O elefante na sala

O Netflix cresce vertiginosamente, com riscos para a concorrência e consequências que se podem adivinhar.

A revista Economist publicou, na última semana, um interessante artigo sobre como o Netflix está a revolucionar o mundo da televisão. Esta empresa que começou, há vinte anos, como uma pequena loja de aluguer de vídeos, em Phoenix, no Arizona, entra hoje em 125 milhões de lares de 21 países do mundo, do Brasil à Alemanha, da Índia à Coreia do Sul. Dos grandes mercados, só não está na China. E já tem mais subscritores fora do que dentro dos EUA. “Narcos” ou “Stranger Things” são vistos em todo o mundo. Cada pessoa consome, em média, mais de duas horas diárias de Netflix. O serviço ocupa já um quinto de toda a capacidade de banda larga disponível no planeta e a sua ascensão tem sido acompanhada de um declínio do consumo de TV tradicional e da compra de bilhetes para o cinema.

A oferta do Netflix, este ano, vai superar a de qualquer outra cadeia de televisão. A empresa está a produzir mais do que qualquer estúdio em Hollywood. Este ano, o Netflix tem uma oferta de mais de 80 filmes, enquanto que a Warner Brothers, o maior estúdio de Hollywood, vai colocar nos cinemas apenas 23, e a Disney, o estúdio mais lucrativo, somente dez. O Netflix prevê gastar, este ano, 13 mil milhões de dólares na compra e produção de conteúdos, mais 4 mil milhões do que no ano passado. Só este excedente daria para pagar toda a programação anual da BBC. A euforia dos investidores com o sucesso do Netflix é tal que, apesar de ter uma dívida de 8,5 mil milhões de dólares e de ter assumido que vai ter de pedir crédito ainda “muitos anos” para sustentar o negócio, a empresa tem uma valorização acionista estratosférica. O seu valor de mercado, de cerca de 170 mil milhões de dólares, supera o da própria Disney.

A concorrência está nervosa, e os consumidores terão porventura razões também para estarem inquietos. Os grandes estúdios em Hollywood suspeitam que a Netflix está empenhada em ter o monopólio da TV global e em eliminar toda a concorrência à volta. Sentem-no já na algibeira, ao verem o êxito fulgurante da empresa a comer-lhes grande parte das receitas, e ainda a aumentar-lhes os custos de produção. Por isso estão a movimentar-se, tentando ganhar estrutura e escala que lhes permitam oferecer serviços de produção e distribuição online que possam rivalizar com o Netflix. Foi com esse intuito que a AT&T comprou a Time Warner, e o mesmo levou a Disney e a Comcast a entrarem numa luta pela compra da parte da 21st Century Fox que a família Murdoch se dispôs a vender.

Mas a Netflix será um osso duro de roer. A forma como a empresa utiliza os dados dos clientes para oferecer um serviço cada vez mais personalizado suscita, com certeza, questões de pluralismo e diversidade, mas tem-se revelado comercialmente muito proveitoso. A Netflix “vê” o que o subscritor faz, quais os conteúdos a que assiste e se estes lhe fixam a atenção ou não. Depois, com base nisso, organiza os clientes em “perfis de gosto” – cerca de dois mil –, e fornece diferentes pacotes a diferentes utilizadores, fazendo-lhes chegar também um sistema de recomendações. A lógica é oferecer sempre mais do mesmo, para não defraudar o gosto do cliente e reter-lhe a atenção e a assinatura. Essa análise algorítmica de perfis reduz também o risco dos novos investimentos na compra ou produção de conteúdos.

Se a Netflix provar, em definitivo, que não é apenas um “exército albanês”, como lhe chamaram, e se acabar por monopolizar a TV global, como acreditam muitos que apostaram muito dinheiro nisso, facilmente se imagina a concentração de poder que daí advirá. Desde logo, os serviços públicos que se cuidem, com a debandada de audiências para o Netflix. E quem não puder pagar o Netflix, o mais certo é passar a ter uma oferta alternativa muito mais reduzida. Nessa altura, talvez tenham de entrar os reguladores. Citado pela Economist, o diretor executivo da Netflix, Reed Hastings, não parece, para já, nada preocupado com a concorrência. Tira-lhe mais o sono saber como vai ser quando a Netflix se tornar a presença televisiva dominante no mundo. “O que aconteceu quando a Televisa tinha 80% do mercado no México? Qual era a relação com o governo e com a sociedade? Ou a Globo no Brasil? É isso que me preocupa”, diz Hastings. Pois essa é a questão.

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