Como é que a pandemia está a afetar os sistemas alimentares?

por Inês Moreira Santos - RTP
Reuters

A pandemia da Covid-19 já infetou mais de três milhões de pessoas em todo o mundo, condicionando as populações e afetando as economias mundiais. Além dos efeitos epidemiológicos, sociais e económicos, esta crise global tem exposto a fragilidade dos sistemas alimentares e a vulnerabilidade das cadeias de valor globais.

O debate não é recente: a alimentação e a nutrição têm um impacto na nossa saúde. Mas num contexto de crise a nível mundial, como o atual, esta é uma questão que tem ganho mais relevo com a abordagem dos sistemas alimentares globais, a sua organização e o tipo de alimentos que disponibiliza às populações.

Os sistemas globais alimentares estão a ser visivelmente afetados com os efeitos da Covid-19 nas sociedades, e os mais carenciados são as principais vítimas desta pandemia. É necessário que haja respostas e atuação por parte dos governos, mas também da sociedade civil, para promover sistemas alimentares sustentáveis.

A pandemia fez abrandar a economia a nível mundial e, consequentemente, levou à redução de rendimentos e à perda de empregos, afetando o poder de compra, o acesso aos alimentos e até a disponibilidade alimentar no mercado. Isto "é um problema emergente", na opinião de Joana Sousa, da Ordem dos Nutricionistas, que participou no webinar "Emergências na saúde, alimentação e vulnerabilidade", na quinta-feira.

Na sessão online, organizada pela ACTUAR - Associação para a Cooperação e Desenvolvimento, a nutricionista realçou que ainda antes da pandemia, já existiam desigualdades económicas e a nível alimentar em Portugal.

Cerca de 10,1 por cento das famílias portuguesas "experiementavam insegurança alimentar"
, isto é, dificuldade em "fornecer alimentos suficientes a toda a família, por falta de recursos financeiros". E pelo menos 2,6 por cento revelavam experimentar "insegurança alimentar moderada ou grave", tendo que alterar "hábitos alimentares habituais" e reduzir o consumo de alimentos.

Há ainda as famílias com rendimentos próximos ao salário mínimo nacional em que "a realidade de insegurança alimentar é significativamente mais elevada e mais severa". O que preocupa a nutricionista é que a pandemia vai agravar as desigualdades já existentes em Portugal.

"Este é que é o grande problema: o aumento da desigualdade que vai existir em Portugal relativamente à situação alimentar", lamentou Joana Sousa.
Segurança alimentar - direito a uma alimentação saudável

Existem medidas e apoios diversos - como por exemplo, o Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas e a Rede de Emergência Alimentar do Banco Alimentar - mas as medidas políticas em curso, em pleno contexto pandémico, de apoio à economia, não priorizam o "direito a uma alimentação saudável, equilibrada e adequeada".

Embora não existam medidas políticas delineadas para as questões de segurança alimentar em Portugal, Joana Sousa lembrou o papel fundamental e a mobilização da sociedade civil na promoção e no auxílio alimentar dos mais carenciados, principalmente nas últimas semanas.

"O impacto de atuação tem sido privilegiado, exclusivamente, pela sociedade civil no sentido de potenciar e promover o auxílio aos que estão mais desfavorecidos", enalteceu.

Urge o combate à pobreza extrema e à insegurança alimentar moderada e grave, situações já existentes em Portugal mas que "perante a conjuntura atual vai agravar esta realidade no país", relembra a nutricionista.

Neste sentido, e considerando o agravamento das desigualdades, a Ordem dos Nutricionistas privilegia a elaboração de uma Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que assegure uma abordagem holística daquilo que é o direito a uma alimentação adequada, "reforçando o envolvimento de todos e em todos os domínios, ou seja, na globalidade do sistema alimentar", como a melhoria das práticas ambientais, económicas e sociais na agricultura e nos sistemas alimentares gerais.

É necessário, acrescentou a nutricionista, uma "melhor rentabilização de recursos".

Os efeitos da pandemia na alimentação, no entanto, não passam apenas pelos impactos na economia e na disponibilidade de alimentos, mas também na saúde da população que pode ficar gravemente deteriorada após a pandemia.

Considerando o contexto pandémico, "o confinamento a que fomos sujeitos, a alteração de comportamentos – quer do ponto de vista de saúde alimentar, quer do ponto de gasto energético – e os indicadores de excesso moderado a elevado de peso" em Portugal, a nutricionista não tem dúvidas de que se vai "incrementar significativamente esta realidade, potenciando o fator de risco também associado à insegurança alimentar e à implicação na saúde".

