O Homem, o homem e o seu fuzil

Se queres ver o melhor de um Homem, dá-lhe um Amor, uma Razão, Educação, Sabedoria. Se queres ver o pior de um homem dá-lhe uma facção, uma bala e um fuzil.

Nascemos Homens. O estatuto, límpido, tácito, é-nos tão fácil de adquirir quão difícil é morrermos Homens. Para morrermos Homens, não basta morrer.
É no viver do caminho, entre uma e a outra ponta do percurso, que temos mil oportunidades de perder o estatuto de uma vida Maiúscula, muitas menos de a conquistar.

Logo de princípio, com o nascimento, vem o kit de origem que define o corpo, o sexo, a cor.
O pai e a mãe. Com o pai e a mãe, o contexto: a terra e a casa nela. O muito, pouco ou nada para nos fazermos à vida. Talvez o clube, a cor da emoção, seguramente a nação, a religião.
E de repente, podemos nem ter a oportunidade de definirmos o caminho todo.
Alguém decide por nós. Sem direito a consulta ou argumento.

Do pouco que sei, foi o que aconteceu a Nani.
Não sei o nome verdadeiro nem saberei. Não faço sequer idéia por que raio me deu para fazer zoom exactamente àquela foto, naquela notícia, lida com o primeiro (milagroso) café da manhã. Mas fiz. Gelei. Acordei.
Nunca saberei se ele, que nasceu Homem, o foi ou seria até ao fim.
Pior: ele também não teve o direito de saber.
Não sei sequer se lhe coube palavra ou escolha no que o haveria de o fazer perder o direito de escolher o que quer que fosse: ser xiita.

Nani morreu.
A foto, crua, dura, conta-me no entanto muitas coisas, sem palavras:
De costas, era até parecido com o nosso. Se eu, de folga, vestisse a cor do desejo, até teria algumas semelhanças comigo. Se existisse hoje, como eu, quereria ter visto, como eu, o Alemanha-Portugal. Por estes dias, entre o pó da terra natal de Sadam, há-de ter pensado onde desencantaria em Tikrit o televisor onde haveria de ver o nosso Nani sacar improvisos brilhantes, quem sabe uma finta magistral e um golo, ou outro, uma vitória portuguesa.
Sim, ele gostava de bola. Do United. Do nosso Nani.
Haveria de querer ver o Mundial. De querer continuar a ver. A viver.
Não sei como reagiria à notícia do desmoronamento da primeira ronda. Se como tantos, passaria do frémito do entusiasmo ao horror escaldado a gelo. Ao degelo da emoção da bola. Do tudo ao nada. Se, a esta hora, ainda vestiria a camisola. Se descarregaria no Facebook (tendo-o…) os seus tiros de frustração servida e escrita a quente. Fuzilaria moderna. Ou tudo ou morte.
Se a má noticia do dia dele seria, como para tantos, a derrota pesada e penosa do nosso Nani e dos seus.
Não foi. A notícia que acompanha a foto, a menos ácida da sequência tornada pública por uma organização jihadista, foi para Nani a má notícia da vida. E o texto explica o resto: “Os jihadistas pretendem que os soldados executados eram desertores do exército iraquiano, mas a BBC está a informar que eram sim militares que se tinham rendido face ao rápido avanço das forças do ISIS.”
Eram 1700.
Um deles, se era mesmo soldado, além de xiita, morreu sem hipótese de combate vestido com o uniforme… De Nani.
Se queres ver o melhor de um Homem, dá-lhe um Amor, uma Razão, Educação, Sabedoria.
Se queres ver o pior de um homem dá-lhe uma facção, uma bala e um fuzil.

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