Ano judicial. Marcelo acentua "prestígio social da justiça"

por Inês Moreira Santos - RTP
"Alguns espíritos se chocaram com o ser possível a magistrados terem estatuto remuneratório superior ao de primeiro-ministro e mais próximo do de Presidente da República. Não consegui compreender o racional - como se diz agora - de tais perplexidades" Mário Cruz - Lusa

O Presidente da República defende que o "prestígio social da justiça" é um dos grandes desafios do setor e que é urgente a valorização remuneratória dos magistrados. O ano judicial começou esta segunda-feira, desta feita com uma cerimónia no Palácio Nacional da Ajuda, marcada por temas como a corrupção, a delação premiada, megaprocessos, a morosidade e a falta de funcionários nos tribunais e na Polícia Judiciária.

Marcelo Rebelo de Sousa encerrou a sessão solene de abertura do ano judicial defendendo um aumento do teto salarial dos magistrados superior ao do primeiro-ministro e afirmando que o "prestígio social da justiça" é um dos cinco desafios do sistema judicial.

"Alguns espíritos se chocaram com o ser possível a magistrados terem estatuto remuneratório superior ao de primeiro-ministro e mais próximo do de Presidente da República. Não consegui compreender o racional - como se diz agora - de tais perplexidades", afirmou.
Para o Presidente da República é premente "valorizar as magistraturas ou, pelo menos, parcialmente", mesmo sabendo que outros setores com funções de soberania, "como as Forças Armadas e as forças de segurança, ficariam expectantes perante mais acentuadas discrepâncias".

"Os titulares de cargos políticos teriam e terão de esperar", salientou o Presidente, explicando que o "bom senso determinava que quem mais é sujeito pelo voto ao escrutínio popular mais deve dar o exemplo de contenção e comedimento".
Autonomia parlamentar em causa
É notório um "adensar de um certo clima antiparlamentar", segundo o presidente da Assembleia da República. Eduardo Ferro Rodrigues criticou ainda as "presunções de regeneração justicialista" que possam pôr em causa a autonomia do parlamento.

Na sua intervenção na cerimónia de abertura do ano judicial, Ferro Rodrigues ressalvou as novas regras "em matéria de rigor e transparência" aprovadas pelo Parlamento, defendendo que é necessário, "sem margem para hesitações, estabelecer os meios imprescindíveis à boa execução das leis".

"É esse o processo que, em matéria de transparência, também agora se inicia, designadamente no quadro da apreciação do Orçamento do Estado para 2020. Estou confiante que, tal como superámos bem os desafios anteriores, superaremos este, que é um desafio fundamental", acrescentou.
Admitindo que considera o atual quadro parlamentar um "órgão que exprime o pluralismo, a diferença e o conflito inerentes à vivência plena da democracia", o presidente da Assembleia da República garante que "não assiste indiferente ao adensar de um certo clima antiparlamentar e em última análise contrário aos fundamentos da democracia representativa".

Para Ferro Rodrigues, este "clima antiparlamentar" tem seguido as "modas do populismo" e facilita que se ponha "em causa valores e princípios democráticos, de legítima consagração constitucional e evidente justificação histórica".

O presidente da Assembleia da República defendeu ainda "certos institutos inerentes à dignidade da instituição parlamentar, como o regime da inviolabilidade, insindicabilidade judicial dos deputados pelos seus votos e opiniões, imunidades e impedimentos".
Crise na justiça controlada em 2019
No ano passado conseguiu-se "controlar os efeitos da crise no sistema de justiça", pelo menos na opinião da ministra da Justiça, que acredita que "2020 será seguramente um ano ainda melhor" para a jurisdição comum, administrativa e fiscal.

Francisca Van Dunem sublinhou, na cerimónia de abertura do ano judicial, que o reforço de meios humanos e as alterações implementadas recentemente dotaram o sistema judicial de instrumentos de gestão, simplificaram alguns procedimentos e facilitaram a criação de juízos especializados.
"Terminamos 2019 com o sistema de justiça a responder melhor no plano da celeridade, com mais dinamismo, mais agilidade", assegurou a ministra.

A ministra da Justiça apontou ainda como objetivos estratégicos do Governo cinco eixos fundamentais: melhoria do acesso ao direito, aprofundamento do processo de transformação digital e de modernização dos serviços, melhoria da capacidade de gestão do sistema judicial, reforço da proteção dos cidadãos mais vulneráveis e intensificação do esforço de combate à corrupção.

