Diário inédito de prisioneiro português na Primeira Grande Guerra

por RTP
Collection Odette Carrez, Reuters

Como milhares de outros militares portugueses, o tenente coronel João Craveiro Lopes caíu prisioneiro em 9 de Abril de 1918, quando os alemães lançaram a ofensiva de La Lys. Nos sete meses que se seguiram, registou minuciosamente num diário a vida nos campos de prisioneiros por onde passou. A RTP teve acesso a esse documento fundamental.

Craveiro Lopes, autor do diário, fora mobilizado para as trincheiras da Flandres já com a idade de 47 anos. O seu filho Francisco, na altura tenente, fora mobilizado para a guerra em Moçambique. Mais tarde, em 1926, o oficial capturado pelos alemães chegará a general. O filho Francisco, que combatera em Moçambique, chegará a marechal e será o segundo presidente da República do Estado Novo. Após desentendimentos com Salazar, será substituído no cargo por Américo Tomás.

O coronel João Craveiro Lopes, neto do combatente das trincheiras e filho do futuro presidente, facultou à RTP a consulta do diário do avô – um documento histórico de grande valor.Uma ofensiva anunciadaA ofensiva alemã no Lys não foi completamente inesperada. O Estado-Maior alemão tinha de tentar alguma coisa naquele momento. O Governo bolchevique tinha assinado, sob protesto, o leonino Tratado de Brest-Litovsk, retirando a Rússia da guerra e encerrando a frente oriental. A Alemanha podia agora concentrar as suas forças a ocidente e devia apressar-se. Os Estados Unidos já tinham declarado guerra aos impérios centrais, mas as suas tropas ainda não tinham começado a intervir nos campos de batalha da Europa. Era aquela a última oportunidade para as forças alemãs avançarem sobre Paris, em corrida contra-relógio.

Se o timing não deixava dúvidas sobre a iminência de uma grande ofensiva alemã, já a escolha do local era menos óbvia. O sector português da frente distinguira-se sempre por grande estabilidade, devido ao carácter especialmente pantanoso do terreno. Os assaltos a trincheiras inimigas, sempre marcados por perdas terríveis da força atacante, e por uma vantagem considerável das forças defensoras, eram encarados nesse terreno pantanoso como iniciativas duplamente suicidárias, e tanto mais improváveis.

Por isso mesmo se destinara ao Corpo Expedicionário Português (CEP), de preparação técnica relativamente fraca, um sector da frente onde não era de esperar uma grande ofensiva alemã. Mas, no outro prato da balança, o Estado-Maior alemão poderá ter conhecido informações sobre o extremo desgaste a que eram submetidas as tropas portuguesas, com tempos de permanência na primeira linha muito superiores aos das suas aliadas. As tropas portuguesas aguardavam, por outro lado, com ansiedade serem rendidas por outras que deveriam chegar precisamente no dia em que foi lançada a ofensiva alemã.

No dia 9 de Abril, o colapso das linhas portuguesas deu-se em poucas horas. Às 4h15 da madrugada começou um intenso bombardeamento alemão. O diário de Craveiro Lopes relata que as tropas alemãs atingiram a primeira linha das trincheiras portuguesas às 13h.Captura e instalação no campo de prisioneirosOs militares portugueses renderam-se e foram feitos prisioneiros. Tiveram de entregar armas, cinto, capote. Foram conduzidos para a retaguarda e ao cabo de várias horas de marcha chegaram a Illies, local do Quartel-General da Divisão alemã, "onde o general nos mandou ir à sua presença, apertando-nos a mão e oferecendo para tomarmos uma chávena de chá".

Prosseguiram depois a marcha e, em 15 de Abril, chegaram a Karlsruhe, seguindo daí para o campo de Rastadt, onde ficarão nos meses seguintes. Os alemães separavam os prisioneiros segundo a patente e tinham campos especificamente destinados aos oficiais. No de Rastadt, havia um quarto por cada cinco oficiais prisioneiros. Foram vacinados contra tifo, varíola e cólera. Havia também oficiais superiores ingleses e franceses.

As normas do campo determinavam que os prisioneiros fizessem continência a qualquer oficial alemão e que se levantassem quando este entrasse. Podiam deitar-se sobre a cama durante o dia, tirando as botas. Estavam avisados de que seriam alvejados se se aproximassem do arame farpado.
Entrada de 25 maio

“Conhecemos que as nossas famílias, ainda hoje, passados mais de 45 dias, não sabem se somos vivos ou mortos”.

Poderiam escrever duas cartas e quatro postais por mês, que seriam enviados através de um comité da Cruz Vermelha sedeado na cidade suíça de Lausanne.

