Piropos, escuridão, assédio. As ruas são seguras para as mulheres?

Caminhar sem ouvir piropos, andar à noite sozinha e às horas que entender. A Câmara de Lisboa quer que o espaço público seja mais confortável para as mulheres e vários investigadores apontam problemas.

Quando pensa em sair de casa, faz apontamentos mentais sobre o sítio para onde quer ir, as ruas por onde passará até chegar lá, a que horas sairá de casa e a que horas irá voltar. É a partir desses dados que decide o que vai vestir, que transportes vai apanhar e onde os vai apanhar e é a segurança que sente nos vários espaços públicos que vai influenciar as suas decisões.


Reconhece-se nestes comportamentos e é mulher? Então é a pensar (especialmente) em si que a equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal (PAP) da Câmara Municipal de Lisboa vai estudar soluções para reforçar o sentimento de segurança nos espaços públicos. O debate aconteceu na conferência "A rua respeita a mulher?", que contou com a participação da arquiteta Paula Miranda, do investigador Manuel Lisboa da Observatório Nacional de Violência e Género da FCSH, e da investigadora Adriana Souza, que está a fazer um doutoramento em Transportes na perspetiva da mulher, pela Universidade de Brasília. 

A ideia surgiu quando Adriana partilhou com os colegas de trabalho - homens - a dificuldade que sentia em arranjar um transporte ou em andar à noite sem estar preocupada se ia sozinha ou acompanhada ou se ia ser assediada. Sem ter de pensar muito, no fundo. "Eles não entendiam o que eu dizia. Depois, quando conversava com as minhas amigas, elas sentiam o mesmo. Então fiquei curiosa: será que sou só eu e as minhas amigas ou isso é para todas as mulheres?". E daí veio o doutoramento e o estudo comparado entre Lisboa e Brasília, que a faz estar há já três meses em Portugal e que a fará estar até ao próximo ano. 

Diz Adriana que não é óbvio para as mulheres que elas se sintam inseguras. Só o percebem quando descrevem uma série de escolhas que fazem - optar por não ir àquele sítio ou por voltar mais cedo para casa do que se pretendia. Opções que condicionam a liberdade. "Elas vão criando estratégias para se deslocarem na cidade, baseadas naquelas pequenas violências que vivem diariamente, desde o piropo ao assédio sexual. Quando você vai no transporte público e um homem se encosta a você, você fica constrangida", exemplifica. 

O planeamento da cidade e da mobilidade urbana pode tornar o espaço público mais confortável para as mulheres? A investigadora diz que sim. E denuncia problemas, desde logo, nas rotinas do dia a dia. "No geral, as deslocações e os horários das mulheres são mais complexas. Por exemplo, a mulher vai levar o filho à escola de manhã e aí ela tem de calcular qual é o horário em que vai levar o filho, onde vai apanhar o outro transporte público para ir para o trabalho, voltar a casa para fazer uma compra antes de ir buscar o filho na escola de novo. E muitas vezes ela não encontra os horários dos autocarros e do metro para responder a essa complexidade", aponta. 

As ruas devem também não devem ser só para passear: "É preciso haver bancos e lugares aprazíveis para as pessoas ficarem e sentarem. Em alguns sítios, você sai do supermercado cheio de compras, quer sentar mas não tem onde. Não tem um banco, não tem uma praça".
"Eles preocupavam-se com a televisão, elas com o estendal"

A arquitetura deve ser pensada de uma perspetiva da mulher? "A arquitetura deve ser pensada com mulheres. Há questões que atualmente são mais as mulheres que têm a noção, mas a cidade é para todos", começa por explicar a arquiteta Paula Miranda. E essas questões começam a ser visíveis quando se faz um projeto para uma casa. "Há alguns anos, os arquitetos começavam a desenhar a casa e esqueciam-se de colocar os estendais, por exemplo. Porque não são eles que lavam a roupa. Quem lava a roupa sabe que precisa de um espaço para a estender", exemplifica. 

O mesmo acontecia do ponto de vista dos clientes. "Eles, quando chegavam e pediam um projeto para a casa, preocupavam-se com onde iam pôr a televisão. Elas preocupavam-se com a zona para secar a roupa. É natural - cada um está preocupado com aquilo que faz. Quando forem os homens a estender a roupa, todos vão ter a noção de tudo", justifica Paula. 

A nossa realidade molda as nossas preocupações - por isso é que importa ter o feedback de todos. "Há uns anos, no atelier, aconteceu uma situação engraçada. Uma arquiteta desenhou uma casa de banho para os homens e pôs rolos de papel higiénico nos urinóis. Claro que os homens desataram todos a rir!", ri-se ela também. 
"Desde pequeninas que nos ensinam a não estarmos de pernas abertas. A sentarmo-nos direitinhas. Mas depois os homens abrem as pernas quando vão sentados nos transportes".

