Aposta intensa no combate a incêndios é esforço "inglório”

por Sandra Salvado - RTP
Paulo Cunha - EPA

É uma tragédia sem precedentes que vai marcar para sempre o país. O incêndio de Pedrógão Grande fez pelo menos 64 mortos e mais de duas centenas de feridos. Há ainda muitos desaparecidos, dezenas de deslocados e estão por calcular os números de casas e viaturas destruídas. O fogo é já considerado o mais violento e mortífero de sempre em Portugal. Para já, pede-se ânimo para o combate que vai continuar, mas também explicações para o que realmente aconteceu.

Temperaturas muito elevadas, descargas elétricas associadas a trovoada seca ou mudança de direção de vento muito rápida são algumas das causas apontadas para esta tragédia.

Mas José Miguel Pereira, professor catedrático de engenharia florestal do ISA, considera que a paisagem que existe em Portugal “é muito pouco defensável e continuar a apostar intensamente no combate é um esforço, em boa medida, previsivelmente inglório”.

De acordo com o investigador, em média, em cada ano, cerca de dois terços do que arde não é floresta. E dá como exemplo o ano 2016, que foi um ano mau, em que 75 por cento da área queimada não foi floresta.

“Por isso, eu na Universidade aos meus alunos não falo em fogos florestais. Falo em fogos rurais. É um problema da floresta, dos matos, das pastagens, das áreas agrícolas, da relação das áreas urbanas, da distribuição do povoamento com todas estas formas de ocupação do solo e, portanto, reduzir o problema do fogo a um problema da floresta é desfocar a coisa e é não perceber o enquadramento do problema. Não se fazem boas políticas públicas se não se tiver percebido isso”, rematou José Miguel Pereira no programa Prós e Contras da RTP, dedicado à tragédia deste fim de semana.

Já o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, começou por dizer que não se vai olhar para este incêndio como um incêndio normal. “Houve uma anormalidade. Agora nunca ponham em causa que os portugueses não estão bem defendidos.”

Ainda assim Jorge Gomes reconhece que há dúvidas: “O senhor ministro fez hoje um despacho em que exige esclarecimentos ao IPMA [Instituto Português do Mar e da Atmosfera] para saber as condições atmosféricas e climáticas naquele dia”.

“Em segundo lugar, o senhor primeiro-ministro pôs como exigência saber se houve falha de comunicações do sistema do Estado, que é o sistema SIRESP”. Além disso, o Executivo quer ainda esclarecimentos sobre “o encerramento ou não encerramento da estrada nacional onde se deu o fatídico caso”.

Jorge Gomes garantiu que “este Governo não está à espera que passe o tempo para depois ficarmos com a culpa a morrer solteira”. O secretário de Estado exemplificou o trabalho do Governo com as reuniões de António Costa em Pedrógão Grande com vários ministros.

“Nós não podemos chegar ao fim deste tipo de acontecimentos e irmos iniciar todo um processo. Não, o senhor primeiro-ministro deslocou-se com vários ministros, fizeram uma reunião de trabalho e decidiram e determinaram já alguns procedimentos”, garantiu.

A agência Lusa teve acesso ao despacho, assinado na segunda-feira, pelo primeiro-ministro e que diz respeito a três das circunstâncias por apurar em relação às consequências trágicas do incêndio que deflagrou no sábado em Pedrógão Grande.

"Sem prejuízo da avaliação global que terá lugar no termo das operações ainda em curso, há três questões relativas à tragédia ocorrida em Pedrógão Grande no passado sábado" que entende "necessário esclarecer desde já".

"Houve no local circunstâncias meteorológicas e dinâmicas geofísicas invulgares que possam explicar a dimensão e intensidade da tragédia, em especial no número de vítimas humanas, sem paralelo nas ocorrências de incêndios florestais, infelizmente tão frequentes em Portugal", começa por questionar o primeiro-ministro.Governo pede explicações
António Costa pergunta depois se é passível de confirmação que "houve interrupção do funcionamento da rede SIRESP - Rede Nacional de Emergência e Segurança".

"Porquê, durante quanto tempo, se não funcionaram as suas próprias redundâncias e que impacto teve no planeamento, comando e execução das operações, como se estabeleceram ligações alternativas?".

