Conselho da Europa alerta Portugal para ação mais determinada contra racismo

por Ana Sofia Rodrigues - RTP
Manifestação "Mundo contra o racismo", a 21 de março, em Lisboa António Cotrim, Lusa

Num memorando publicado esta quarta-feira, a comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, insta as autoridades portuguesas a combater de forma mais determinada o aumento do racismo no país e a dar passos adicionais para prevenir e combater a violência contra as mulheres.

O memorando baseou-se no trabalho de monitorização da comissária e aborda o crescimento do racismo e a persistência da discriminação racial no país, bem como a resposta das autoridades portuguesas. Aborda ainda “o problema persistente da violência contra mulheres e da violência doméstica”.

A comissária Dunja Mijatović manifesta preocupação face ao aumento do número de crimes motivados pelo ódio racial, assim como do discurso do ódio, visando particularmente os ciganos, os afrodescendentes e as pessoas percecionadas como estrangeiras em Portugal.

Perante o problema, “a comissária recomenda a implementação de um plano de ação abrangente contra o racismo e a discriminação, exorta as autoridades a condenar firme e publicamente todas as manifestações de discurso do ódio e insta vivamente os políticos a que se abstenham de utilizar ou tolerar retórica racista”.

Numa nota difundida aos meios de comunicação social, é referido que apesar dos alertas, são saudadas “as medidas importantes tomadas para melhorar o quadro jurídico e institucional consagrado à luta contra a discriminação”, instando as autoridades portuguesas “a prosseguir os seus esforços e a assegurar que a legislação civil, administrativa e penal seja plenamente consentânea com as normas internacionais”.

Dunja Mijatović recomenda ainda que a polícia e o Ministério Público adotem uma definição mais lata de “crime de racismo” e realizem rapidamente uma investigação rigorosa e imparcial a todos os incidentes de cariz racista.
Confrontar o passado colonial
No memorando, a comissária considera que o país necessita confrontar o seu passado colonial. “É importante tomar consciência das estruturas historicamente repressivas do colonialismo, dos preconceitos racistas entranhados na sociedade e das suas ramificações até aos nossos dias”, afirma a Comissária.

Nesse sentido, Mijatović afirma serem necessários esforços para debelar os preconceitos racistas contra as pessoas de ascendência africana, herdados de um passado colonial e do período da escravatura e aponta os currículos escolares para atingir essa consciencialização.
Portugal terá transportado pelo Atlântico cerca de seis milhões de escravos africanos, mais do que qualquer outro país no mundo, refere a agência Reuters, acrescentando que raramente isso é referido no sistema educativo.
“Esforços adicionais são necessários para Portugal chegar a um acordo sobre o passado de violações dos direitos humanos, para combater os preconceitos racistas contra os afrodescendentes, herdados de um passado colonial e do comércio de escravos”, refere o Conselho da Europa, ao mesmo tempo que urge Lisboa a repensar a forma como ensina a história colonial nas escolas.

Destacando as iniciativas destinadas a combater a discriminação contra os ciganos, a Comissária recomenda, contudo, a intensificação destes esforços, para rejeitar o anticiganismo, “que continua disseminado na sociedade portuguesa e presente no discurso público de certos responsáveis políticos”, apontando o dedo ao partido Chega.

O memorando escreve que os representantes do Chega “dão frequentemente mostras de xenofobia, afrofobia e anticiganismo para concitar apoio e votos populares; graças a frequentes diatribes racistas, homofóbicas e sexistas e por vezes propostas políticas extremistas, o partido conseguiu rapidamente aumentar a sua presença no espaço público e nos debates mediáticos”.

O Chega conta com dois anos de atividade, um lugar de deputado e uma votação expressiva nas recentes eleições presidenciais.
Racismo na polícia
A comissária confessa preocupação com o racismo na polícia e relatos de infiltração de movimentos de extrema-direita em alguns segmentos da polícia.

“As autoridades portuguesas devem aplicar uma política de tolerância zero para com qualquer manifestação de racismo por parte da polícia”, adverte.

Recomenda, por isso, a melhoria da formação em matéria de direitos humanos para os agentes da polícia, bem como dos procedimentos de recrutamento e dos critérios de seleção para que os grupos minoritários estejam mais representados entre os efetivos da polícia, a todos os níveis hierárquicos.

A Comissária recomenda a criação de um mecanismo totalmente independente para analisar as queixas relacionadas com maus-tratos imputados à polícia.
Plano nacional de combate ao racismo
As queixas de discriminação racial aumentaram 50% para 655, em 2020, mas este número é provavelmente mais baixo do que o rácio real de incidentes racistas, admite à Reuters a secretária de Estado para a Igualdade Rosa Monteiro.

“A nossa narrativa histórica é uma ferida séria que não foi convenientemente tratada. Para a curar, temos de falar sobre o que se passou", diz Rosa Monteiro, acrescentando que o país está a preparar um plano nacional de combate ao racismo.

O Governo português assumiu no ano passado que o racismo se tornou um problema. Em novembro criou um comité para encontrar formas de combater a situação, incluindo a publicação de um plano nacional de combate ao racismo e discriminação para o período de 2021-2025.

As autoridades comprometeram-se ainda a lançar este ano uma campanha contra o racismo e discriminação, bem como uma revisão das regras de recrutamento da polícia.

Ao mesmo tempo, está a ser preparado um memorial evocativo das vítimas da escravatura, em Lisboa. Uma obra do artista angolano Kiluanji Kia Henda com folhas de palmeira pintadas de negro.

Entre os recentes exemplos de racismo aparecem a morte a tiro de um ator negro na rua e os emails com ameaças contra deputados negros.
Empenho contra a violência doméstica
A comissária congratula-se com o empenho de longa data das autoridades portuguesas em eliminar a violência doméstica, “com a sua ação determinada com vista a pôr fim a atitudes paternalistas e a estereótipos de género profundamente enraizados, bem como com o seu trabalho no sentido de tornar realidade a igualdade de género em todas as esferas da vida”.

O Conselho da Europa diz que “não obstante, a violência contra as mulheres continua a ser um fenómeno que regista níveis alarmantes em Portugal”.

“As autoridades devem, consequentemente, tomar medidas adicionais para fazer evoluir as mentalidades e sensibilizar mais o conjunto da sociedade para o facto de a violência contra as mulheres, nomeadamente a violência doméstica, constituir uma violação grave dos direitos humanos e, por conseguinte, um crime cujos autores devem ser responsabilizados”, refere.

A comissária apela às autoridades para que tomem medidas que assegurem que os crimes de violência doméstica e os crimes sexuais, incluindo a violação, sejam devidamente investigados e punidos e que as penas sejam proporcionais à gravidade desses crimes e suficientemente dissuasoras.

Pede-se que as autoridades melhorem a formação dos membros das forças da ordem, dos magistrados e, de uma maneira geral, de todos os que oferecem serviços de apoio às mulheres vítimas de violência.

Dunja Mijatović saúda ainda as mudanças que fazem com que as crianças que testemunham a violência doméstica sejam consideradas, acima de tudo, como vítimas e recebam a proteção de que necessitem.

Por último, a Comissária recomenda que as autoridades voltem a alterar a definição de violação que consta do Código Penal e assegurem que esta assente inteiramente na ausência de livre consentimento da vítima.
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