"Caixa negra" da Proteção Civil revela falhas do SIRESP no início de incêndio

por RTP
Miguel A. Lopes - Lusa

As comunicações registadas pela Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC) revelam que as falhas de comunicação no momento de maior expansão do incêndio de Pedrógão Grande impediram uma resposta efetiva aos pedidos de ajuda. O Público e o Jornal de Notícias revelam esta terça-feira a “linha do tempo” das comunicações nas primeiras horas de expansão do fogo. Mesmo que confirmadas as falhas do sistema, uma cláusula do contrato assinado pelo Estado em 2006 poderá ilibar o SIRESP de quaisquer responsabilidades.

As comunicações falharam quase por completo na ajuda às populações e provocaram o caos no momento inicial de combate ao incêndio de Pedrógão Grande. O Público e o Jornal de Notícias referem nas respetivas edições impressas desta terça-feira que as várias entidades envolvidas no combate não conseguiram comunicar de forma efetiva entre si.
 
Os dois jornais tiveram acesso ao Sistema de Apoio à Decisão Operacional (SADO) da ANPC, que funciona como a “caixa negra” de um avião, permitindo reconstituir a sucessão de eventos naquele dia, bem como traçar a linha temporal das decisões operacionais.

Esta “fita do tempo” foi entregue ao primeiro-ministro na semana passada, na sequência do pedido de explicações enviado pelo Governo à ANPC.
 
No seguimento cronológico a que tiveram acesso os dois jornais, o primeiro sinal de emergência chega às 19h45 de sábado. O 112 informa que três pessoas estão numa habitação cercada pelas chamas e o Corpo de Bombeiros de Pedrógão Grande informa ter ficado sem sinal de baixa frequência.  
O incêndio começou às 14h43 de sábado, dia 17, mas só ganhou dimensão horas mais tarde, com o agravamento das condições meteorológicas. 
Cinco minutos mais tarde, mais duas pessoas que necessitam de ajuda urgente, e mais uma vez o contacto entre as entidades envolvidas no combate ao incêndio falha.
 
Mais de uma hora depois, ainda no sábado, o Centro Nacional de Operações de Socorros contacta Ulisses Pinto, chefe da Divisão de Informática e Comunicações da Proteção Civil, no Departamento de Intervenção em Catástrofes. É pedido o reposicionamento de antenas SIRESP na zona de Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos.  

Ao longo de toda a noite, são registados os casos de pelo menos dez pessoas que não tiveram a ajuda solicitada ou tiveram ajuda tardia.  Em vários momentos, as entidades envolvidas no combate e assistência não conseguiram estabelecer contacto entre si.  A “caixa negra” vai revelando nestas horas a existência de “quebras constantes” da rede SIRESP e a própria “saturação das comunicações” é admitida num dos momentos.  
 
Na longa cronologia de acontecimentos delineada no Público e no Jornal de Notícias, surge também a revelação que uma avaria deixou o veículo repetidor SIRESP/PSP imobilizado durante as primeiras horas do incêndio de Pedrógão, ficando reparado apenas durante a madrugada de domingo.

Ainda na noite de sábado, os bombeiros decidem mesmo começar a contactar pelos seus antigos meios de comunicação, a rede ROB, na sequência das falhas do SIRESP.
 
Pouco depois da 01h00, surge a primeira referência à Estrada Nacional 236, onde morreram 47 pessoas, onde é pedido o “levantamento” das vítimas mortais, que impossibilitavam naquela altura a circulação dos meios de combate.  
 
Também na madrugada de domingo, o Comando Distrital de Operações de Leiria pedem que se insista junto da PT para a resolução dos problemas de rede e Internet. Registam-se ainda nesta caixa negra os problemas na tentativa de acesso a combustível pelos Bombeiros de Setúbal que ajudam no combate ao incêndio.
 
Até ao momento, as falhas no Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) tinham sido admitidas por vários elementos da Proteção Civil, mas não a este nível. Um dos comandantes chegou a garantir que nenhuma falha tinha sido superior a um minuto, refere o jornal Público.

Numa carta enviada na semana passada ao primeiro-ministro, a ANAC admitia falhas no sistema de comunicações, registadas a partir das 19h45 de sábado até "dia 20 de junho", ou seja, quatro dias após o início dos incêndios.
MAI exige estudo e auditoria 
Na sequência das dificuldades sentidas na utilização do SIRESP durante os incêndios e após conhecer a falta de resposta aos pedidos de ajuda revelados pela “caixa negra” da Proteção Civil, a ministra da Administração Interna ordenou na segunda-feira a realização de um estudo independente ao sistema de comunicações e de uma auditoria à Secretaria-Geral da Administração Interna.  
 
Em comunicado, o MAI justificava a decisão com as “informações de caráter técnico-operacional coligidas e analisadas até à presente data” e as “dificuldades na utilização do Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP)” durante os incêndios na região de Pedrógão Grande.

O documento indica que, na sequência destes factos, Constança Urbano de Sousa determinou “a realização pelo Instituto de Telecomunicações (…) de um estudo independente sobre o funcionamento do SIRESP em geral e, em situações de acidente grave ou catástrofe, em particular”
 
Desta forma, o Ministério de Constança Urbano de Sousa pretende “identificar, do ponto de vista técnico, eventuais constrangimentos e propor possíveis medidas que possam garantir que o SIRESP responde às necessidades para o qual foi criado”.  A auditoria deverá chegar às mãos da ministra “no prazo de 30 dias”, explicita o comunicado de segunda-feira. 
 