No que toca ao espaço público, a iluminação ou a falta dela condiciona os nossos percursos. "É preciso haver mais iluminação, mas não só. Também é preciso que a iluminação seja homogénea, porque estar debaixo de um foco de luz também é muito desconfortável", defende a arquiteta. 

E dá um exemplo de uma rua muito escura com uma paragem de autocarro muito iluminada. "A pessoa fica muito exposta e isso é desconfortável. Fica como se estivesse num palco. É o inverso daquilo que as mulheres em geral procuram: passar discretamente, fazer a sua vida". 

A expressão brasileira "fiu fiu" é definida em vários blogs como o "assobio que uma pessoa faz quando vê uma pessoa bonita e atraente" e deu o nome a uma campanha contra o assédio sexual em locais públicos. 




No que toca às paragens de autocarros, é preciso também ter em conta a localização e a visibilidade. Exemplo: "Eu estou numa paragem que tem uma publicidade a cobrir um lado e que atrás não tem espaço. Isso cria um canto em que não há visibilidade. Portanto, se aparecer alguém... Quando a pessoa se apercebe, esse alguém já está em cima. O conseguirmos controlar quem vem aí é muito importante", continua a arquiteta. 

Outra das soluções encontradas para aumentar a confiança e a tranquilidade na vida de cidade passa por não haver zonas monofuncionais. Zonas só de habitação, só de escritórios ou só de espaços comerciais: "O problema é que há ruas que, enquanto as lojas estão abertas, até às 18h ou 19h, têm muita gente. Mas as lojas fecham e de repente não há nada ali. Fica um vazio. E passar naquela zona depois da hora de expediente não é muito convidativo porque temos a percepção de uma insegurança silenciosa", explica Paula Miranda. 

Depois, a sinalética: haver sinais nas ruas é importante para a pessoa estar orientada, saber para onde vai, não se sentir perdida. 
Piropo: "As mulheres ficam incomodadas, os homens sentem-se glorificados"

Está a ser feito um estudo sobre a violência contra homens e mulheres no espaço público com foco no município de Lisboa. É o primeiro com uma dimensão micro, que vai ao nível da freguesia, destaca Manuel Lisboa, coordenador da equipa de investigação do Observatório Nacional de Violência a Género da FCSH, responsável pelo inquérito. O objetivo é que a autarquia aproveite os resultados para afinar as políticas públicas. 

Ainda não há resultados finais, mas já há algumas pistas. A primeira, sobre os chamados "piropos", atos de "importunação sexual" ou propostas sexuais não desejadas, como estão denominadas no Código Penal - e que podem dar pena de prisão até três anos.

Homens e mulheres são alvo deste tipo de comentários, confirmou o inquérito, mas reagem de forma diferente: "Enquanto as mulheres sentem os piropos como uma intromissão, algo que é lesivo da sua intimidade, os homens dizem que se sentem glorificados, gratificados. E isto é desigualdade de género", sublinha. Os espaços mais referidos como locais propensos ao assédio são "o local de trabalho, depois a rua e os transportes públicos", conta o investigador. 
"Há mulheres que não saem à noite porque têm medo e se sentem inseguras", diz Manuel Lisboa.

Além de mais câmaras de segurança nas ruas, a doutoranda Adriana Souza pede mais formação para os agentes de segurança pública. "Imagine que eu vou reclamar para um polícia ou para um segurança que fui assediada. Ele não vai estar preparado para me receber. Não vai saber me encaminhar. Não adianta eu falar com um profissional se ele vai dizer: Ah, deixa estar, já passou". 

Quanto àquilo que as vítimas devem fazer... Não há uma resposta fácil. "Acho que você deve fazer o que você sente melhor. Muitas ignoram, outras respondem... O que eu acredito que a mulher deve fazer é expor o problema e não naturalizá-lo, não achar que é normal, os homens são assim... Não, eles não são assim, eles não devem ser assim. Às vezes, quando se responde, você pode ser surpreendida por uma reação mais ainda agressiva... No meu país (Brasil) eu teria medo de responder", conta. 

Adriana ficará mais uns largos meses em Portugal para perceber que diferenças há entre as duas cidades (Brasília e Lisboa). Está a apontar tudo o que vê e sente nas suas experiências no espaço público. Para já, fica claro que a desigualdade social e o perigo se sente mais no Brasil. Mas há alguns pontos em comum: "Os assédios existem, o medo existe, a limitação de caminhar na rua existe, os transportes públicos à noite não existem. Já andei aqui na rua à noite sozinha e fiquei com medo. Era um passeio para uma rua mal iluminada, depois fui para outra rua que tinha um grupo de homens a passar e eu fiquei com medo. Não sabia se devia voltar para trás, continuar, se devia parar... Eu torci muito e eles viraram para outro lado e eu continuei o meu caminho". Mais conclusões, só em 2018.