A nutricionista alertou, assim, que as necessidades nutricionais e a insegurança alimentar são uma realidade e que se agravam quando associadas às "doenças crónicas não transmissíveis", como a obesidade ou a diabetes, por exemplo.

O foco neste momento é a prevenção e o tratamento da Covid-19, mas é necessário não descurar deste problema. Aliás, "a promoção da saúde é tão importante como o tratamento da doença".
"Está a haver um aumento significativo da prevalência destes indicadores a nível da população, dado as alterações de comportamentos que todos fomos obrigados a adotar, nestes últimos tempos".

É necessário, por isso, colmatar as desigualdades socioeconómicas, assim como as condições de acesso aos cuidados de saúde, a alimentação e nutrição. Uma das soluções apontadas pela convidada do webinar foi o aumento da ação de profissionais.

"É fundamental o papel de um nutricionista escolar, de nutricionistas na realidade de uma autarquia, do poder local, porque o que existe a nível nacional é muito escasso para o que é a real necessidade".

Para a Ordem dos Nutricionistas, é importante não desvalorizar "a alimentação da população em geral em tempo de isolamento".

A saúde mental, por exemplo, "tem um impacto relevante nos comportamentos alimentares e nas opões e escolhas alimentares, e com aquele sentimento da compensação", esclareceu Joana Sousa.

"A verdade é que podemos estar numa fase de alteração de padrão e comportamento alimentar com um risco elevado para a saúde da população em geral".

Recorde-se que pessoas portadoras de doenças crónicas, geralmente, são mais suscetíveis a infeções, sendo consideradas grupo de risco para a Covid-19.
Soluções para a economia e a alimentação

Mesmo em contexto pandémico, o problema não é apenas a falta de alimento, mas sim de nutrição adequada.

A criação de parcerias entre entidades - como pequenos agricultores e mercados locais, por exemplo - e a seleção preferencial de alimentos de produção local e de cadeia curta são algumas das medidas propostas, como critérios de qualidade alimentar, pela Ordem dos Nutricionistas, no sentido de erradicar a pobreza, colmatar as desigualdades socioeconómicas e promover uma alimentação saudável.

O aumento das desigualdades e dos casos de pobreza, anunciadas pela chegada da pandemia e o abrandamento económico, pode potenciar a vulnerabilidade das populações a doenças relacionadas com a alimentação e até a possíveis pandemias futuras.

O surto do novo coronavírus em Portugal "já está" a agravar as desigualdades socioeconómicas em Portugal, na opinião de Ana Vizinho da Rede Europeia Anti-pobreza - EAPN, também oradora da webinar, promovida no âmbito do projeto Alimentação é Direito, da ACTUAR.

"Num mês e meio, houve muita coisa que mudou e, no ponto de vista alimentar, mudou drasticamente", afirmou, acrescentando que "a insegurança alimentar e a carência alimentar aumentaram imenso".

Não se sabe ao certo quantas famílias em Portugal já estão a ser severamente afetadas, mas desde que foi lançada a campanha da Rede de Emergência Alimentar do Banco Alimentar já foram contabilizados "cerca de 55 mil pedidos a nível nacional".

No Banco Alimentar, "as equipas de apoio integraram, num mês e meio, mais 100 pessoas" e aumentaram a distribuição de mais refeições diárias.

Também o Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (POAPMC) prevê que, até agosto, o número de pessoas carenciadas a necessitar de auxílio passe de 60 mil para 90 mil, considerando a "identificação das necessidades".

E estes casos recentes, que começam a aumentar, são "pessoas que estão em lay-off, pessoas que ficaram desempregadas", assim como pessoas sem "vínculos laborais" ou com trabalhos temporários que, numa situação de pandemia, "ficaram sem rendimento, praticamente, de um dia para o outro".

Mas as carências que levam mais pessoas a procurar ajuda não são apenas alimentares. "Estão a surgir várias necessidades do ponto de vista do fornecimento de água", tanto para consumo como para uso na higiene, esclareceu Ana Vizinho.

A verdade é que muitos estabelecimentos de restauração forneciam água, por exemplo, a populações que viviam na rua. Agora, com o encerramento destes, estas pessoas ficaram ainda mais carenciadas.

Contudo, a responsável da EAPN salientou que há entidades, como o Banco Alimentar e "as cantinas socias", que estão a tentar dar resposta a todos os casos identificados. Também as escolas estão a fornecer refeições, lembra, "para os alunos dos escalões mais baixos" até ao Ensino Secundário.

Elogiando a atuação de diversas autarquias, Ana Vizinho frisa que as câmaras têm assegurado a resposta aos mais carenciados através de "diferentes sistemas de apoio". "Uns fornecem cabazes, outros fornecem vales para compras".
Mais apoios "não significa mais comida"
A questão, no entanto, não é apenas a garantia da resposta às carências alimentares, mas também o tipo de produtos alimentares distribuídos.

