"Papel de lustro e cheirinhos de terra"

A Fundação Gulbenkian tem 60 anos de uma vida depois da morte. Fez-se instituição de prestígio, a partir da paixão de um homem, que por força da guerra, chega a Portugal entre perseguições desumanas e inexistências de deus. Calouste Gulbenkian é dos poucos que tem a noção da morte. E glorifica-a. Se um dia, fosse essa a aprendizagem partilhada e ninguém sairia daqui sem ter cumprido. Como o senhor Gulbenkian.

Dizem-me as árvores, que foram horas imensas que mais pareciam repentinas correrias. Passavam depressa, nem sei bem se porque a matéria era muita ou se o vento tinha também fúrias de me deixar. Atravessar a avenida e estar nos jardins da Gulbenkian era uma viagem ao reino do ouro, mesmo ao lado da faculdade que também tinha sonhos recortados. Quando penso das sessões e discussões, era sempre o jornalismo puro e cortante, aventureiro e certeiro, que habitava por entre as brechas de sol e os beijos dos passarinhos. Entre os pontos de vista e as reportagens imaginadas, foram sempre as ideias que traziam o mundo melhor.

Desânimos, têm essa tendência de aparecerem aos bocadinhos. E depois juntam-se numa bolha única que não permite gritar, que nos torna mudos e depois surdos, que isso de nos aguentarmos todos os dias, é tão doloroso que chega. Para a maioria.

Como para essa maioria de europeus, que um dia se cruzaram com os nacionalismos que faziam guerra, na segunda vez que decretaram mundiais divergências. Pelo meio, milhões de pessoas que se extinguiam na desgraça. Entre todos, o senhor Gulbenkian, que teve sortes e dinheiros, sobretudo clareza, para entender que qualquer guerra não existe sempre e que os inventados humores ditados pelos ditadores duram apenas páginas de História.

O senhor Gulbenkian pegou nessa sorte e para lá de champanhes e de beatas, traçou plano exato, anotado, recortado de uma ideia que chega até hoje. Desânimos? Teve muitos e nem biophotos ou mais precisos retratos são necessários para o entender. O senhor Gulbenkian, homem das manias e das feiras, dos mapas e dos tapetes de luz, soube que magnífico, era o recado transmitido depois de morte (sobre o mito, era isto. Mas deixo para os construtores do sentido). E os quadros e as porcelanas e os vidros milenares e as esculpidas maravilhas e os arranjos entendidos das proezas dos artistas sem o medo de entregar papeis que para muitos seriam apenas de lustro.

Nos jardins da Gulbenkian, havia refúgios infantis que se consumavam na perfeição. Em chuvas de verão, por distantes rodopios. E a infância que renascia nos livros esquisitos de tardes sozinhas. E a terra que aparecia. Em cheirinhos. Pequeninos, porque o nariz também sabe das infâncias, mesmo as que têm os terrores mal esquecidos.

O senhor Gulbenkian também foi pequenino. E deve ter recortado os sonhos em outros papeis de lustro. Nunca desanimou e preparou cada recorte para que hoje, tivéssemos um dos mais bonitos museus da Europa (sim, a nossa Europa que também Gulbenkian sonhou).

E cheirinhos de terra em tardes de melhor lugar neste mundo.

“LINHAS DO TEMPO”
Exposição comemorativa dos 60 anos da Fundação Calouste Gulbenkian
Entrada Gratuita
Até 2 janeiro 2017

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