Embaixadora da Índia: "O marido de uma diplomata tem de ser muito seguro de si"

Mudar de país não a assusta - entusiasma-a. A menina de Karnataka que só saiu do Estado aos 18 anos é hoje embaixadora da Índia e diz que parte do segredo está na espiritualidade.

Nandini Singla fala pausadamente, nunca eleva a voz, ouve atentamente as perguntas, sorri como quem é impermeável à agitação ou à inquietude. Ela apreendeu o melhor que a Índia tem para oferecer: a mensagem de espiritualidade, de aceitação do presente, do foco na respiração, de amor pela humanidade que inclui os humanos mas também as estrelas, as árvores ou as cadeiras. 

É embaixadora da Índia em Portugal até julho deste ano. Ainda não sabe qual será o seu futuro mas não é nada que a preocupe: "A vida é mudança. É imprevisibilidade", desvaloriza. Nandini é também mãe de dois rapazes que estão consigo em Lisboa e mulher de Sanjeev Kumar Singla, diplomata que ficou em Nova Deli porque os filhos quiseram vir para Portugal. É preciso ter muita cautela na hora de escolher um marido, avisa: "Esse é um dos maiores desafios para as mulheres que querem ser diplomatas. Tens de ter um marido que não se importe de mudar de país a cada 3 anos ou 4 anos e que tenha uma carreira que permita isso. Ou que não se importe de não ter uma carreira. Tem de ser um homem com muita auto confiança", sublinha.

Escolheu Portugal como primeiro posto para ser embaixadora sem nunca ter visitado o país, mas agora alegra-se por fazer amigos só por ir passear o cão ao final do dia, em Belém. Antes de julho de 2016 está uma carreira sólida na diplomacia, que começou em 1999, quando foi nomeada responsável pelas áreas da Cultura e Media da Embaixada da Índia em Paris, França. Seguiram-se várias missões ligadas à ONU e o cargo de responsável pelas relações diplomáticas da Índia com os países da Europa Ocidental, incluindo Portugal. 

Nandini recusa fazer planos porque "os objetivos fixos são sempre produto dos poucos dados que nós temos". A prática de yoga com uma professora portuguesa e de meditação ajuda-a a manter a postura e o foco tranquilo, essencial para enfrentar relatórios, receções e reuniões de negócios. Espera, mas não de forma ansiosa, pelo dia em que pode voltar a reuniar a família. O marido, revela, está ansioso por se reformar: "Ele é mais velho que eu, então diz que quando se reformar vai passar os dias a fazer os melhores jantares para mim, os melhores pequenos-almoços, as melhores festas" (risos). E reforça a importância de encontrar o companheiro certo. 


Quando foi anunciada como embaixadora para Portugal, o jornal The Hindu escreveu que a sua nomeação mostrava como uma "rapariga de uma terra pequena podia ir longe". Revê-se nesta frase?

Totalmente. Eu cresci em aldeias e, na minha escola, tínhamos de nos sentar no chão porque não havia mesas nem cadeiras. Mas sempre sonhei alto. Quando tinha 16 ou 17 anos, entrei nos National Cadet Corps (NCC) na Índia, um corpo de cadetes militares que está aberto a estudantes. Aquilo era mesmo treino militar, eu gostava imenso. Aprendi a disparar armas, a saltar de um helicópetro com páraquedas, a correr certos quilómetros no mínimo tempo possível. 

Era comum uma rapariga fazer isso? 

Não era comum, aquilo era voluntário. A maioria das atividades estava ligada à escrita, como a datilografia, mas eu ficava aborrecida. Vi um anúncio para os NCC na minha escola e a ideia de me vestir igual aos soldados entusiasmou-me, então inscrevi-me. 

Os seus pais aprovaram, então. 

Se não fossem os meus pais, eu não estaria aqui sentada hoje. 

Porquê? 