"Porque não foi encerrada ao trânsito a Estrada Nacional (EN 236-I), foi esta via indicada pelas autoridades como alternativa ao IC8 já encerrado e foram adotadas medidas de segurança à circulação nesta via?", pergunta ainda o líder do executivo.

"Para rápido esclarecimento determino que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, I.P., a Autoridade Nacional de Proteção Civil e a Guarda Nacional Republicana respondam, respetivamente, às três questões", conclui o primeiro-ministro.

No programa Prós e Contras, o presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera explicou que o IPMA emitiu avisos vermelhos na sexta-feira.

“Tivemos uma semana em que muitos pontos do país ultrapassaram os 42, 43 graus, o que não é normal no mês de junho. Temos tido noites com temperaturas mínimas acima dos 26, 27 graus. É uma situação que já se vem a arrastar desde a Primavera que em si também foi bastante quente e temos pouca água no solo. Mas nos dias que antecederam a tragédia de Pedrógão Grande, o Instituo emitiu avisos laranjas, vermelhos que não é invulgar emitirmos nesta altura do ano”.

Contudo, Jorge Miguel Miranda sublinhou que “nós não sabemos aquilo que ninguém pode saber. A melhor técnica e a melhor ciência não resolvem todos os problemas como nós gostávamos que resolvesse.”

O Comandante Operacional Nacional da Autoridade de Proteção Civil explicou que a instituição estava avisada para condições climatéricas adversas, uma vez que a troca de informações com o IPMA é feita diariamente.

“Na quarta-feira, o IPMA já nos alertava para condições meteorológicas adversas. Tanto é que na sexta-feira, a partir das 8h00 para sexta, sábado e domingo, tínhamos lançado um alerta amarelo, um alerta especial, para o sistema nacional de Proteção Civil”, explicou Rui Esteves.

O comandante operacional anotou ainda que o alerta era válido para todo o país, uma vez que “não é possível prever exatamente onde vão acontecer estas trovoadas secas”.

“Não estamos a falar apenas de um incêndio. Estamos a falar de uma descarga elétrica, uma trovoada seca num determinado ponto que cria as suas próprias correntes de convexão e as descargas elétricas continuam e continuam a fazer incêndios. Nós tivemos vários incêndios provocados por estas descargas elétricas, pelas tais trovoadas secas”.
Quais as zonas mais vulneráveis?
José Miguel Pereira, professor catedrático de engenharia florestal do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e Xavier Viegas, professor catedrático na Universidade de Coimbra consideram que embora se possa prever que o centro do país e a Serra de Monchique possam ser mais vulneráveis, neste caso a proteção civil estava bem posicionada porque não era possível prever mais nada.

Uma opinião com a qual o professor Paulo Fernandes, investigador no departamento de ciências Florestais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) discorda.

“É possível claramente identificar as zonas do país cujo risco é maior, atendendo ao passado recente, ou seja, aquelas que já não ardem há algum tempo. Mas os índices de perigo meteorológico de incêndio conjugados com essas áreas com risco elevado devido ao estado da vegetação vão-nos aqui despistar umas zonas em prol de outras e nesta situação particular nós fizemos um estuado no ano passado em que identificámos claramente o tipo de situação meteorológica que dá origem aos maiores incêndios e situações como a deste incêndio foram relativamente frequentes em 2003”, disse o investigador no programa Prós e Contras.

Paulo Fernandes considera ainda que é necessário ter informação mais objetiva e concreta sobre o que aconteceu, salientando que é importante saber “a que horas é que o incêndio foi detetado, quanto tempo decorreu até à primeira intervenção, com que meios essa primeira intervenção foi feita, se esses meios eram coerentes com as condições extremas que se verificaram e se depois tendo esse fogo escapado ao ataque inicial se se tomaram medidas relativamente à salvaguarda da vida das pessoas naquela envolvente, sabendo que era um incêndio que se iria propagar com uma velocidade bastante rápida”, questionou.
"Situação excecional"
O Comandante Operacional Nacional da Autoridade de Proteção Civil respondeu dizendo que “o incêndio foi detetado às 14h43 e de imediato nos primeiros dois minutos foi feita a triangulação, não só a saída do corpo de bombeiros que tem a responsabilidade da primeira intervenção mas os dois corpos de bombeiros mais próximos. Logo nos primeiros dois minutos foram ativados 20 operacionais, cinco veículos para a primeira ocorrência e um helicóptero”.

