Mutilação Genital Feminina. "Até Deus disse para não modificar o que ele fez. Se viemos ao mundo completas, porque é que temos de ir incompletas?"

Na Escola Secundária da Baixa da Banheira foram sinalizados casos de mutilação genital feminina. Uma associação trabalha com as turmas desde 2013. Ainda há rapazes que consideram a prática "boa" para as raparigas andarem "mais controladas e calminhas".

"Os mais velhos diziam que era preciso fazer para ser aceite, para poder casar, fazer comer para o marido, para ser uma mulher pura. E eu pensava: pronto, se dizem, então é normal. Agora já não acho isso. Se é uma coisa que faz mal, temos de perguntar porquê. Mas na altura não tinha noção".

Renata tem 23 anos, completou o 12º ano na Escola Secundária da Baixa da Banheira, especializou-se na área do Comércio, tem experiência profissional em Restauração/Bar e como Cabeleireira. É guineense e está à procura de emprego em Portugal. É também uma das cerca de 6.600 mulheres a viver em Portugal que foram submetidas à prática da mutilação genital feminina. 

Renata, fotografada na Escola Secundária da Baixa da Banheira, na Moita.

A prática consiste no corte parcial ou total dos lábios vaginais e/ou do clitóris. É habitualmente executada com uma navalha, com uma lâmina ou com um pedaço de vidro. O nome mais comum é "fanado" e o ato é executado pelas "fanatecas", mulheres que estão incumbidas de excisar as meninas e raparigas. 

Há cerca de 50 países no mundo onde a excisão é praticada, a maioria na África negra. As migrações eliminaram fronteiras e, por isso, haverá mulheres que foram submetidas à prática um pouco por todo o mundo. 

Em Portugal, entre 2014 e 2017, foram detetados 237 casos de mutilação genital feminina, anunciou esta terça-feira a secretária de Estado para a Igualdade, Rosa Monteiro. É em consultas médicas que grande parte dos casos são detetados. Só em 2016, foram registados 80 casos de mulheres excisadas na Plataforma de Dados de Saúde do Serviço Nacional de Saúde. A maioria destas mulheres, hoje com 30, 40 e 50 anos, foram excisadas no país de origem, quando ainda eram crianças. 


Muitas vezes são as avós e as tias - também elas excisadas - que fazem a excisão às netas e sobrinhas. Foi o que aconteceu com Renata. Aos 7 anos, a tia decidiu avançar com a excisão da sobrinha, em nome da "pureza" do corpo e outras crenças apresentadas sob a forma de "tradição". A mãe só soube o que tinha acontecido quando Renata começou a ter infeções constantes. 

"Eu só soube o mal que fazia quando vim para Portugal. Em 2013 tivemos a primeira palestra sobre este tema, algumas formações com enfermeiras, e eu comecei a ter noção... Porque para mim era uma coisa normal. Eu estava a ter uns problemas de infeções, tinha dores horríveis quando estava com o período, mas não tinha coragem de dizer... E pensei: se calhar a origem é essa". 


Desde 2013 que a associação Mulheres Sem Fronteiras desenvolve iniciativas sobre mutilação genital feminina na Escola Secundária da Baixa da Banheira. Porquê nesta escola? "Porque em 2010, 2011, houve casos sinalizados aqui de meninas que teriam sido submetidas à prática. E ficou registado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género como um dos territórios a precisar de intervenção", conta Alexandra Alves Luís, presidente da associação. Entre os casos identificados estão jovens guineenses. 

A escola é frequentada por muitas alunas imigrantes de países onde a prática é frequente. Daí vem a necessidade de intervenção mas vem também o receio em relação à comunidade. "No primeiro contacto que fizemos com a escola, para fazermos ações sobre este assunto, tinham receio de como é que a comunidade ia reagir", conta Alexandra. Mas avançaram. 

"As professoras e professores disponibilizam tempos letivos para trabalharmos com os alunos. Com as raparigas e com os rapazes, da escola toda, e não só com os grupos étnicos onde a prática é mais frequente", sublinha à RTP. A ideia é trabalhar a excisão através da arte: veem filmes, fazem debates, coreografias, assinalam os dias relacionados com igualdade de género (25 de novembro, 8 de março, 6 de fevereiro, etc). 