Sempre me deram liberdade. Eu ia para o treino dos NCC às 5 da manhã, fazia 12 quilómetros de bicicleta, às vezes com frio e com vento, e eles nunca me travaram. Um dia os meus treinadores disseram-me que eu devia concorrer para os Melhores cadetes do país. Parecia-me impossível, mas pensei: O que é que eu tenho a perder? Concorri, fiz vários campos durante 2 anos e, no fim, ganhei a oportunidade de fazer um programa de intercâmbio para jovens. Estávamos em 1991, eu tinha 18 anos e fui passar quatro meses e meio ao Canadá. Nunca tinha viajado de avião, nunca tinha sequer saído do meu estado Karnataka. Foi inacreditável. Sair pela primeira vez e logo para um dos países mais ricos do mundo. Vivíamos numa família lá, chamavamos-lhes mãe e pai, e faziamos trabalho com a comunidade. Eu trabalhava num serviço de apoio a mulheres onde tínhamos adolescentes grávidas, raparigas com problemas de droga, um mundo novo. Foi um abrir de olhos pra mim, percebi que o mundo era gigante. Percebi que a Índia, apesar de ser um país pobre, tinha muito para ensinar aos países ricos, sobretudo no que diz respeito à espiritualidade e à paz interior. Lembro-me de pensar: Eu devia era ser diplomata, para ligar culturas e para espalhar as boas mensagens da Índia. Voltei do Canadá e fui para a faculdade para Estudos Diplomáticos. 

Mas sabia o que significava ser diplomata?

Tinha uma ideia. Nós estudamos modelos de comportamentos dos Estados e teorias de Relações Internacionais, mas a vida real é muito mais interessante. Aprendes muito no terreno.

Como é agora ser diplomata? 

É espetacular. Os meus filhos estudam aqui e eu fui convidada para ir falar à feira de emprego da escola deles. O que disse aos miúdos foi: primeiro que tudo, têm de fazer o que gostam. Não vão para um trabalho por causa do dinheiro ou porque é o sonho dos vossos pais. Eu quis ser diplomata porque queria ser uma ponte entre países. É o melhor trabalho do mundo.

Mas como é que consegue ser essa ponte? Como é que isso se faz?


É um daqueles trabalhos em que é difícil quantificar exatamente o que conseguiste naquele mês ou naquele ano. Parte do trabalho é de governo para governo, mas eu acredito que o desafiante é ligar as pessoas desses dois países. Os memorandos que se assinam nas visitas cá e lá não são só pedaços de papel. Têm impacto. O primeiro programa de intercâmbio de jovens entre Portugal e a Índia aconteceu no ano passado. Esteve cá um grupo de estudantes indianos e agora um grupo de estudantes portugueses vai à Índia. Isto são ações práticas. Temos também um fundo conjunto de investigação em biotecnologia, temos ações na área da cultura. Por exemplo: trazer bailarinas e cantoras indianas até cá é diplomacia. Ter filmes de Bollywood a serem gravados aqui é diplomacia. Isso tem “efeitos diplomáticos” para os dois países. Levar o Benfica, o Porto ou o Sporting a abrir campos de treino de futebol na Índia é diplomacia. Diplomacia não é só acordos e relatórios.

Como é um dia de rotina para si? 

São sempre diferentes. Esta manhã tive uma chamada de Deli por causa de um visto que tinha de ser emitidio com emergência. Tenho de resolver as questões da diáspora indiana, tenho reuniões com o governo português,  com professores (porque também fazemos eventos nas universidades), reuniões com pessoas que têm projetos de ligacão à Índia como artistas portugueses, com os media, e recebemos instruções do Ministerio dos Negócios Estrangeiros sobre os próximos passos. Mas, claro, também tenho de preparar relatorios, relatar a situaçao económica e política de Portugal, reforçar o investimento e o comércio, reunir com empresários interessados em Portugal, dar resposta às perguntas deles e fazer a ligação. Há uns meses recebemos 30 empresários indianos em Portugal e tivemos de lhes marcar reuniões com grupos económicos daqui. Depois há sempre receções, jantares, eventos, porque parte do nosso trabalho é fazer contactos, conhecer pessoas. Fui a a um jogo de futebol há umas semanas (risos). O que as pessoas veem como lazer também é trabalho na nossa profissão. 

Os exames para se ser diplomata são muito difíceis?

Na Índia são muito duros. São muitos candidatos. Antes disto tudo tens de fazer um exame preliminar para poderes fazer este exame. Depois são exames de disciplinas, de cultura geral, exame escrito e entrevista. É um ano e meio no total. 

E nunca sabes se vais conseguir no fim desse ano e meio. 

Pois, e só podes fazer este exame quatro vezes. Tenho amigas que passaram toda toda a juventude a tentar e não conseguiram. 



É mulher e é embaixadora, não é a embaixatriz. Qual é a reação das pessoas? 
 
