

Parece-me encontrar, numa pequena frase perdida no meio da prosa a origem e justificação para este artigo, o início do incêndio verbal, o epicentro do abalo que se quer provocar: "um pequeno partido com menos de 10% comanda canais e serviços de notícias". Cá está, António Barreto constrói uma narrativa só para embrulhar esta mentira conveniente, ou apenas a sua verdade que tanto o incomoda. A de que um partido, que não cita, domina os serviços de notícias em Portugal.

É verdade que, até por força das limitações económicas, as redacções perderam alguma qualidade nos últimos anos, e é verdade que muitos dos erros e defeitos que são apontados no artigo em causa existem. São coisas que nos devem preocupar e que devemos debater até de forma diária e aprofundada. Vem aí um Congresso de Jornalistas onde tudo isto poderá ser dissecado de forma intensa. O que não é verdade é que a realidade descrita por António Barreto exista de forma impune e que seja a regra. Ainda existe critério, profissional, inteligente e culto. E o erro, a falha, a deficiência é debatida e criticada internamente. Tenta-se na maior parte das vezes que no dia seguinte seja melhor. Nem sempre se consegue, mas tenta-se.

António Barreto não sabe, ou finge que não sabe, que há milhões de portugueses a ver todos os dias os serviços noticiosos a que se refere e que eles não divergem muito do que se faz pelo mundo fora. São na maior parte projectos comerciais que se regem pelas regras do mercado e que precisam de ser viáveis financeiramente para garantirem a sobrevivência.

O serviço público, não apenas o português, vai perdendo espectadores e chega a ter audiências residuais devido às opções, digamos "menos estimulantes", que toma, embora também ao serviço público se apliquem muitos dos pecados que enumera no artigo desta semana.

O que Barreto parece não saber, ou não querer saber, é que muitos dos directos, aparentemente vazios de conteúdo, se justificam também por uma razão simples, é que nos tempos de hoje há uma pressão brutal na luta pela informação. Pela melhor? Não, pela mais rápida. O que dá menos tempo para preparar, planear e estudar as matérias, e potencia o erro. É o mais correcto? Claro que não. Mas são os tempos modernos, que já não se compadecem com demoras. Infelizmente para todos nós.

Devemos compreender e criticar, obviamente, mas evitando as perigosas generalizações como as que António Barreto faz no tal artigo, viral, mas pouco rigoroso em relação à realidade. Uma falta de respeito para todos os que, todos os dias, lutam por uma informação rigorosa, isenta, independente, séria, corajosa e objectiva.

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