Comissão Independente. Quando os abusos sexuais na Igreja passaram a ser tema em Portugal

por Ana Luísa Rodrigues - RTP
Foto: Markus Spiske - Unsplash

O relatório publicado esta segunda-feira sintetiza um ano de trabalho sobre os abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa. O pedopsiquiatra Pedro Strecht foi o rosto mais visível da Comissão Independente, que contou, entre outros, com o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida - nomes de peso, com notoriedade e não ligados à igreja. A comissão iniciou trabalhos a 11 janeiro de 2022, quando começaram a receber contactos de vítimas de abuso sexual.

"Dar Voz ao Silêncio" foi o mote, explicado por Pedro Strecht logo na primeira conferência de imprensa: "A comissão existe para estar ao lado das pessoas, tem disponibilidade total para escutar a seu tempo e com tempo uma a uma, porque todos, mas todos, contam. A comissão irá também procurar validar estes testemunhos em sigilo profissional, fazendo-o de diversas formas, para que cada qual sem medo, vergonha ou culpa, tenha finalmente um espaço de referência onde se sinta confortável para poder falar".

Nos primeiros quatro dias de funcionamento da Comissão, 100 testemunhos de vítimas validados. A mostrar como havia assunto e vontade de cidadãos em falar nele. A mostrar que os abusos sexuais na Igreja portuguesa eram bem mais do que uma "sucessão de casos pontuais", como a hierarquia católica sustentou oficialmente até 2021.

A criação de uma Comissão Independente - decidida pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) em Novembro de 2021 - foi aliás resultado de uma negociação dentro da própria cúpula da Igreja, com os setores mais progressistas a vencer a resistência de bispos e setores mais conservadores.

Para isso, contribuíram as "ondas de choque" provocadas pela Comissão que estudou os abusos sexuais na Igreja francesa (ver mapa). A divulgação dos resultados franceses - uma estimativa de 300 mil crianças e jovens abusados ao longo de 70 anos - fez com que centenas de católicos portugueses decidissem assinar uma Carta-aberta exigindo à CEP uma "investigação independente" aos abusos sexuais em Portugal.

As histórias chegaram à Comissão através de encontros presenciais, por via telefónica, videoconferência ou no preenchimento de um inquérito online. Até à última contabilização publicada, em outubro, houve 424 testemunhos validados.
No estudo da Comissão Independente portuguesa a base de trabalho são as denúncias directas. Diferente, por exemplo, da metodologia seguida pela comissão em França, onde o número de pessoas abusadas são uma extrapolação a partir de estudos estatísticos gerais anteriores, onde havia uma amostra representativa da população francesa.

Em Portugal, como em outros países, a grande maioria dos casos denunciados têm décadas, e estão prescritos juridicamente. Dos 424 casos validados, a Comissão Independente enviou menos de 50 para a justiça investigar. Mesmo nesses, a maior parte foi arquivada pelo Ministério Público. Por prescrição, mas também por falta de elementos para desenvolver a investigação.

Bastante analisada pela Comissão Independente foi também a ocultação dos casos de abuso sexual por parte da Igreja. Várias vítimas de abuso testemunharam como foram desconsideradas quando tentavam denunciar à hierarquia. Aliás, ao longo de 2022, várias reportagens (ver Rostos e Histórias) contaram exemplos de encobrimento, inclusive por bispos ainda no activo. No fundo, a igreja portuguesa a repetir a estratégia usada em todo o mundo - desproteger as vítimas, em nome da protecção da instituição Igreja Católica Apostólica Romana.
pub