"E porquê, filha? Porque me apaixonei pelo som, mamã"

Esta semana comemora-se o Dia do Autor Português. A Sociedade Portuguesa de Autores convida-nos a celebrar aquelas pessoas que abdicam de tudo. Para fazerem do mundo um lugar verdadeiro. Esta crónica carrega uma grande tristeza. E uma franca esperança.

São apenas dez minutos. Pensei neste tempo preciso quando percebo diariamente que os autores e os artistas em Portugal são tão pouco valorizados. A explicação está na educação. Porque ninguém os conhece, não há conversas de café sobre o Croft ou o Sarmento, a Pauliana e a Tatiana, que exposição mais bonita é aquela ou que vitória incrível é a música da Marta e o piano do Júlio, as palavras cantadas do Sérgio e os poemas de Sophia. Ninguém os conhece. Por culpa nossa. Nós, jornalistas, nós, decisores. Nós que nos conformamos.

O jornalismo anda agarrado à net. Ao imediatismo, à pressa, à correria do primeiro lugar em número de clicks. Perde-se a capacidade, a distância, a inteligência. Quando esta semana a morte de Svetlana Alexievch foi noticiada em alertas de vários órgãos de comunicação social, houve um que fez a coisa mais simples do mundo: telefonou à Nobel da Literatura 2015. Estava tão viva, que até atendeu a chamada. E os primeiros alertas (só recebi alertas de órgãos de comunicação social portugueses, tenho a dizer) tiveram de ser desmentidos. E o jornalismo matou-se. Mais um bocadinho.

Anda a morrer, todos os dias. Com este frenesim que nada é, com a pressão diária sobre os jornalistas em fazer mais em quantidade. A frase “arranja uma solução” é o desespero quando isso significa mais trabalho e não mais tempo. Mais e mais. Sem tempo para o pensamento. E se o jornalismo está a morrer, significa que a democracia está a perder. A conta, se é por números que o mundo se quer reger, a conta da Liberdade está a dever. Em banca rota, falência total, por um jornalismo que deixou de defender as pessoas, a edução, os artistas. E as crianças. O melhor do mundo que são as crianças, dizia o Fernando e que nós abandonámos à violência das imagens do tal click, à falta de educação da história, da liberdade, da beleza e da cidadania. Só conta o presente, só conta o imediato. A desmemória, a desmemória é crime. Que acontece todos os dias. Nas escolas. Nas redações. Como diz outro Fernando, neste caso, o Rosas: “na actual sociedade portuguesa, se desenvolvem as “tentativas de reinterpretação” (…). A primeira (…) foi a “desmemória” criada pelos media, pela escola e as novas tecnologias, que criam um ambiente de “presente contínuo”, que significa “uma forma de manipulação da memória” (…) “Uma espécie de amoralismo paralisante” (…)”.

E é por isso que os bons também partem. Desistem. Porque a luta continua, sim senhor, mas os bons que também são pessoas. E ficam cansados. Tão cansados. Fartam-se do que nada significa, do que se embandeira num arco, do que é apenas reclame luminoso, dessa acha para a fogueira que queima honras e tantas outras legitimidades. Porque ao verdadeiro jornalista não é a ambição que o move. É a missão. E isso está a perder-se. E é nessa tristeza que tanto vivo.

E são os artistas que todos os dias me salvam (e alguns preciosos camaradas que trabalham comigo). A sorte que é trabalhar com estas pessoas, pessoas que se movem não pela tal ambição mas por uma generosidade e uma coragem que me servem de exemplo. Continuar para lhes dar o lugar certo, a memória registada, o presente resistente. Todos os dias me salvam. Todos os dias, trabalho para os celebrar.

Mas temos de ir para lá desta espuma, para lá desta luta. E lembrando outra vez o Fernando: “Mas o melhor do mundo são as crianças”, bastariam dez minutos por semana. E os milhares de crianças do país, durante dez minutos por semana, ouviriam um professor/um educador falar de um autor português. Dez minutos que seriam utilizados para dizer quem é a Paula, o Zé Pedro, a Helena, o Hélder e a Ângela e o Rui. E depois levariam para casa a memória. Se funcionaria? Tenho essa maravilhosa lembrança de uma professora da minha filha, que um dia deu à turma a ouvir um concerto de flauta. No mesmo dia, pediu-me para aprender música e especificamente flauta transversal. Perguntei-lhe onde tinha ouvido falar desse instrumento. Que a professora Teresa lhe tinha explicado e que queria mesmo aprender. “E porquê, filha? Porque me apaixonei pelo som, mamã”.

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