A experiência dos meses seguintes ia mostrar que o direito de escrever nem sempre implicava que as cartas seguissem rapidamente para o destino. Tinham de passar primeiro pela censura e só depois seriam despachadas. As famílias dos prisioneiros passaram vários meses sem saberem se estes estavam vivos.

E o tempo de resposta também foi longo e exasperante: só em 14 de Julho Craveiro Lopes recebe a primeira carta da família.Problema decisivo: a alimentaçãoUm dos problemas principais era, naturalmente, a alimentação. O diário de Craveiro Lopes vai dedicar-lhe, ao longo dos sete meses do cativeiro, uma atenção minuciosa. Muitas das entradas do diário lêem-se, compreensivelmente, quase como menus das mais diversas variações sobre batatas, milho, beterraba, carne de foca e outros recursos gastronómicos característicos dum tempo de penúria.

Ao longo desses sete meses, as queixas do autor e dos seus companheiros sobre a alimentação registam altos e baixos. Em momentos de escassez mais aguda, chega a dar-se o caso de se entornar um caldeirão de sopa, e de os prisioneiros andarem com canecas a recolher do chão o que fosse ainda aproveitável para poderem comer.

As reclamações sobre a alimentação vão estar na origem de uma comissão (7 de Junho), criada por iniciativa do próprio Craveiro Lopes e presidida por ele. Essa comissão irá depois dialogar com o comandante do campo, e alargar a outros temas o âmbito do diálogo, tornando-se uma verdadeira representação eleita dos prisioneiros.

O agravamento da penúria alimentar coincide com a chegada de uma nova vaga de prisioneiros (8 de Junho), que origina uma exclamação invulgar no diário: "Estamos na situação mais desgraçada que se pode imaginar! Mil vezes as trincheiras com todos os perigos".

Mais tarde, ao serem transferidos (4 de Julho) para um segundo campo, o de Ratzeburg, Craveiro Lopes nota (8 de Julho) que "a alimentação é fraquíssima”. E logo reconhece: “Mas eles não têm nada para nos dar”.

Sucede ainda que encomendas chegadas para prisioneiros romenos, num momento em que estes já foram transferidos para outro campo, são distribuídas aos portugueses (23 de Julho) por ordem do comandante do campo. E sempre são umas 100 caixas de bolachas. Alguns dias depois, um outro luxo (31 de Julho): "Lavei-me com sabonete, o que não fazia há 114 dias!"

No que diz respeito aos internamentos hospitalares, há em 3 de Maio uma interessante comparação entre os que tinham lugar em hospitais portugueses e aquele que é descrito num hospital alemão, por um oficial que aí esteve em tratamento: “Veio do hospital o [ilegível] que disse ser-se ali muito bem tratado. Médicos e enfermeiros são atenciosos. Comida é boa e abundante. Nos hospitais do CEP passava-se fome e até havia piolhos. Dois capitães médicos, chefes do Serviço de Saúde da B., me disseram ao voltarem do hospital: 'Comandante, por pior que se ache, não baixe aos nossos hospitais'".A rotina e a relação com as autoridades alemãsNo primeiro campo em que os oficiais portugueses ficaram detidos, o de Rastadt, Craveiro Lopes descreve a sua rotina com muitas horas de sono, deitar e despertar cedo, lavar e remendar roupa, ir à missa e … passear pelas redondezas.
Entrada de 29 de Abril

"Leio, dormito e convivo, procurando assim enganar a fome e passar o tempo o mais depressa possível (...) Deitei-me às 8h30, depois de um passeio pelo campo, admirando as frondosas árvores da Floresta Negra".

Um pouco mais adiante, os oficiais portugueses irão organizar um orfeão (27 de Maio) e uma biblioteca. No diário de Craveiro Lopes apenas se encontra referência ao título de um livro que tenha lido durante o cativeiro: “L’Oeuvre”, de Zola (5 de Junho).

Quanto ao tratamento que era dispensado aos oficiais portugueses, Craveiro Lopes refere, sem dramatismos, que “a alguns oficiais os soldados pediram as polainas, os abafos, ou tiraram alguns objectos, diziam eles, para ‘souvenir’”. Mais tarde, haverá queixas ocasionais sobre violências exercidas por soldados contra os prisioneiros (19 de Junho), e, já no segundo campo para onde serão transferidos, queixas sobre incorrecções de um alferes (12 de Novembro).
Entrada de 2 de Maio

“Da observação feita durante 23 longos dias, à maneira como são tratados os prisioneiros de guerra na Alemanha, concluí que é absolutamente falso tudo quanto se diz na imprensa com respeito a maus tratos. Feito prisioneiro passei por numerosas colunas de tropas de infant[taria], engenharia, artilharia e que apoiavam o avanço alemão e nem uma chufa, um insulto nos era dirigido.