A par deste estudo, a ministra ordenou também que a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) faça uma auditoria ao cumprimento, por parte da Secretaria-Geral da Administração Interna, enquanto entidade gestora do SIRESP do lado do Estado.
 
Em análise estarão as obrigações estabelecidas, legal e contratualmente, designadamente ao nível da gestão, manutenção e fiscalização do sistema de comunicação em causa.  
 
Neste ponto, deverão ser identificados “eventuais constrangimentos” e propostas medidas no sentido de garantir que o SIRESP responda “às necessidades para o qual foi criado, tendo em consideração as melhores e mais recentes práticas internacionais nesta matéria”.



Em entrevista à RTP na passada quarta-feira, a ministra garantia que não houve uma falha total no sistema, mas sim "intermitências" no funcionamento do sistema de comunicação.

Constança Urbano de Sousa afirmava na altura que foram colocadas torres de comunicação via satélite, por volta das 20h00, para ajudar às comunicações da rede SIRESP, garantindo que não tinha informações sobre uma eventual falha total do sistema.
"Cabal esclarecimento"
De lembrar que o primeiro-ministro requeria na passada sexta-feira um “cabal esclarecimento” sobre as falhas ocorridas na rede SIRESP que foram relatadas pela Autoridade Nacional da Proteção Civil.  
 
Na semana passada, a ANPC admitia, em resposta às perguntas colocadas pelo governante, que houve registo de falhas no sistema SIRESP entre sábado e terça-feira (17 a 20 de junho), mas que estas foram suprimidas por meios de “redundância”.  
 
“Tendo em conta esta descrição, deve a ministra da Administração Interna providenciar junto da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e da SIRESP, SA o cabal esclarecimento do sucedido”, refere o despacho de António Costa. O incêndio de Pedrógão Grande deflagrou há pouco mais de uma semana fez 64 mortos e mais de 200 feridos. 

Já esta segunda-feira, o primeiro-ministro referia, em declarações aos jornalistas, que não pretendia retirar conclusões precipitadas antes dos estudos e relatórios em curso. 

"Não vou tirar conclusões antecipadas face aos relatórios que foram solicitados, mas ninguém pode deixar de estar revoltado com o facto de, até este momento, termos perdido 64 vidas humanas num incêndio daquela dimensão. Todos nós temos de ser exigentes para esclarecer tudo o que há para esclarecer. Nada poderá ficar por esclarecer", reiterou o chefe de Governo.
SIRESP sem responsabilidades
Assinado em 2006, altura em que António Costa detinha a pasta de ministro da Administração Interna, o contrato da Parceria Público-Privada (PPP) entre a SIRESP S.A e o Estado previa que o sistema de emergência seja ilibado de responsabilidades em caso de grandes catástrofes.

Para além da ligação entre rádios, a rede de comunicação deveria permitir o contacto entre as várias forças de segurança, incluindo a PSP, GNR, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Polícia Judiciária, SIS, SIED, ANPC, Proteção Civil e Corpos de Bombeiros Voluntários, os clientes deste serviço que mostram ter estado isolados no combate ao incêndio, segundo a cronologia fornecida pela "caixa negra".

“O SIRESP assegura comunicações móveis de elevada qualidade a estes operadores, bem como a possibilidade de todos comunicarem entre si, o que é decisivo em termos operacionais e não é assegurado pelos atuais sistemas de rádio", garantia o então ministro António Costa, numa altura em que era contratualizado o pagamento de 475 milhões para a instalação de do sistema de comunicações.

No entanto, a cláusula 17 desse mesmo acordo, denominada "Força Maior", referia que "para os efeitos do contrato, considerar-se-ão os casos de força maior, imprevisíveis e irresistíveis, cujos efeitos se produzem independentemente da vontade da operadora ou da sua atuação, ainda que indiretos, que comprovadamente impeçam ou tornem mais oneroso o cumprimento das suas obrigações contratuais".

Segundo o documento, constituem casos de força maior "atos de guerra ou subversão, hostilidade ou invasão, rebelião, terrorismo ou epidemias, raios, explosões, graves inundações, ciclones, tremores de terra e ou tros cataclismos naturais".

Nos dias que se seguiram à tragédia, tanto a Polícia Judiciária (PJ) como o Instituto Português do Mar e da Terra (IPMA) consideraram que o fenómeno atmosférico "downburst" havia sido decisivo na propagação rápida do fogo e na destruição das infra-estruturas de comunicação, um evento atmosférico que retira responsabilidades à empresa, segundo os termos do contrato.

Em declarações ao jornal Público, Joaquim Morais Sarmento, especialista em PPP, considera que esta cláusula  no contrato mostra "alguma negligência", uma vez que "o objetivo do sistema é que ele funcione exatamente em caso de calamidade".

Segundo o Jornal de Notícias, a rede estratégica SIRESP, que falhou nos recentes incêndios da zona centro, deu 6,675 milhões de euros em lucros aos acionistas ainda no ano passado, sendo que os beneficiários diretos da empresa são a Galilei, antiga Sociedade Lusa dos Negócios (pertencente ao BPN), a PT Participações, a Motorola, a empresa de segurança Esegur e ainda a Datacomp.
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