"Os homens é que têm de dizer 'não'. Eles é que mandam"

Foram esses mesmos alunos do 10º, 11º e 12º que assistiram ao filme "A Tua Voz", sobre o fenómeno, no âmbito do Dia da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina. Seguiu-se um debate sobre o fenómeno com Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Nóemia Braz, uma das professoras responsáveis pelo projeto, Teresa Fragoso, presidente da CIG, Rui Garcia, presidente da Câmara Municipal da Moita, Sofia Branco, jornalista e autora do livro "Cicatrizes de Mulher" e Alassana Baldé, antigo aluno e ativista pelo fim da prática.

Hoje, Alassana tem 24 anos e está no ultimo ano do curso de Direito, na Universidade de Lisboa. Mas foi ali, na Baixa da Banheira, que estudou e cresceu. E foi ali que, aos 19 anos e na sala de aula, começou a ficar mais sensibilizado para o tema. "Quando falámos na escola, fui para casa muito triste. Eu sou guineense, como é que isto acontece? Como é que os meus compatriotas fazem isso? Isto não tem nada de bom. E pode acontecer à minha irmã! Não estou a falar de estranhos", diz à RTP.

Alassana Baldé defende o fim da prática que deixa "muito mais que marcas físicas". Teresa Fragoso, presidente da CIG, à esquerda.

Alassana esteve na mesa de debate, sério no papel de orador, mas é também protagonista no filme "A Tua Voz" - o que ainda lhe arranca algumas gargalhadas cabisbaixo de vergonha - e é popular na escola. Os atuais alunos conhecem-no, fazem cumprimentos engendrados que envolvem mãos e braços. Afinal, ele foi presidente da associação de Estudantes. 

Quando o assunto começou a fazer parte das aulas, "ninguém sabia" como o abordar. "Sobretudo porque tínhamos entre nós pessoas que tinham passado pela prática. Isto não é uma coisa saudável, é uma cicatriz para a vida. Ao falar com a pessoa consegue-se ver mesmo como a pessoa está magoada, é uma mágoa para a vida. É uma colega tua, tu vês que sofreu muito. Aquilo fica na alma da pessoa".

Alassana Baldé assumiu o fim da mutilação genital feminina como uma das causas da sua vida. Porque este não é um assunto de mulheres mas é, sobretudo, um assunto de homens, defende. "A minha avó paterna foi submetida à prática, mas as irmãs já não. Podiam ter sido, mas o meu pai disse 'não!'. Na Guiné, os homens têm um papel preponderante. A diferença entre o que a mulher pode e o homem pode é gritante. Quem decide é o homem. Para isto acabar, cabe mesmo aos homens dizer não. Porque se os homens disserem: "Não, a minha filha não vai fazer isto", nenhuma mulher se vai atrever a levar a filha lá. O homem ja disse não, é não", remata. 

"Elas são umas assanhadas. Assim ficam mais controladas, mais calminhas"

Mas nem todos os rapazes pensam como Alassana. Nas primeiras vezes em que se fala do assunto, as alunas tendem a considerar que a prática é, de facto, má, que "só tem consequências negativas" para elas e que "não faz nenhum sentido". 

A reação dos alunos já é diferente. Parte dos rapazes das turmas tem uma tendência para "considerar a rapariga como igual", como alguém que pode estar ao mesmo nível. Sobre a prática, consideram desde logo que "não há razão" para fazer esta intervenção e que "os nossos genitais, tal como qualquer outra parte do nosso corpo, são sãos", revela Alexandra. 

Mas há outro grupo que prefere que "a mulher não tenha os mesmos direitos que eles" e que vê a submissão da mulher ao homem como algo "saudável e positivo", ilustra a investigadora e presidente da associação.

"Usam até algumas expressões, como por exemplo: 'Ah, elas são umas assanhadas, são umas saídas... Às vezes usam até umas palavras menos próprias. Quando percebem as complicações físicas que o ato tem, dizem assim: 'Bom, isto é pena é fazer mal, porque senão até era bom, porque elas assim até estavam mais controladas, não procuravam tanto os homens'.

Alguns dizem: 'Bom, se fizessem isso no médico, com mais condições, eu acho que era bom continuar, porque assim ficavam mais calminhas'. Porque têm esta ideia de que, no fundo, as mulheres não deviam ter desejo sexual, as raparigas não deviam ter vontade de estar com rapazes", conta. 

Alexandra Alves Luís acompanha Renata desde o início
"Dá-nos prazer, então querem que a gente tire. Têm medo que traiamos o nosso homem"

É precisamente essa noção do controlo do corpo que prevalece na hora de justificar o ato. Cláudia é amiga de Renata. A família é da Guiné-Bissau mas Cláudia nasceu em Portugal, o que terá sido determinante para ter escapado à excisão. As ações de educação na escola ajudaram ao "à vontade" a falar sobre o assunto.