Honestamente, acho que as mulheres têm excelentes capacidades para serem diplomatas. Tu já estás habituada a gerir relações na família e na Índia ainda geres as relações dos dois lados da famíia -- da tua e a do teu marido. E, como mãe, estás sempre a negociar com os teus filhos. As mulheres têm a empatia, a capacidade de se colocarem no lugar da outra pessoa, têm boas capacidades de comunicação, e sabem ligar-se também a um nível emocional. 

Está aqui em Portugal com os seus filhos. O seu marido está na Índia. Como é que gere a ausência dele? 

Essa é a única parte que me deixa triste, porque é a primeira vez que estamos separados. O meu marido também é diplomata e trabalha em Deli como secretário privado do primeiro-ministro. Eu fui destacada como embaixadora aqui, por isso eu trouxe os nossos filhos e ele ficou em Deli. Em muitas coisas é mais difícil para ele do que para mim porque os rapazes estão comigo. 

Porque é que eles não ficaram com ele? 


Porque o meu filho mais velho queria fazer o International Bachelor Program, queria estudar fora e encontrámos um programa muito bom em Sintra, então vieram os dois. Mas tenho saudades de ter a minha família junta. Dois adolescentes rapazes precisam muito do pai. Mas, mesmo longe, o meu marido é um pai incrível. Não sei como ele consegue mas, todos os dias, é ele que vê o horário deles, manda-lhes uma mensagem com os trabalhos de casa, os exames, até faz um horário de estudo para eles e manda-me mensagem a dizer: Imprime e mete à frente da mesa. Eu e ele falamos pelo menos três vezes por dia, graças ao WhatsApp! (risos). Eu ando sempre em compromissos e, quando chego a casa, o pai já sabe tudo sobre a vida deles, às vezes até mais que eu. 

Ele apoiou-a na decisão de vir ser embaixadora em Portugal? 

Sim. 

Qual é a importância de ter o apoio do marido? 

Imensa. A vida de diplomata tem impacto não só em mim, mas também na minha família. A maioria dos eventos a que vais é com a esposa ou esposo, por exemplo. O meu marido também é diplomata, portanto foi fácil. Sabes o que é que ele me diz? Qu está ansioso pelo dia em que se vai reformar - porque ele é mais velho que eu - para ficar só em casa. Ele é um excelente cozinheiro, então já me disse: Tu vais trabalhar, eu vou ficar em casa, vou organizar os melhores jantares para ti, vou fazer pequeno-almoço para ti, o almoço, vou organizar as melhores festas

Então um dos seus conselhos para as raparigas mais novas seria para escolherem o parceiro certo? 

Absolutamente. Esse é um dos maiores desafios para as mulheres que querem ser diplomatas. Tens de ter um marido que não se importe de mudar de país a cada 3 anos ou 4 anos e que tenha uma carreira que permita isso. Ou que não se importe de não ter uma carreira. Tem de ser um homem com muita auto confiança e que seja muito seguro de si próprio. E, claro, que te ame muito. 

Este é o seu último ano em Portugal e ainda não sabe para que país vai a seguir. Como é que se gere não se saber com antecedência para onde se vai? 

Essa é a melhor parte do trabalho (risos).

Não saber? 

Não saber! É o melhor. Essa foi uma das razões que me fez querer ser diplomata: estar sempre a mudar de país. O nosso mundo tem tanta variedade, tanta diversidade. Há tanto para explorar, tanto para aprender. Porque é que eu havia de querer ficar no mesmo sítio a vida toda? E não saber para onde vou faz parte da adrenalida da vida, porque a vida é mudança. É imprevisibilidade. Há uma frase linda que diz isso: A vida é o que acontece enquanto estás ocupada a fazer planos. 



Muitos diplomatas falam na vontade de, no fim da carreira, devolver ao seu país parte do que receberam. Também tem esse sentimento? 

Sim, quero sobretudo inspirar os mais jovens. A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, temos mais de 800 milhões de jovens. Vamos ter eleições para o Parlamento em maio e o número de raparigas que vão fazer 18 anos e votar pela primeira vez é igual ao número de habitantes de França — só o numero de novas raparigas a votar. O número de novos rapazes que vai poder votar é igual ao número de habitantes do Reino Unido. Isto é uma oportunidade gigante. Vejo muitos jovens inteligentes, espertos, com potencial, que não têm as oportunidades que mereciam. Eu gosto muito de ensinar, adoro ligar-me aos mais novos. Lembro-me de ser jovem e de ter tido várias pessoas que me abriram a cabeça. Teres as referências certas nessa idade é determinante e eu quero ter esse impacto na vida de alguém. Eu cresci num bom ambiente, mas na Índia há muita coisa que precisa de mudar, sobretudo a mentalidade nas áreas mais rurais, onde há muitos estereótipos de género. Há a ideia de que as mulheres devem ficar em casa, a cuidar dos filhos...

