Catalunha: na prisão com o "preso" que ninguém conhece

Amat parece um pião a girar, corre de um lado para o outro. É traquinas. Tem um olhar travesso e cabelos finos que esvoaçam sem rumo, ao sabor dos movimentos, irrequietos, imprevisíveis.

Na sala de espera da prisão de Lledoners já todos o conhecem, apesar de poucos se conhecerem entre si. Domingo sim, Domingo sim, partilham olhares, silêncios, angústias, sem trocar palavra. Rostos anónimos, inexpressivos, que fixam os ponteiros do relógio ao ritmo dos segundos, até poder tocar no vidro e olhar para além dele. Exceção para Amat Cuixart. Todos sabem quem é, aos ternos e tenros 18 meses de vida. ”É o filho do preso político”, dizem uns. “É o filho do radical separatista”, sussurram outros.

Às duas e meia da tarde o sol é impiedoso. Estamos a 30 de setembro, mas o verão quer enganar o calendário e continua a andar pela Catalunha. Lledoners fica a 75 quilómetros de Barcelona. Não precisamos de GPS, nem sinalização, nos últimos 500/600 metros. Basta seguir os laços amarelos pintados no alcatrão, a tiras de plástico, atadas aos postes, às árvores, aos separadores da estrada. À medida que nos aproximamos surgem as frases, os apelos escritos que quase tocam a entrada: “Libertat”, “Presos Politicos”, “Shame on Europe”.

A visita da RTP está combinada há duas semanas. A entrevista foi enviada para um advogado, respondida, por escrito, pelo detido. A data é simbólica. É véspera do 1 de outubro, o primeiro aniversário do referendo sobre a independência da Catalunha. Uma consulta popular considerada ilegal pelo então Governo de Mariano Rajoy e pela Justiça de Espanha, que culminou em imagens de urnas de plástico, votações em massa e cargas policiais. Desde esse dia, os acontecimentos sucederam-se em catadupa, entre eles, está a detenção de 9 políticos catalães, de um total de 13 acusados de rebelião. O julgamento ainda não tem data marcada, alguns estão privados de liberdade há quase um ano.

A câmara de televisão não pode entrar. O meu colega, repórter de imagem, fica no exterior dos muros do estabelecimento prisional de Lledoners, por onde entram as viaturas. Só eu subo, a pé, uma rampa ingreme até à entrada do edifício. A fila é grande. Há mais de 20 pessoas à espera para passar no primeiro ponto de controlo, o primeiro detetor de metais. Antes, temos de deixar tudo num cacifo. Tudo. A carteira, o telemóvel, o papel e a caneta. Não passa nada, para além de um documento que nos identifique e a chave do cacifo que acabámos de fechar.

Na sala de espera estão agora cerca de 40 pessoas. Enquanto algumas entregam a identificação, outras, sentadas, olham para o chão ou para o vazio. Já é rotina estar ali ao domingo, às três da tarde. Todos têm algo em comum, um familiar, um amigo detido, mas de resto nada os une, nada partilham, muito menos um sorriso ou uma palavra.

Um sempre em pé, pequenino, saltitão, prende-me o olhar. Primeiro porque é um bebé encantador, depois porque reconheço a mão que o orienta, por entre rostos desconhecidos, sisudos. É Txell Bonet, a mulher de Jordi Cuixart, o presidente da associação independentista Òmnium Cultural, detido desde 16 de outubro do ano passado.

