A última crise de Cavaco

Quase a atingir 36 anos na vida política portuguesa, Aníbal Cavaco Silva não teve um final de mandato tranquilo. Foram praticamente dois meses de tensão política após as eleições legislativas, com inúmeras audiências, duas indigitações para primeiro-ministro, um governo a cair no Parlamento, tomadas de posse de dois executivos e um histórico acordo à esquerda.

No dia em que Portugal votou para escolher o Presidente da República, Cavaco Silva dizia aos jornalistas: “Já tenho direito a descanso”. Falava em jeito de contas finais do mandato, com um sorriso aberto. Bem podia dizê-lo. Ao fim de quase 36 anos de vida política, os últimos meses foram, no mínimo, desgastantes.



Antes do resultado das legislativas e com os números que chegavam de sondagens a apontarem para a coligação Portugal à Frente com possibilidade de maioria absoluta, Cavaco Silva argumentava, ao género que lhe atribuem de “raramente me engano e nunca tenho dúvidas”, que já tinha todos os cenários estudados.

"Temos estudado todos, todos os cenários, todos os cenários foram estudados na Presidência da República ao longo deste tempo, agora só nos falta saber qual o cenário que vai ser determinado pelos portugueses”, afiançou Cavaco Silva, pouco depois de ter colocado o seu voto na urna.

Mas a realidade terá mesmo ultrapassado todas as expectativas.
Sem maioria absoluta
O Presidente da República tinha revelado, antes das eleições, as coordenadas pelas quais ia analisar os resultados. Cavaco Silva esperava uma “solução governativa sólida, estável e coerente”.

Mas, do voto dos portugueses no dia 4 de outubro de 2015, resultou apenas uma maioria relativa para a coligação formada por PSD e CDS-PP. E, feitas as contas, os outros partidos de esquerda, caso se unissem, teriam a maioria no Parlamento. Na história política do país, todavia, nunca a esquerda se tinha juntado.


Cavaco Silva falhou as comemorações do 5 de Outubro para “reflexão”.

No dia seguinte, chama Pedro Passos Coelho e, às 20h00, fala ao país. Convida o líder da coligação a “desenvolver diliFormalmente, o primeiro-ministro só pode ser nomeado com todos os votos contados. E isso não aconteceria antes de 15 de outubro.gências com vista a avaliar as possibilidades de constituir uma solução governativa que assegure a estabilidade política e a governabilidade do país”.

Pedia “diálogo”, “compromisso” e “negociação”. “Confio que as forças partidárias vão colocar em primeiro lugar o superior interesses de Portugal”. Passava a bola aos partidos.



O PCP reunia nesse dia o Comité Central. O PS reuniu-se em Comissão Política Nacional já depois da comunicação do Presidente da República.

António Costa critica Cavaco Silva por falar só “com o seu partido”, sem antes ter recebido em audiência os restantes partidos. Embora com uma derrota eleitoral, o partido mandatava-o para dialogar com todos os partidos sobre soluções de Governo. Costa reiterava, no entanto, que cabia à força com maior representação parlamentar (coligação PàF) o ónus de encontrar uma solução de governabilidade.

Já antes, na véspera, Catarina Martins tinha dado o mote na Comissão Política do Bloco de Esquerda: reiterou a disponibilidade para conversar sobre uma solução de governo de esquerda que “salve Portugal”.
Negociações à esquerda
A política fervilhou por esses dias. Os líderes partidários desdobravam-se em contactos, reuniões, negociações. Horas intensas, um autêntico vaivém.

As negociações entre PS e PSD não surtiram efeitos. Na véspera de Pedro Passos Coelho ser recebido por Cavaco Silva, dia 18 de outubro, uma última “cartada”: Passos envia uma carta a António Costa em que lançava o repto para o PS fazer parte de um Governo com PSD e CDS-PP.

Na carta enviada por Passos a Costa naquele domingo não resta espaço para dúvidas no auge do impasse político: "Se o Partido Socialista prefere discutir enquanto futuro membro de uma coligação de governo mais alargada, que inclua, além do PSD e do CDS, o próprio PS, então que o diga com clareza, já que nunca excluímos essa possibilidade".



António Costa responde por escrito. Sustenta que não é na eventual partilha de lugares que assenta a estratégia socialista, antes na “soberana vontade dos portugueses de uma reorientação de política” que PSD e CDS-PP “insistem em não aceitar”.

Em causa uma outra solução, inédita: a de acordos de incidência parlamentar à esquerda. Bloco de Esquerda, PCP e PEV em apoio parlamentar a um governo PS. Como pano de fundo, o argumento de que mais de metade dos portugueses votou nestes partidos que defendiam uma mudança de política, um “virar de página da austeridade”.

