Anti-inflamatório proibido usado na pecuária pode estar a matar abutres em Portugal

Está a ser administrado por alguns produtores de gado bovino um fármaco anti-inflamatório que está classificado pelas entidades farmacêuticas como perigoso para indivíduos com problemas renais. Um produto que cientistas e biólogos julgam estar a causar a morte a aves necrófagas em Portugal.

Quem não se lembra das aves que habitualmente surgem nos filmes do género western, a voar, em círculos, sobre um duelo entre cowboys. As aves necrófagas, vulgarmente conhecidas por Abutres, não existem só na América.

Em Portugal há também uma comunidade destas aves, composta por grifos, abutres egípcios e abutres negros, que atualmente podem estar em perigo devido a um fármaco proibido por cá. E que está a ser utilizado como anti-inflamatório na indústria pecuária.

As aves necrófagas, em especial algumas espécies de abutres, são extremamente sensíveis aos efeitos tóxicos de fármacos anti-inflamatórios não esteroides, como o diclofenaco ou diclofenac.

Este medicamento pode ser ingerido acidentalmente a partir dos cadáveres de gado domesticado, alerta o biólogo da Universidade de Aveiro (UA) Carlos Fonseca, coordenador do estudo em Portugal.

"Há aqui uma ameaça que diz respeito a um anti-inflamatório não esteroide, autorizado em alguns países, que é administrado a bovinos, cujas carcaças são fornecidas a abutres em alimentadores".


Falência renal
Segundo o biólogo Carlos Fonseca, há outros anti-inflamatórios que, produzindo o mesmo efeito no gado, são mais seguros para as aves necrófagas, mas que não estão a ser implementados.

Mesmo que o número de cadáveres de bovinos com este fármaco seja reduzido, explica Carlos Fonseca, o certo é que "esses terão o potencial de causar a morte a um elevado número de indivíduos que habitualmente se alimentam em grupo e de eliminar totalmente casais reprodutores de aves necrófagas em determinada região, em especial se atendermos ao reduzido número de casais nidificantes que a maioria das espécies possui em Portugal".

De facto, aponta ainda o biólogo, "situações como estas poderão facilmente deitar por terra os esforços de conservação destas espécies, assim como muitos anos de recuperação das suas populações".

Carlos Fonseca refere que este fármaco com base em diclofenaco, utilizado na farmacêutica humana, comporta alguns riscos, daí não poder ser administrado a pessoas com problemas renais, sob o risco de falência dos rins e consequente morte, como acredita estar a acontecer na comunidade de abutres em Portugal.

O investigador do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro mostra ainda mais preocupação, porque diz ter a confirmação de que está atualmente a ser avaliado pelo Estado Português um pedido de autorização de comercialização do diclofenaco para uso pecuário em território nacional.

Uma autorização que, a ser concedida, "poderá colocar em causa de forma irremediável os esforços nacionais de conservação das aves necrófagas, agravando ainda mais os riscos que recaem sobre estas espécies na Península Ibérica", explica.


Abutres já estiveram em perigo
Atualmente, em Portugal, a comunidade de aves necrófagas está estimada em cerca de 1300 espécimes, nomeadamente 500 casais de grifos, 120 de abutres do Egito e pouco mais de uma dezena de abutres negros.

Com uma taxa de nidificação anual de três ovos por casal, com exceção dos grifos que incubam apenas um ovo por ano, estas aves necrófagas têm uma taxa de crescimento bastante lenta.

Apesar de não terem predadores naturais, estas aves estão sujeitas a constantes ameaças por intoxicação e/ou envenenamento, electrocução por linhas elétricas, incêndios florestais, bem como a perturbação humana.

Mesmo assim o biólogo da Universidade de Aveiro diz que esta espécie tem vindo a crescer, embora muito lentamente.

Em Portugal a comunidade destas três espécies - presentes no interior do país, Douro e Tejo Internacional e margem esquerda do Guadiana, mas também em Espanha - esteve em forte declínio há cerca de 30 anos. Agora, diz o biólogo da UA, "estão, aparentemente, bem de saúde, não fora esta nova ameaça".

Carlos Fonseca avisa também que este problema alimentar não se restringe aos abutres.

"Há aqui uma suspeita que também a comunidade de aves predadoras, como as águias, possa ser afetada. Se bem que a população de águias, em conformidade com a de abutres, tem vindo a recuperar no nosso país. Falo nomeadamente da águia pesqueira, da águia-real e outras que até há bem pouco tempo nem existiam e que, devido à influência dos nossos vizinhos espanhóis, retornaram ao seu habitat natural em solo português".

Investigação internacional no terreno
Com financiamento da norte-americana Morris Animal Foundation, uma organização sem fins lucrativos que investe em investigação para promover a saúde animal, incluindo a fauna selvagem, uma equipa de investigadores da UA, equipas espanholas Universidade Autónoma de Barcelona (coordenadora geral do projeto), do Instituto de Investigação em Recursos Cinegéticos e da Universidade de Lleida, assim como do Raptor Center da Universidade de Minnesota (EUA), estão a estudar a exposição das aves necrófagas ao diclofenaco e a outros fármacos anti-inflamatórios na Península Ibérica.

O objetivo é mostrar que o mesmo diclofenaco que, na década de 90, causou o desaparecimento de 99 por cento dos abutres no sul da Ásia, devido ao consumo dos cadáveres de gado tratado com o medicamento, pode acarretar semelhante cenário para Portugal e Espanha.

"Os resultados que se obtenham a partir deste projeto", aponta Carlos Fonseca, "proporcionarão informação chave às autoridades veterinárias que regulam o uso destes fármacos, que já estão proibidos em vários países asiáticos desde 2006, e informarão para um futuro processo de tomada de decisões".

Os cientistas e ambientalistas esperam que entretanto "a utilização do melhor conhecimento científico existente e o respeito pelo princípio da precaução impeçam a autorização do diclofenaco no nosso país, evitando o consumar de um risco real, iminente e crítico para a conservação das aves necrófagas em Portugal".

Além da UA, o esforço para travar o anti-inflamatório envolve a Liga para a Proteção da Natureza (LPN), a Associação Transumância e Natureza (ATN), a Quercus, o Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens da Ria Formosa (RIAS), o Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais (CERVAS) e o Hospital Veterinário da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.