Vou encontrar-me com Raul Romeva, o conselheiro de Exteriores, uma espécie de Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Carles Puigdemont. Meto conversa com Txell, diz-me que muito possivelmente vou ver o companheiro, nos compartimentos das visitas. Eu vou para o 27, ela para o 28. Tem 43 anos, é jornalista e mulher de Cuixart desde 2016. Engravidou pouco depois de começarem a relação. Há um ano que, todas as semanas, se faz à estrada “para que o filho saiba quem é o pai”. Durante 9 meses eram mais de 600 quilómetros para um lado e outros tantos para o outro. Os 9 políticos, 7 homens e 2 mulheres, só foram transferidos para prisões catalãs em julho, depois de Pedro Sánchez chegar à Presidência do Governo. Até lá, estiveram em cadeias nos arredores de Madrid, apesar dos pedidos dos advogados e dos familiares para os aproximarem de casa. Antes de fazer um ano de vida, Amat já tinha percorrido 34.000 quilómetros, ao colo da mãe, para “não perder o contacto com o pai”. “Nunca tiveram em consideração os interesses do menor, foi uma violação flagrante dos direitos de um bebé: poder estar com o pai, sem ter de fazer mais de 1200 km todas as semanas”, assegura Txell, como já repetiu vezes sem conta, nos últimos meses, a todos os que com ela se cruzam.

Anunciam, através de colunas colocadas na sala de espera, que a visita vai começar. Amat está irrequieto. Há outras crianças, que também vêm ver familiares. Aqui há condenados desde tráfico de droga a branqueamento de capitais. Passamos por outro posto de controlo. Outro detetor de metais.

Raul Romeva espera-me numa pequena divisão de 2 metros quadrados, numa espécie de caixa de vidro. Encosta a mão naquele que nos separa, percebo que é a forma de cumprimento possível, também encosto a minha. Pega num auscultador de telefone, é assim que vamos falar. Do meu lado há um pequeno microfone e um altifalante. Conta-me como está, o que faz na prisão, reforça as respostas que deu por escrito. Assegura que “os presos são o cimento do processo independentista, tal como todos os que defendem os valores democráticos”, insiste que “não vai pedir indulto, admitir desobediência ou qualquer delito, porque não cometeu delito nenhum”. Romeva, tal como todos os outros, entende que “não é delito fazer um referendo, nem fazer uma declaração política no parlamento”. Conta-me que passa 16 horas fechado na cela e, nas restantes oito horas, faz ginástica, reúne-se com os outros seis antigos colegas de Governo e da causa independentista, no pátio da prisão. Já leu as biografias de Nelson Mandela, Martin Luther King. Devora filosofia, poesia, novelas… Antes de descer para a visita terminou “Cómo Hacer la Revolución: Instrucciones para Cambiar el Mundo”, de Srda Popovic.

Há momentos, em que me abstraio, em frente, costas com costas com Raul Romeva, noutra sala de “cristal” (em português: vidro), está Jordi Cuixart. Tem as mãos encostadas às mãos pequeninas do filho, mas não lhes sente o toque, nem o calor. O vidro não deixa. Sorri, gesticula, acena, faz brincadeiras. Amat sorri, estende os braços, sem entender a causa que, antes da paixão, uniu os pais, tal como os separou num processo que parece não ter fim.

Quando avisam que restam 5 minutos de visita, volto a olhar para além de Romeva. Começam as despedidas do lado de lá. Avanço com as últimas perguntas até o intercomunicador deixar de funcionar. Cortaram o som à hora certa. Foram 40 minutos. Nada mais que isso. 40 minutos, por semana, numa visita, 8 minutos ao telefone por dia.

Sei que na divisão de Cuixart não se falou de política. As mãos desprendem-se dos vidros. Ficam as marcas de transpiração, do beijo de Txell, de um último olhar.
À saída, ela confidencia-me, como se fosse segredo, que Jordi Cuixart nunca vai mostrar arrependimento ou assumir o quer que seja, “isso seria uma traição a todos aqueles que acreditaram e votaram neles”, diz. E “se isso significar uma pena de 30 anos de prisão”, pergunto eu. “Cá estaremos todas as semanas, para que ele o veja crescer”.

Vejo-a afastar-se, com Amat ao colo, apoiado na anca. Penso na reportagem que vou fazer sobre Romeva e naquilo que gostaria de contar. Este é apenas um relato cru de uma realidade que também existe e de uma vítima de uma “guerra” que não é dele, apesar de lhe correr no sangue e de já lhe ter marcado a vida. Amat é o décimo “preso” do processo independentista.

Madrid, 6 de outubro de 2018

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