Mas a imagem geral que fica no diário é a de um tratamento correcto. Craveiro Lopes desmente energicamente o mito de que os alemães não fizessem prisioneiros e fuzilassem os inimigos que lhes caíssem nas mãos. Afirma nomeadamente que “nos campos fomos bem tratados, não havendo grandes comodidades (...) A comida é pouco abundante, mesmo para quem passa uma vida inactiva, como nos sucede. As camas são razoáveis e as roupas são limpas e desinfectadas.”

O moral e a disciplina são outro dos problemas com que têm de lidar os prisioneiros, em que se incluem dois coronéis. O jogo a dinheiro e os roubos são factores de erosão da disciplina, mas que parecem ter sido controlados, especialmente a partir da criação da comissão presidida pelo autor do diário. O ócio dos prisioneiros, a falta de notícias das famílias e a impaciência por voltar a casa exerciam, naturalmente, um efeito psicológico marcante.
Tentativas de fugaHá notícia de várias tentativas de fuga ao longo dos sete meses de cativeiro. A primeira é protagonizada por oficiais ingleses, alojados num bloco vizinho dos portugueses, e rapidamente recapturados. As medidas tomadas contra os fugitivos não foram especialmente duras, mas os restantes foram advertidos contra a tentação de lhes seguirem o exemplo.
Entrada de 23 de Maio

“O coronel foi chamado ao comandante do campo que lhe disse para prevenir os oficiais portugueses (…) que era impossível chegarem a alcançar a liberdade e que a repetição desses factos importaria medidas que nos seriam desagradáveis, medidas de repressão que todos pagariam”.

Poucos dias depois (12 de Junho), três oficias portugueses fogem durante a noite e alguns ingleses de um bloco vizinho são apanhados (25 de Junho) a tentarem cavar um túnel para se evadirem. Mesmo assim, ao serem recapturados os portugueses (30 de Junho), não há notícia de maus tratos e o castigo limita-se a 15 dias de prisão.

E, passados três dias apenas, dá-se um outro episódio que mostra a moderada preocupação do comandante do campo com as sucessivas tentativas de fuga: morre no hospital o capitão português Simões Dias (3 de Julho) e coloca-se a questão de saber se os seus camaradas poderão acompanhar o funeral, fora do campo. Trinta oficiais portugueses acabam por ser autorizados a fazê-lo, desde que assinem uma declaração prometendo não fugir durante o funeral.

A descrição da cerimónia é, aliás, interessante: os prisioneiros são acompanhados por uma banda de música e por 30 soldados alemães, não na qualidade de escolta, mas de força destinada a homenagear o falecido: "A força deu três descargas, a banda tocou uma marcha. Depois de agradecermos aos oficiais alemães, retirámos para o bloco levando apenas um soldado como guia, pois havíamos dado a palavra de honra de que não tentaríamos fugir".
Instalação no segundo campo de prisioneirosTambém no campo de Ratzeburg a norma será (8 de Julho) que “quem quisesse sair a passeio tinha de assinar uma declaração, dando a palavra de honra que não fugia durante o passeio", pelo que se organizam grupos de 40 oficiais para irem a passeio sob palavra (18 de Julho).

Apesar das referências a uma penúria alimentar agravada, possivelmente com a aproximação da derrota alemã, e a um ambiente mais crispado na relação com o comandante do campo de Ratzeburg, há aqui indicações de que os oficiais vêem ser-lhes atribuídos neste segundo lugar de internamento vários privilégios, nomeadamente o serviço de ordenanças, a quem cabe fazerem a faxina.

Ainda assim, a impaciência pelo prolongamento do cativeiro faz aos oficiais portugueses desejarem o fim rápido da guerra, sem que importe demasiado qual seja o desfecho e quem seja o vencedor. Assim, em 28 de Maio, o autor do diário regista: “Passei o dia deitado, lendo e jogando umas partidas de gamão. De tarde tivemos notícias de uma grande ofensiva alemã e que já tinham sido feitos 15.000 prisioneiros (...) Está tudo satisfeito, esperando o fim próximo da guerra e portanto a nossa liberdade”.

Em 3 de Junho, refere as notícias lidas num jornal afirmando que as tropas alemãs estão a 60 quilómetros de Paris, e que o Governo francês teria deixado a capital. E acrescenta: "Também diz o jornal que Portugal não enviará mais tropas para França. Será o fim? Será a nossa liberdade? Deus o queira!"