Foi esse mesmo o cenário que estes partidos deram conta ao Presidente da República, em audiências que decorreram nos dias 20 e 21 de outubro.
No dia das audiências, o acordo de esquerda era dado como fechado, embora ainda não tivesse sido assinado.
Cavaco Silva viu-se perante um cenário extremado e inesperado umas semanas antes. A coligação Portugal à Frente reclamava para si o direito à formação de um governo depois de ser a força mais votada nas eleições. PS contrapunha e argumentava que o Executivo devia ser de esquerda, acenando com um apoio maioritário no Parlamento com BE e CDU.



António Costa argumentava que o Presidente não devia prolongar no tempo “situações de indefinição e incerteza” com soluções que não teriam possibilidade de apoio maioritário no Parlamento. Seria uma “perda de tempo” indigitar Passos, clamava a esquerda, já pronta a avançar com moções de censura ao Programa do Governo.

Pedro Passos Coelho lembrava a “prática constitucional” em Portugal, de indigitar o líder da força mais votada e outros governos socialistas minoritários no passado. Paulo Portas é mais contundente. Lança um ataque forte a António Costa, considerando tratar-se de um “político à procura da sua sobrevivência”, um líder que considerava o voto dos portugueses “um detalhe”.

O país ficava em suspenso. Qual seria a decisão de Cavaco Silva?

A resposta chegou dia 22 de outubro, mais de duas semanas depois das eleições. Não trouxe surpresas. O Presidente da República decide indigitar como primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.

Cavaco Silva escudava-se na tradição de 40 anos de democracia de indigitar sempre o partido mais votado, mesmo sem maioria absoluta. Lançava, no entanto, farpas. Considerava incompreensível que não tivesse havido entendimento entre PS e a coligação de direita. Considera a solução à esquerda “altamente inconsistente” e antieuropeísta. Palavras que inflamaram a esquerda.
Crónica da queda anunciada
A indigitação do líder da coligação PSD/CDS-PP era o passo previsível de Cavaco Silva. Como previsível foi a resposta imediata da esquerda: Novo governo de Passos e Portas "vai cair na Assembleia da República". Palavras em inúmeros comentários, análises e diagnósticos na comunicação social.

Cavaco Silva não se arrependia da decisão tomada. O Presidente da República dizia, dias depois, que não retirava nem uma linha ao que declarara quando indigitou Passos Coelho e criticou a alternativa de esquerda. Cavaco Silva diz ainda que foi muito claro, que agiu na defesa interesse do país e não estava nada arrependido.

Os passos formais eram tomados. No dia 30 de outubro, toma posse o novo Governo de direita.

Na cerimónia oficial, o Presidente da República reitera os avisos à navegação. Cavaco Silva avisa que "sem estabilidade política país torna-se ingovernável”.

“Tive presente, por outro lado, que, até ao momento da indigitação do primeiro-ministro, não me foi apresentada, por parte das outras forças políticas, uma solução alternativa de Governo estável, coerente e credível”, reiterou o Presidente da República.



“Reitero o que afirmei precisamente nesse ano de 2009, aquando da tomada de posse do XVIII Governo Constitucional: o Governo que hoje toma posse tem plena legitimidade constitucional para governar. Conquistou essa legitimidade nas urnas”, lembrou Aníbal Cavaco Silva.

Nas palavras do Chefe de Estado, cabia à Assembleia da República “apreciar o programa do governo e decidir em consciência”, levando em linha de conta “o superior interesse nacional”.

Foi o que a Assembleia da República fez, no dia 10 de novembro de 2015.

Um pouco antes da votação no hemiciclo, numa sala longe dos jornalistas, António Costa assinava documentos separados com Bloco de Esquerda, PCP e Partido Ecologista “Os verdes”, para firmar o acordo de incidência parlamentar que sustentaria um Governo PS. Um acordo histórico, com a esquerda unida no propósito de substituir a direita no poder e parar o empobrecimento do país.

No processo, Pedro Passos Coelho e Paulo Portas acabavam por entrar para a história, por constituírem o Governo que menos tempo durou na democracia portuguesa.
O país em standby
A palavra voltava a Cavaco Silva. O que fazer perante o chumbo do Programa de Governo de PSD e CDS-PP?

O Presidente da República estava impossibilitado de usar a “bomba atómica”, como é conhecida. Em fim de mandato, com eleições próximas, Cavaco Silva não podia dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.

Os cenários possíveis incluíam um governo presidencial, a hipótese de um governo de gestão pelo menos até abril ou indigitar António Costa como primeiro-ministro.



O Presidente da República decide receber em audiência várias personalidades, desde centrais sindicais a empresários, banqueiros, partidos. Foram 31 audiências, mais concretamente, com uma visita oficial à Madeira pelo meio.

Longos dias em que líderes partidários, comentadores, comunicação social punham a política no centro de todas as manchetes. Cavaco Silva não revelava o caminho.

Numa declaração na Madeira, o Presidente adensava as especulações. Lembrava que em 1987 tinha ficado vários meses em gestão e enjeitava as acusações de que estivesse a demorar muito tempo para resolver a crise política aberta com a rejeição do programa de governo de Passos Coelho.

A 23 de novembro, o Presidente da República chama o secretário-geral do PS. Uma reunião de pouPassaram 13 dias desde a rejeição pelo Parlamento do Governo de direita.co mais de meia hora.