Relativamente à situação precária dos advogados que prestam apoio judiciário, a ministra garantiu que o Governo tem cumprido com as suas obrigações financeiras.

Quanto ao combate à corrupção, Van Dunem destacou a estratégia nacional integrada, a prevenção e a repressão dos fenómenos corruptivos, melhorando os instrumentos jurídico-processuais e prosseguindo o reforço dos recursos humanos e tecnológicos do Ministério Público e da Polícia Judiciaria.
Sistema da justiça "equilibrado e funcional"
Para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não existe nenhuma crise na justiça e o sistema judicial português está "equilibrado e funcional".

"No atual contexto histórico posso afirmar, com convicção, que o sistema de justiça português está equilibrado e funcional. É altura de pôr termo à retórica da crise na justiça, às críticas vazias, às ideias feitas e à deslegitimação, inconsciente ou consciente, do sistema de justiça", afirmou o juiz conselheiro António Joaquim Piçarra.

Embora negue que haja uma crise no setor e classifique essa ideia como uma "retórica replicada de forma acrítica e, por vezes, até perversa", o presidente do Tribunal Supremo considera que essa "percepção que os cidadãos têm da justiça está alinhada com essa ideia de equilíbrio funcional".

António Joaquim Piçarra, também presidente do Conselho Superior da Magistratura, admite, no entanto, que continua a haver "problemas muito sérios e profundos" no sistema judicial, principalmente em processos complexos e na "chamada justiça económica, particularmente as execuções civis e o comércio".
"Se o nosso sistema legal e organizativo exige e impõe que estes processos complexos se tornem edifícios faraónicos de factos e de provas, a sua conclusão levará sempre vários anos", afirmou o juiz, defendendo uma alteração do quadro legal e funcional de apoio aos juízes.
"Falta de meios" atrasa grandes processos
A demora nas investigações mais complexas e grandes processos sobre criminalidade económico-financeira devem-se à "falta de meios" humanos e materiais, segundo a procuradora-geral da República.

"O combate a esses fenómenos criminais, de assinalável grau de sofisticação, e a especificidade das investigações obriga a um inevitável esforço de formação dos investigadores e implica um investimento de tempo e de recursos financeiros que não pode ser menosprezado e que reclama, antes de mais, a assunção de uma inequívoca opção estratégica, assumida com inquebrantável vigor", realçou Lucília Gago.
Na sua intervenção, a procuradora-geral ressalvou que é necessário que o Estado confisque os proventos dos crimes e impeça "que os benefícios económicos originados pela atividade criminosa sejam camuflados e livremente usufruídos, procedendo à sua eliminação".

Lucília Gago falou ainda na importância do sistema de justiça juvenil, considerando fulcral uma melhor abordagem a fenómenos de violência juvenil, especialmente no meio escolar, no seio da família e os praticados em ambiente digital.
Delação premiada é "retrocesso"
O ano judicial "começa com algumas nuvens negras" no setor da justiça, começou por dizer Luís Menezes Leitão, o bastonário eleito da Ordem dos Advogados, na intervenção inicial da cerimónia, referindo-se à intenção do Governo de criar um sistema de delação premiada.

"Efetivamente achamos incompreensível que tenham sido confrontados com o recente anúncio da criação de um grupo de trabalho destinado a estabelecer medidas que representam uma alteração radical do paradigma existente no nosso processo penal, sem que essas medidas constassem sequer do programa do Governo discutido no Parlamento", criticou o bastonário eleito da Ordem dos Advogados, que toma posse a 14 de janeiro.
Criticando a criação de um sistema de delação premiada, Menezes Leitão afirmou que as alterações à legislação processual penal em Portugal continuam a ser feitas "à boleia dos casos mediáticos" e que importar a delação premiada do sistema norte-americano é "um grande retrocesso" no sistema penal português e um "enorme atentado aos direitos de defesa".

"Ora, o que é a delação premiada senão uma forma de coação moral sobre os arguidos?", questionou.

"A regra do nosso processo penal é a de que toda a prova deve ser produzida em julgamento, pelo que a única atitude compatível com a de uma magistratura, como entre nós é o MP, é defender a absolvição dos arguidos quando manifestamente não foi feita prova contra eles em sede de julgamento", contrapôs.
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