Não foi o caso da sua família. 

Não, porque a minha mãe quis ficar em casa a cuidar dos filhos. Foi o contrário. O meu pai queria que ela fosse médica porque ela vinha de uma família de médicos, mas ela quis canalizar o tempo dela para cuidar dos quatro filhos. Foi uma opção dela, que também deve ser respeitada.

Qual é a importância da espiritualidade na sua vida? 

É total. A espiritualidade é a mensagem mais importante da Índia. Nós acreditamos que somos todos iguais. E quando digo ‘nós’, não me refiro só aos seres humanos mas também à árvore, à água do rio, à pedra, às estrelas. Na Índia nós acreditamos que tudo isto é feito da mesma energia, uma energia que vai vibrando a frequências diferentes. No nosso mundo há culturas, países, religiões, mas são tudo criações artificais nossas. Separámos o mundo por linhas arbitrárias e demos nomes diferentes a cada pedaço mas, na verdade, somos todos uma humanidade. Na Índia ainda vamos mais longe: dizemos que somos todos um cosmos. O mundo é uma família. 

Pratica yoga e meditação? 

Pratico yoga três vezes por semana com uma professora portuguesa fantástica e faço meditação todos os dias. O yoga e o Ayurveda, que é o sistema tradicional indiano de cura baseado na natureza, guiam-te para ascenderes a esta consciência espiritual. Nós não lhe chamamos religião, chamamos espiritualidade. Para nós não há aquela questão da salvação, porque isso é como se tivesses de encontrar a solução fora de ti. A salvação já lá está dentro de ti, só tens de a descobrir. Está tudo no auto-conhecimento e auto-concretização.  Se 'limpares o pó', percebes que és simplesmente energia. Na Índia nós dizemos que a mente é como um macaquinho que está sempre aos saltos. Nós estamos sempre com pensamentos na cabeça. Estás a lavar os dentes e estás a pensar, a pensar, a pensar. 

A pensar no que fizeste naquele dia e no que tens para fazer amanhã. 

Normalmente é o passado e o futuro. É a memória e a imaginação, e nenhuma delas é real. O único momento real é agora. Se viveres e aceitares o momento de agora sem pensar no futuro nem no passado, estás sempre feliz. E isso é espiritualidade. Nós trazemos sofrimento para as nossas vidas porque não aceitamos a realidade do momento presente. Tu perdes o autocarro e ficas, Fogo, porque é que perdi o autocarro? Devia ter saído de casa mais cedo! Ou: Os motoristas estão sempre atrasados. Não estás a aceitar realidade. No momento em que aceitas: Sim, perdi o autocarro, aceito isto, tornas-te criativa e encontras a solução certa. Estamos sempre a pensar no passado, a preocupar-nos com o futuro, e nenhum desses momentos é real. Por isso é que no yoga nos focamos na respiração, porque a respiração é o momento do agora e está sempre contigo. Acho que estas mensagens são muito importantes, sobretudo no nosso mundo de pessoas escravizadas pelos telefones, viciadas nas redes sociais, jovens que estão tão desconectados de si próprios e sempre à procura de validação de fora. 
   
O que é que uma diplomata é que todos devíamos ser?

Como diplomata, tens de saber o que estás a dizer, os factos, tens de ter cuidado com as palavras porque a diplomacia é feita de brincadeiras de linguagem. Acho que é muito importante estares segura de ti própria. O nosso trabalho é transmitir mensagens, é preciso ter a habilidade de usar a palavra certa, a expressão certa, e o nosso corpo também fala. Também tens de trabalhar a linguagem corporal, porque as pessoas sentem quando estás a ser honesta ou não. Acho que nunca devemos ter um objetivo fixo na vida, porque a vida é muito maior do que sabemos. Cada objetivo que traçamos é resultado da pouca informação que temos. O universo é muito maior que isso. Se nos abrirmos à vida, todas as possibilidades se abrem também. Porquê limitarmo-nos?