Mais tarde, regista-se uma nova fuga de cinco oficiais portugueses (17 de Setembro), recapturados em pouco tempo (22 de Setembro). Desta vez, não há detalhes sobre o castigo aplicado aos fugitivos, mas o comando do campo não mostra a mesma fleuma que em tentativas anteriores e reduz os outros prisioneiros a meia ração, pressupondo naturalmente que teriam conhecimento dos preparativos da evasão.A "revolução soviética" na AlemanhaFinalmente, o diário regista o começo da revolução na Alemanha. É interessante notar que ao longo de vários meses o seu foco principal fora o quotidiano dos campos de prisioneiros, com referências muito esporádicas e algo imprecisas aos acontecimentos históricos contemporâneos: uma revolta em Portugal, rumores de golpe em França, as primeiras notícias da epidemia de “gripe espanhola” (13 de Novembro), que ia ceifar milhões de vidas nos anos seguintes.

A revolução russa é ignorada ao longo do diário, mas, ao começar a revolução na Alemanha, Craveiro Lopes mostra uma inesperada familiaridade com o conceito dos “sovietes”.
Entrada de 6 de Novembro

"Chegam notícias da revolução em Hamburg, Ischl, etc. Os soldados organizam 'sovietes', mandam fechar os clubs de oficiais, a comida para oficiais e soldados é a mesma, enfim, a revolução na Alemanha".

Por outro lado, a naturalidade com que anteriormente os prisioneiros encararam uma possível derrota francesa deu agora lugar (6 de Novembro) a uma profunda apreensão perante esta revolução de contornos “sovietistas”: “Que sorte nos esperará? Combinámos, um grupo de oito, fugir caso os revoltosos aqui venham".

Mas nos dias seguintes, já parecem começar a habituar-se à ideia e a detectar alguns sinais de institucionalização da revolução. Assim, em 7 de Novembro, "chegam notícias de que a revolução não tem a gravidade que se julgava. O Governo reconhece os comités de soldados". E em 9 de Novembro, comenta, quase desapontado: “Esperamos a toda a hora a comissão de revolucionários, mas parece que ela se limita a substituir os oficiais alemães".

Dois dias depois, chegam notícias que já não deixam dúvidas, e também alguns rumores impossíveis de confirmar: “Às 5h da tarde soubemos que a revolução alastra na Alemanha e que o governo foi substituído por outro socialista e que o imperador fugiu para a Holanda! (...) Às 9h da noite vêm-nos dizer que parte da esquadra inglesa entrou no canal de [Kiel?], confraternizando com a esquadra alemã, que por toda a França há sovietes de soldados, que Foch foi [ilegível], Clémenceau demitido, etc. e que tudo se complica".

Os próprios prisioneiros parecem deixar-se contaminar pelo ambiente de reposição da justiça e de certo modo fazem causa comum com os soldados alemães revoltados contra a hierarquia. Estes, por seu lado (12 de Novembro), “reuniram-se e resolveram deixar ficar o comandante, fazer sair do campo dentro de 24 horas o alferes que tem sido muito incorrecto”.
Entrada de 11 de Novembro

"Resolvemos não fazer a continência ao alferes alemão que tem sido pouco correcto para com os prisioneiros”.

Há, aliás, alguns motivos, vindos do passado recente, para o bom relacionamento dos prisioneiros com o “soviete” dos soldados: “O conselho de soldados ficou formado pelo intérprete, o sargento ajudante e quatro soldados!!! (...) O sargento-ajudante tem-me dado paralelepípedos de carvão para o fogão do quarto".

Ao aproximar-se o fim do calvário, os prisioneiros impacientam-se mais facilmente contra os absurdos burocráticos, que sobrevivem à revolução e que continuam, por exemplo, a obrigá-los duas vezes por dia a formarem e a responderem à chamada. Mas esses problemas são agora tratados por um novo poder que surgiu por todo o lado. Craveiro Lopes relata (18 de Novembro): “Fui falar à Kommandantur e protestar contra a maneira como estávamos a ser tratados, obrigando-nos a levantar cedo para o Appel, etc. O presidente do soviete de soldados, que é um sargento, disse que ia tratar de tudo. Os oficiais estão na disposição de faltarem ao Appel da manhã caso nele insistam".

Dois dias depois, com efeito, o problema resolve-se: passará a haver apenas uma formatura por dia, e ele, presidente da comissão dos prisioneiros, confirmará ao comandante, a meio da tarde, todas as presenças. Esta é a última diligência de que nos dá conta o diário. Os prisioneiros estavam já a preparar-se para o regresso.
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