Rui Esteves explicou ainda que nos minutos seguintes, “tendo em conta as várias situações que estavam a acontecer porque não estamos apenas a falar de um incêndio, de um ponto de ignição. Esta é uma situação excecional que é preciso perceber todos os pontos de ignição, onde é que eles aconteceram, tentar perceber qual foi a dimensão das rajadas de vento para depois fazer juízos de valor.”

Respostas que não satisfazem por completo o investigador da UTAD. Paulo Fernandes explicou que para este tipo de fogos há uma janela de oportunidade extremamente curta e, portanto, “tudo se joga nesses primeiros minutos, especialmente com as mudanças de vento e os focos simultâneos que são claramente uma das grandes dificuldades dos fogos causados por raios”. E conclui: “As minhas dúvidas são mais no que aconteceu depois dessa primeira intervenção ter falhado”.

O Comandante Operacional Nacional da Autoridade de Proteção Civil defende-se para dizer que “não é justo dizer-se que falhou”.

Rui Esteves voltou a salientar que a situação que se viveu foi “anormal com várias ocorrências, várias ignições que levaram a que não fosse possível acudir a todos de uma forma imediata”.

O comandante insistiu que “é prematuro, não concordo de maneira nenhuma que se diga que a primeira intervenção ou o ataque ampliado falhou. Não é justo dizê-lo”, concluiu.

Também o secretário de Estado da Administração Interna fez questão de explicar que quando se está no teatro de operações “os recursos mobilizados de acordo com a dimensão que o próprio incêndio toma. Nós não temos condições nem ninguém tem condições de prever onde é que vai arder”.

Jorge Gomes quis ainda destacar as projeções que nascem dos próprios incêndios. “Há projeções em centenas e centenas de metros e de repente está a arder noutro lado e aquilo é como foguetes. Saem disparadas de um incêndio várias projeções que são algo que penaliza muito os nossos soldados da paz”.

O investigador da Universidade de Coimbra, Xavier Viegas, explicou que as trovoadas trazem correntes descendentes muito fortes durante o incêndio e essas correntes dão origem a ventos quase aleatórios, que espalham o vento em várias direções.

“Quando se forma uma ignição destas num terreno que é muito inclinado, com ravinas e desfiladeiros. Aí o fogo acelera, cria a sua própria dinâmica, os seus próprios ventos e faz correntes de convexão que por sua vez transportam partículas, projeções a grandes distâncias”, refere Xavier Viegas.

O investigador acredita que tudo isto aconteceu no incêndio de Pedrógão Grande. “Estas correntes descendentes em diversas direções facilmente desorientam quem está a combater o incêndio e não é fácil. Com estas projeções o fogo aparecia em qualquer sítio e foi isso que aconteceu”.

Em outubro de 2016 foram tomadas várias decisões em Conselho de Ministros como a titularidade da propriedade florestal, criando o banco de terras, a criação de um sistema de informação cadastral simplificada, a criação do regime de reconhecimento das sociedades de gestão florestal, a simplificação das normas das zonas de intervenção florestal.
Para quando uma nova floresta?
A esta pergunta Amândio Torres, Secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Florestal, começou por dizer que toda a gente quer mudanças rápidas e que se deseja ter retornos dos investimentos.

“Mas que ter a consciência muito clara de que foi há mais de seis décadas que fomos construindo a realidade que hoje vivemos. Não passa pela cabeça de ninguém que num ano ou dois ou três conseguir mudar este panorama, esta realidade”, advertiu Amândio Torres.

A falta de cadastro das terras tem sido um dos temas mais falados nos últimos anos. De acordo com o Secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Florestal este processo que vai ser orientado pelo Ministério da Justiça.

