Nos tumores sólidos, existem regiões com baixas concentrações de oxigénio (hipoxia), altamente resistentes ao tratamento convencional com quimioterapia e radioterapia. No entanto, nessas regiões observa-se também a presença da proteína P53, que é o supressor tumoral mais poderoso de que o nosso organismo dispõe naturalmente.
A razão pela qual a principal arma natural na luta contra as células cancerosas perde a sua eficácia num ambiente de hipoxia é algo que vem intrigando a comunidade médico-científica ao longo de décadas e uma questão para a qual ninguém tinha resposta. Até agora.
Uma equipa internacional liderada por Rajan Gogna, da Fundação Champalimaud, publicou no final de setembro os resultados de uma investigação que afirma ter descoberto o mecanismo que preenche e responde a essa lacuna do conhecimento.
Segundo o estudo, o supressor tumoral P53 e os Fatores Induzidos pela Hipoxia (HIF na sigla em inglês) estabelecem uma relação negativa para o doente de cancro.
A subversão da P53
Os HIF regulam o nível de expressão de genes num ambiente de pouca disponibilidade de oxigénio para a normal atividade celular. "Silenciosos" enquanto o nível de oxigénio é suficiente, os HIF manifestam-se quando o abastecimento de oxigénio é deficitário e estabelecem as alterações que devem ocorrer nas células, de modo a que estas consigam funcionar em áreas hipóxicas. Em certas patologias onde existe dano nos tecidos e produção de novos tecidos, essa ação ajuda à recuperação do paciente mas, no caso do cancro, tem o efeito oposto. O que a equipa de Rajan Gogna concluiu é que, nas regiões menos oxigenadas dos tumores sólidos, a P53, que tem uma missão original de combate às células cancerosas, sofre uma alteração física que a leva a ser “capturada” pelos HIF, passando a ficar ao seu serviço como aliada na criação de condições para a propagação do tumor. Mais: mesmo na sua configuração natural, esta proteína comporta-se como se tivesse sofrido a mutação.
Esta descoberta implica uma significativa revisão das estratégias de tratamento do cancro, já que a abordagem convencional parte sempre do princípio de que a presença de P53 “saudável” no tumor ajuda a ação terapêutica.
A alteração metodológica sugerida por este estudo consiste em abandonar a perspetiva da P53, “que não resulta”, substituindo-a por uma “diferenciação clara” do tipo de tratamento a administrar, consoante se trate de uma área hipóxica do tumor ou de uma área com maior presença de oxigénio. No primeiro caso, “será necessário adotar estratégias de tratamento diferentes e mais agressivas" para combater o cancro.
Portanto, a chave para a questão levantada pela investigação conduzida pela Fundação Champalimaud consiste na necessidade de se descobrir um modo de inibir a relação que se cria entre a P53 e os HIF nas áreas hipóxicas dos tumores sólidos.
Investigar, investigar, investigar
O oncologista Carlos Carvalho, diretor da unidade de cancro digestivo da Clínica Champalimaud e co-autor do estudo, refere que esse é um trabalho em curso: “Já houve tentativas de interferir nestes mecanismos, mas nenhuma foi eficaz até aqui”, explica. Daí a importância de se aprofundar a investigação nesta área, à luz do novo conhecimento trazido pela investigação liderada por Rajan Gogna. Informação que, embora estando “muito no foro preliminar”, é já objeto de “várias experiências que estão a decorrer” em diversos pontos do mundo. Carlos Carvalho lembra que o tempo da Ciência tem as suas especificidades e que é preciso esperar até que se consiga criar e produzir um novo medicamento tão eficaz para a doença como seguro para o paciente. Fator decisivo para que essa espera seja reduzida o mais possível é um trabalho de grande proximidade e comunicação entre o investigador, o médico e o doente. É nesse triângulo que consiste a chamada Metodologia Translacional, cujo objetivo primordial visa, precisamente, diminuir o tempo que medeia entre a produção de Ciência e a sua aplicação clínica.
A aplicação prática desta "grande descoberta feita em Portugal" não se circunscreve necessariamente à área do cancro. Por exemplo, em patologias como o enfarte do miocárdio ou no acidente vascular cerebral também existem tecidos com défice de oxigenação. Só que, nestes casos, a hipoxia funciona em benefício do paciente, porque conduz à angiogénese (criação de novos vasos sanguíneos) na área atingida, promovendo a sua recuperação.
Esta é uma investigação fundamental que se insere numa área que recebeu novo impulso com a atribuição do Nobel da Medicina deste ano a três cientistas (William Kaelin, Peter Ratcliffe e Gregg Semenza) cujo trabalho ao longo das últimas décadas foi crucial para o conhecimento do modo como as células se adaptam aos diferentes níveis de presença de oxigénio, com o objetivo de assegurar o funcionamento equilibrado do organismo.
O "efeito Nobel"
O oncologista Carlos Carvalho assinala que, também na vastíssima área da investigação científica, o trabalho que é realizado sofre a influência das tendências em voga num determinado período temporal. E, por isso, o reconhecimento que resulta da atribuição do Nobel da Medicina de 2019 ao estudo dos mecanismos fisiológicos que gerem o processamento dos diferentes níveis de oxigénio dá “uma visibilidade que vai promover um incremento da investigação nesta área”. O que pode significar “mais financiamento, mais investimento para tentar responder a mais perguntas que podem ser fundamentais”.
A influência positiva do Nobel da Medicina deste ano e o resultado da investigação da equipa liderada por Rajan Gogna vêm mesmo a calhar para o novo grande projeto em curso na Fundação Champalimaud.
Situado num espaço privilegiado na zona ribeirinha do Tejo, em Lisboa, o Centro Clínico está neste momento a ser ampliado com um novo edifício onde irá ser aplicado, uma vez mais, o princípio da metodologia translacional - neste caso, para tentar ir mais além na luta contra o cancro do pâncreas, um dos mais agressivos e mortíferos.
O Centro Pancreático Botton-Champalimaud, que deverá estar concluído no próximo ano, será o primeiro no Mundo dedicado simultaneamente à investigação e tratamento desta patologia que, por ser considerada pela Ciência contemporânea como praticamente imbatível, tem feito divergir o investimento potencial para outras áreas mais promissoras, em termos da perspetiva de obtenção de resultados positivos para os doentes.
Carlos Carvalho sublinha que o cancro do pâncreas está a tornar-se cada vez mais frequente no mundo industrializado, ao ponto de se ter convertido num “objetivo de Saúde Pública”. É a necessidade de se encontrar respostas eficazes para este problema que leva a Fundação Champalimaud a lançar-se num empreendimento que promete ajudar Portugal a continuar a desenvolver investigação de ponta na área das Ciências Biomédicas.