A opinião está vincada: "Para mim é uma forma de nos submetermos ao homem. Porque se é uma coisa que nasce connosco, porque é que vamos cortar? Dá-nos prazer, então querem que agente tire. Eles têm medo que traiamos o nosso homem".

No âmbito do projeto "Pelo Fim da Excisão. Faço (p)Arte ", organizaram-se também grupos de partilha entre mulheres. Foi aí que ouviu várias histórias de quem foi excisada. "As mulheres com quem eu falei disseram que, quando tinham relações sexuais, doía-lhes. Em vez de ser bom, de sentirem prazer, sentiam dor. E isso não faz sentido", destaca a rapariga de 21 anos. 
O Al Corão, o Governo, os cintos de castidade e o ranking

Ao filme realizado por Margarida Cardoso seguiu-se um debate para assinalar o dia. Sofia Branco foi uma das jornalistas pioneiras a tratar o tema:"Para mim o clique foi em 2002, quando me disseram: isto pode acontecer no teu país. Não devia ser assim, mas aquilo que é mais próximo de nós é aquilo com que nos vamos importar mais. É isso que justifica que um crime que mata duas pessoas nos EUA seja mais importante que morrerem 500 pessoas na Somália", exemplifica. 

Um dos argumentos usados para a continuação da prática prende-se com a religião. Como se fosse algo ditado pelo livro sagrado para os islâmicos. "Na Guiné-Bissau havia muitos imãs que não sabiam ler nem escrever mas juravam a pés juntos que a prática estava no Al Corão. Quando não está, de todo".

Desde 2007 que Portugal tem um Programa de Ação para a Eliminação da MGF e a questão está incluída nos programas nacionais de combate à violência contra as mulheres, em capítulos sobre práticas nefastas. Além da MGF incluíam-se também os casamentos precoces, por exemplo. "É preciso capacitar os profissionais da Educação, mas também da Justiça e da Saúde. É preciso trabalhar com as associações e com as comunidades. Não é trabalhar 'para', é trabalhar 'com' as comunidades", sublinha a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro. 

Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, defende um trabalho "em conjunto".

À Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género cabe "apoiar projetos, fazer parcerias com as ONG's, dar apoio às instituições, dar apoio às forças policiais", aponta a presidente Teresa Fragoso. Saber quantos casos existem e em que zonas do país, "para depois pensarmos em respostas para essas zonas em concreto", explica.

E lembrou que existe uma Pós-Graduação em "Saúde Sexual e Reprodutiva: Mutilação Genital Feminina", promovida pela Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, já com várias edições, para que os profissionais de saúde saibam reagir. 

O país parece hoje estar mais preparado para prevenir e acompanhar os casos de MGF. Os números têm rostos. Renata só percebeu a "crueldade" do ato quando viu o cenário de fora. "Vi um vídeo uma vez e fiquei chocada. Achei aquilo horrível, chocante", diz. "Se faz tanto mal à saúde, porque é que temos de fazer? Viemos ao mundo completas e vamos voltar incompletas? Até Deus disse para não modificar o que ele fez".

Teresa Fragoso interpela diretamente os estudantes. "Sabiam que antes as mulheres eram obrigadas a usar cintos de castidade quando os homens iam para as Cruzadas? Era para elas não dormirem com outros homens. Hoje achamos isso impensável. É possível que a Mutilação Genital Feminina venha a ser erradicada e que um dia alguém diga: 'Oh meu Deus, isso existia?"

A Escola Secundária da Baixa da Banheira foi considerada uma das escolas com piores resultados no ranking de 2017, elaborado pelo jornal Público. Aparece no lugar 593º. A notícia não agradou aos alunos da escola mas o ranking deles, dizem, é outro. "A nossa escola apareceu no Telejornal por causa do ranking, mas no ranking que importa nós somos a nº1!", diz Alassana à plateia de estudantes. Eles aplaudem e assobiam.

Alexandra concorda: "É curioso porque esta escola apareceu no fim da lista mas, no que toca aos Direitos Humanos, tem feito progressos incríveis. Os responsáveis abraçaram este projeto, nós temos trabalhado com os alunos ano após ano, temos apoio da escola toda, estão todos sensibilizados. Qual é o ranking que importa?"