O governante não escondeu que este não é um processo fácil, caso contrário já estaria feito. “Neste momento o ministério da Justiça já identificou quatro concelhos onde se vai iniciar o processo para verificar da maior ou menor facilidade com que poderemos estender a iniciativa ao resto do país”.
Projeto piloto avança este ano
As câmaras municipais e as juntas de freguesia vão ser parceiros ativos neste processo. “Estou certo que este ano vamos iniciar o projeto piloto e, portanto, até ao fim da legislatura vamos ter novidades. Mesmo que sejam difíceis e eventualmente desagradáveis vamos avançar”.

Paralelamente ao banco de terras existe um fundo de mobilização que serve para encaixar as receitas provenientes de arrendamento de terras ou vendas de terras e serve também para adquirir novas terras.

Uma das novidades é que haverá sociedades de gestão florestal. “Podem ser sociedades anónimas mas tem que ser reconhecido o seu objetivo para poderem beneficiar de um conjunto de incentivos fiscais que estão neste momento em análise na Assembleia da República. Temos criar uma inversão do que se passa até hoje. Temos uma gestão muito fraca e pouco profissional”, explicou o Secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Florestal.

Paulo Fernandes, investigador no departamento de ciências florestais da UTAD tem dificuldade em “descortinar” como é que uma boa parte destes novos instrumentos irão contribuir para uma floresta mais resiliente ao fogo e explica porquê.

“Em primeiro lugar é importante fazer uma distinção que é haver ou não haver gestão florestal e a intensidade dessa gestão florestal e a sua qualidade que em muitas situações são totalmente independentes da vulnerabilidade da floresta ao fogo”.

O investigador dá como exemplo as orientações para condução e para gestão de povoamentos de resinosas como o pinhal bravo. “Do ponto de vista do fogo são totalmente erradas. Portanto, eu olho para estas medidas mais do ponto de vista do fogo e desse ponto de vista eu encontro medidas que são relativamente indiferentes ou inócuas e depois encontro medidas positivas como por exemplo o plano nacional de fogo controlado, a possibilidade de deixar alguns fogos propagar-se de forma acompanhada”.
Falhas graves nas comunicações
O presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses aponta falhas graves nas comunicações em Pedrógão Grande e sublinha que é preciso "criar alternativas".

Jaime Marta Soares refere ainda que o incêndio que ainda se encontra ativo deverá proporcionar "um grande debate" e que as autoridades devem definir uma estratégia de combate aos incêndios que abranja todo o ano e não apenas os meses de maior calor.

Na visão do presidente da Liga dos Bombeiros, o Governo deve acionar "imediatamente" a fase Charlie de combate aos incêndios, prevista para se iniciar apenas em julho.

No entanto, o responsável admite que nem essa medida teria evitado a tragédia dos últimos dias. "Nunca vi um incêndio tão brutal, tão dantesco, como este em Pedrógão Grande", refere Jaime Marta Soares.

O presidente da Liga dos Bombeiros considera que "há falta de vontade política" para melhorar a situação das florestas em Portugal e refere que é "gravíssimo" que o Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios não seja avaliado há quatro anos, como noticia esta terça-feira o jornal Público.

Jaime Marta Soares sublinha ainda a necessidade de analisar o estatuto social do bombeiro, sendo que a "esmagadora maioria" que se encontra no terreno é constituída por voluntários.
"Oportunidade trágica" para avaliar sistema de Proteção Civil
Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos da Proteção Civil, considera que o incêndio em Pedrógão Grande poderá levar a uma avaliação em larga escala do sistema de Proteção Civil em Portugal.

O responsável sublinha que as comunicações "são determinantes" nestas situações de catástrofe, mas que é "prematuro" determinar se é necessário um novo sistema de comunicações.

Duarte Caldeira refere que a componente tecnológica destes sistemas deve ser testada de modo a que não falhe.

O presidente do Centro de Estudos da Proteção Civil considera ainda que é "absolutamente inaceitável" que o Plano Nacional de Incêndios não seja avaliado há quatro anos, uma vez que se trata de um "instrumento estratégico precioso" para a intervenção e combate aos incêndios florestais.

Para Duarte Caldeira, a "subestimação" da importância desse documento deve ser apontada a várias entidades, incluindo o antigo e o atual Governo.

Sublinha, por fim que existe em Portugal um "grande número" de relatórios e planos que "repetem diagnósticos", mas o que falta é a aplicação das terapêuticas para a resolução de problemas.
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