Filmar com a mão de Deus. Tarkovsky.

Há coincidências felizes. A obra integral de Andrei Tarkovsky é exibida, em Lisboa e no Porto, na mesma altura em que Alejandro G. Iñarritu se alcandorou a cineasta do momento com “O Renascido”, assumidamente inspirado nos filmes do realizador russo. Compare-se, então, um e o outro. Quanto mais não seja para perceber que não é Tarkovsky quem quer.

Em texto recente, no Expresso, José Tolentino Mendonça manifestava o desejo de que “por muitos séculos o cinema de Andrei Tarkovsky continue a encontrar olhos para o milagre que dá a ver”. Note-se a expressão “por muitos séculos”. Como se, por mais anos que passem, não fosse possível esperar o surgimento de cineastas de talento equiparável ao de Tarkovsky, de alguém capaz, portanto, de o fazer esquecer. É também o que me parece.
 
É certo que houve Dreyer e Bergman. E há Béla Tarr e Sokurov. Mas a obra de Tarkovsky, trinta anos após a sua morte, continua a ser a cidade no alto da colina, talvez a única que desafia o aforismo de que “tudo é vaidade e perecível!”, pronunciado por Teófanes, o Grego, em “Andrei Rublev”. Tarkovsky criou uma fortaleza inexpugnável, um longo poema onírico inscrito em oito filmes que nos dão a ver o essencial da condição humana.
 
Quando se estabelecem comparações entre “O Renascido”, de Iñarritu, e Tarkovsky – e elas são perceptíveis apenas à superfície –, vem de imediato à memória a oposição fundamental que o autor de “Stalker” dizia existir entre o seu cinema e a “cultura de massas dirigida ao ‘consumidor’, que fere a alma das pessoas, que ergue barreiras entre o homem e as suas questões existenciais, a consciência de si próprio como um ser espiritual”.
 
Crente, Andrei Tarkovsky percebeu cedo que não queria fazer um “cinema mercadoria”, mas sim dedicar-se de corpo e alma a uma obra espiritual de pendor contemplativo. Andrei Rublev, pintor de ícones religiosos do século XV, surge no filme de Tarkovsky como projeção do realizador, um alter ego que descobre que o seu trabalho, a sua arte, é a única arma de que dispõe contra a desordem do mundo e contra o seu próprio caos interior.
 
Tarkovsky tornou-se numa espécie de cordeiro de Deus entregue ao sacrifício de um cinema transcendente – é mítico o seu perfecionismo na rodagem de cada cena. “A arte é uma oração”, dizia. “Sou um homem a quem Deus permitiu ser um artista, podendo rezar de forma diferente da praticada pelos fiéis numa catedral. A arte é o reflexo num espelho do gesto do Criador, um dos momentos preciosos em que nos assemelhamos a Ele”.
 
A não perder, então, a exibição dos filmes de Tarkovsky, no Nimas, em Lisboa, e no Campo Alegre, no Porto. Em sala, onde eles devem ser vistos. Com o aliciante extra de haver três sessões comentadas, no Nimas. Este sábado, 19, Rui Chafes apresenta “Andrei Rublev”. No domingo, 20, Tolentino Mendonça fala sobre “Stalker”. E na quinta-feira, 24, Pedro Mexia comenta “Nostalgia”. Eterno Andrei, apóstolo de uma nova fé.

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