Na POAPMC "existe uma lista de 25 produtos que são mensalmente distribuídos pelas famílias apoiadas e que estão pensados no ponto de vista da alimentação saudável, das necessidades nutricionais e da faixa etária". Neste momento, não estão a ser garantidos todos os produtos da lista, "há algumas falhas", mas "há preocupações que permanecem".

Já em bancos alimentares, em algumas regiões já só há, "praticamente, massa e arroz para dar". Com o aumento de pedidos e a necessidade de distribuir a mais famílias carenciadas, "a questão da variedade e da qualidade dos produtos acaba por ser uma questão se coloca a seguir, não no imediato", explica Ana Vizinho.

"As organizações estão, neste momento, sobretudo com muita dificuldade em conseguir chegar a todas as famílias". 
"E existem ainda pessoas que não estão a pedir nem a receber apoio alimentar, mas a sua contração orçamental é também uma contração alimentar".
De uma coisa Ana Vizinho tem a certeza: com a pandemia surgiram mais pessoas a necessitar de apoio, mas também "surgiram algumas respostas que não existiam, embora isso não signifique que haja mais comida".

Há ainda uma questão que, a maioria destas entidades, não consegue garantir: a variedade, o as necessidades nutricionais e a opção de escolha.

Estas organizações "não permitem nem garantem a escolha de produtos". Isto é, "não há soberania na escolha". Apenas nos cabazes distribuídos pelas autarquias, que identificam quais os produtos de que as pessoas precisam e "quais gostaria de receber", ou quando distribuídos os vales de compras.

Mesmo antes da pandemia, não existia "propriamente uma política alimentar em Portugal, muito menos direcionada para as pessoas em situação de vulnerabilidade". Mas em situações de emergência, como a que vivemos, há "uma acentuação" destes problemas, mas a "uma escala muito maior".
Fraca nutrição potencia mais doenças

Os efeitos na economia e na alimentação também se fazem sentir noutras regiões do mundo. Na verdade a dificuldade de acesso aos produtos alimentares e a variedade nutricional são apenas uma pequena parte do problema, segundo a coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília, Elizabetta Recine.

"O pico do iceberg deste processo são as doenças crónicas, degenerativas e a obesidade", afirmou na sua intervenção no webinar.

Neste momento, a preocupação "é que a abordagem sistémica se foque mais numa visão nutricional, na produção de nutrientes e não apenas na produção de comida".

"A pandemia atingiu o Brasil num momento em que se vivia um acelerado crescimento da pobreza e da extrema pobreza, com filas enormes nos programas de transferência de renda e a pandemia trouxe mais desemprego e subemprego. Ou seja, a Covid-19 chegou com um tecido social muito vulnerabilizado e uma política económica extremamente liberal".

Num contexto social como o brasileiro, com a chegada da pandemia impôs-se a necessidade de responder às carências de muitas famílias. Muitas crianças garantiam parte da sua alimentação na escola, mas foi necessário redefinir a agenda do programa de Segurança Alimentar e Nutricional, como "uma adaptação do Programa Nacional de Alimentação Escolar".

Nesse sentido, o orçamento destinado à alimentação escolar tem sido aplicado "na compra de alimentos para as famílias ou na entrega de vouchers para que as famílias possam adquirir alimentos", uma vez que as escolas estão encerradas em todo o país.

O maior problema, na sua opinião, é que "há uma tendência para o aumento das compras de alimentos não-saudáveis”, quando as famílias usam os vouchers nos grandes supermercados.

A Sociedade Civil brasileira, no entanto, propôs o investimento do Governo para a "intensificação da compra na Agricultura Familiar e que esta seja destina a diferentes programas públicos, como bancos alimentares".

A ACTUAR, com o projeto Alimentação é Direito - cofinanciado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação Bissaya Barreto - tem como objetivo criar literacia sobre o tema do direito a uma alimentação adequada em Portugal. A sessão "Emergências na saúde, alimentação e vulnerabilidade" está integrada num ciclo de "Conversas à Mesa" com temas adaptados ao contexto da pandemia da Covid-19.

Em Portugal, já existe um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que prevê a intrevenção de várias entidades, mas a sociedade civil "não participa formalmente", lamenta Joana Dias coordenadora da ACTUAR.

Por isso, e "numa tentativa de estimular o dialogo entre diferentes atores da sociedade civil envolvidos nestas temáticas",  estes espaços de conversação visam a reflexão crítica e a "articulação entre os diferentes intervenientes".
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