António Costa saiu sem prestar declarações. Pouco depois, as redações tinham acesso a uma nota disponibilizada no site da Presidência da República.

Nela se lia que Cavaco Silva tinha decidido “encarregar o secretário-geral do Partido Socialista de desenvolver esforços tendo em vista apresentar uma solução governativa estável, duradoura e credível”.

O Presidente elencava dúvidas e pedia uma clarificação formal a Costa. Cavaco Silva expressa “dúvidas quanto à estabilidade e à durabilidade de um governo minoritário do Partido Socialista, no horizonte temporal da legislatura”.

Tratava-se de questões “omissas nos documentos, distintos e assimétricos, subscritos entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português e o Partido Ecologista "Os Verdes"”.

Questões que, para Cavaco Silva, suscitam as dúvidas sobre a estabilidade de uma solução governativa. Questões cO PS responde nesse mesmo dia por carta às exigências do Presidente. omo a aprovação dos orçamentos do Estado, estabilidade do sistema financeiro, a garantia do cumprimento dos compromissos internacionais de Portugal.

Dúvidas levantadas três dias depois de António Costa ter estado em Belém, no âmbito das audiências com todos os partidos, e em que o secretário-geral socialista tinha dado essas garantias ao Presidente.

Era mais um passo na crispação política.

No dia seguinte, Cavaco Silva volta a chamar António Costa a Belém e indigita-o primeiro-ministro.

Mas, ao contrário do que tinha acontecido quando indigitou Passos Coelho, desta vez Cavaco Silva não se dirigiu ao país de viva voz. Bastou mandar uma nota à comunicação social, poucos minutos depois de Costa sair do encontro.
A indigitação de António Costa acontece 51 dias depois das eleições legislativas.
"As informações recolhidas nas reuniões com os parceiros sociais e instituições e personalidades da sociedade civil confirmaram que a continuação em funções do XX Governo Constitucional, limitado à prática dos atos necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos, não corresponderia ao interesse nacional”, lê-se na nota da Presidência da República.


Cavaco dá posse a Costa, com recados
A data de tomada de posse era marcada por Cavaco Silva: dia 26 de novembro. A hora também. A mesma hora em que decorria o plenário na Assembleia da República com iniciativas legislativas com vista à eliminação da sobretaxa de IRS e à reposição salarial na Função Pública, bem como as alterações à lei da procriação medicamente assistida. Causou polémica no Parlamento, à esquerda.

A 26 de novembro, António Costa toma posse como primeiro-ministro. Na cerimónia, o semblante carregado de Cavaco Silva era notório. Presidente da República e o novo chefe do Executivo praticamente não se cumprimentaram. Houve, sim, troca de palavras nos discursos. Quase um ataque e contra-ataque.

Cavaco garantia que não abdicava de “nenhum dos poderes que a lei atribui ao Presidente da República e recordo que, desses poderes, só o da dissolução parlamentar se encontra cerceado”.

Costa respondia. “O Governo provém da Assembleia da República e é perante a Assembleia da República que responde politicamente”.

O Presidente manda recados. “Os referidos documentos [acordos entre PS e BE, PCP e PEV] são omissos quanto a alguns pontos essenciais à estabilidade e à durabilidade do Governo, suscitando questões que, apesar dos esforços desenvolvidos, não foram totalmente dissipados".

O primeiro-ministro reitera. “Este é um governo de garantias. De garantia fundamental e primeira de um Estado de Direito democrático. Da garantia de continuidade do Estado nos seus compromissos internacionais e no quadro da União Europeia. Da garantia da estabilidade”. Jerónimo de Sousa chegou a diagnosticar “mau perder” a Cavaco Silva.

De novo, os votos e os resultados eleitorais. Diz o Presidente que esta é uma “solução inédita na história da nossa democracia, o que confere às forças políticas envolvidas a responsabilidade do Governo que hoje é empossado”.

Certo é que o Presidente voltou às farpas por altura da mensagem de Ano Novo, falando de “tempos de incerteza”.

Cumpriu a palavra, em certo sentido. Depois de o novo Parlamento ter votado alterações à leis do aborto e da adoção por casais do mesmo sexo, Cavaco Silva não abdicou do direito constitucional de veto e mandou os documentos de volta à Assembleia da República. A maioria parlamentar de esquerda voltou a aprová-los.

O mandato de Cavaco Silva em Belém não terminaria, no entanto, sem uma espécie de “acordo de paz”. A convite do primeiro-ministro António Costa, preside a um Conselho de Ministros.

Tiago Contreiras, Mário Santos, Filipe Silva, Fernando Andrade - RTP


A menos de uma semana de Marcelo Rebelo de Sousa tomar o seu lugar na Presidência da República, Cavaco Silva presidia a uma reunião que visava aprovar um pacote legislativo para financiar a economia do mar, fazendo uso de fundos comunitários. Um gesto de boa vontade para com um Presidente no fim da linha.