Vistos Gold. Comissão Europeia pede vigilância mais apertada

por Raquel Ramalho Lopes - RTP
Os vistos gold foram criados em outubro de 2012 num contexto de crise do imobiliário Rafael Marchante - Reuters

A Comissão Europeia pede vigilância mais apertada aos Estados-membros que atribuem a cidadania - e a livre circulação na UE - a troco de dinheiro. O recado destina-se a países como Malta, Chipre e Bulgária, mas Portugal também facilita a autorização de residência em permuta por investimento. Bruxelas considera que esta pode estratégia representa uma ameaça à segurança e expôs o continente europeu à corrupção e ao crime organizado.

Bruxelas faz soar o alarme, esta quarta-feira, sobre as estratégias a que os Estados-membros têm recorrido para atrair investidores.

Um relatório da Comissão Europeia enumera as práticas adotadas para encorajar o investimento e os riscos que implicam para a União Europeia.

Os 28 Estados-membros ganharam 25 mil milhões de euros em investimento direto na última década de cidadãos ricos oriundos de Estados terceiros, principalmente da China, Rússia ou Estados Unidos.

A prática “apresenta um certo número de riscos, em termos de segurança, de branqueamento de dinheiro ou até de evasão fiscal”, além de falta de transparência e informação, refere o relatório.

A Comissão visa países como Malta, Chipre e Bulgária porque os seus programas permitem atribuir a cidadania e, com o novo estatuto, circular livremente na União Europeia. Nestes países “não é imposta qualquer obrigação de residência física ao cidadão em causa, nem se exige a necessidade de outros vínculos reais com o país, previamente à aquisição da nacionalidade”.

Os três países vendem a cidadania a troco de investimentos que vão entre 910 mil euros até quase dois milhões de euros. As acusações foram feitas por organizações não-governamentais e deram origem a vários escândalos. A jornalista maltesa Daphne Caruana investigava um caso de alegado abuso deste mecanismo quando foi assassinada em outubro de 2017.

“Corruptos e criminosos podem facilmente encontrar refúgio na Europa graças à opacidade e à falta de enquadramento dos programas chamados de vistos gold”, tinham denunciado as organizações não-governamentais (ONG) Transparency International e Global Witness.
Em declarações à Lusa, a Global Witness lamenta que o relatório da Comissão Europeia não tenha apresentado propostas concretas para resolver o problema, tendo-se limitado a reconhecer os riscos inerentes. "A maré está a mudar para a indústria dos 'vistos gold'", disse Naomi Hirst.
De acordo com um relatório divulgado em outubro, Espanha, Hungria, Letónia, Portugal e Reino Unido foram os países que concederam mais vistos a investidores e famílias, à frente da Grécia, Chipre e Malta.

As ONG consideram que o processo favorece “tomadas de decisão discricionárias e a corrupção”. Pelo menos seis mil passaportes e quase 100 mil títulos de residência foram "vendidos" na UE na última década, criticavam.

No Reino Unido, após o envenenamento do antigo espião Sergei Skripal, o Ministério do Interior anunciou que iria rever as autorizações de residência atribuídas a 700 cidadãos russos no âmbito dos vistos gold.

Além dos três Estados referidos, mais 17 países - incluindo Portugal - têm regimes de incentivo ao investimento.

No entanto, Bruxelas aponta os perigos em ambos os regimes. “Os regimes de cidadania do investidor diferem dos regimes de residência do investidor (vistos gold), que visam atrair investimentos em troca de residência no país em questão, e existem em 20 Estados-Membros da UE. No entanto, os riscos inerentes a tais esquemas são semelhantes àqueles criados pelos esquemas de cidadania de investidores. Além disso, estes regimes têm impacto noutros Estados-Membros, uma vez que a autorização de residência válida concede certos direitos a cidadãos de países terceiros para viajar livremente pelo espaço Schengen", lê-se no documento.
Segurança e transparência
Nesse sentido, a Comissão Europeia pede aos governos nacionais que façam efetivamente controlos de segurança antes da emissão do visto e assim cumpram a legislação da UE, uma vez que a “prática pauta-se pela falta de informações a este respeito e os Estados-Membros dispõem de poderes discricionários quanto à abordagem por eles adotada em matéria de segurança”.

Ao apontar a necessidade de reforçar o controlo, a Comissão quer garantir que as regras anti-branqueamento de capitais "não sejam subvertidas".

Bruxelas aconselha ainda a que seja necessária a residência física para a obtenção do estatuto de residente de longa duração, em detrimento de “apenas uma presença física limitada ou mesmo nula do investidor no Estado-Membro em causa”.

Além disso, “o relatório realça a falta de transparência e supervisão destes regimes, nomeadamente em termos de monitorização, e a ausência de estatísticas sobre o número de pessoas que obtêm uma autorização de residência através dos referidos regimes”.

Bruxelas sugere que os Estados analisem os “fundos desembolsados pelos investidores que apresentem um pedido de cidadania ou residência” em “conformidade com as regras da UE em matéria de luta contra o branqueamento de capitais. A Comissão aponta ainda a existência de “instrumentos disponíveis no quadro da UE para a cooperação administrativa, em especial para o intercâmbio de informações”.

Foi anunciada a criação de um grupo de especialistas que vai criar “um conjunto comum de controlos de segurança no que respeita aos regimes de cidadania a favor dos investidores, incluindo processos específicos de gestão dos riscos, até ao final de 2019”.
Portugal não é diretamente citado
Sem nunca citar Portugal, Bruxelas pede aos países maior transparência quanto aos seus processos internos e nota que estes “esquemas” apresentam "riscos sérios de segurança" para os Estados-membros e para o bloco comunitário.

O programa de Autorização de Residência para a Atividade de Investimento em Portugal foi criado em outubro de 2012. Até dezembro de 2018, foram atribuídas 6.962 autorizações de residência, 4.073 dos quais a cidadãos chineses, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

As autorizações de residência a familiares reagrupados abrangem 11.815 pessoas.

Os vistos gold renderam aos cofres do Estado 4,25 mil milhões de euros, com cerca de 3,85 mil milhões a resultarem da aquisição de bens imóveis, e pouco mais de 400 mil de transferência de capital, refere o SEF.

O visto gold é atribuído mediante a transferência de capital num montante igual ou superior a um milhão de euros, a criação de pelo menos 10 postos de trabalho ou a compra de imóveis num valor mínimo de 500 mil euros.

Na altura da sua criação, Rui Machete, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, ressalvava que "há um conjunto de requisitos de segurança e de medidas cautelares na aplicação deste regime, bem como um controlo cuidadoso da origem do capital utilizado e respetiva aplicação". No final de seis anos, é possível aceder à nacionalidade portuguesa.

O Bloco de Esquerda tentou por duas vezes acabar com este mecanismo, mas sem sucesso. A proposta de lei foi chumbada, tendo tido apenas os votos a favor de bloquistas e comunistas e os votos contra de PS, PSD e CDS-PP.

O projeto de lei bloquista voltou a ser debatido a 10 de janeiro. O PS tem a responsabilidade de decidir se Portugal vai continuar a "vender a sua cidadania a troco de dinheiro", dizia o deputado José Manuel Pureza.

No início do ano, foi conhecida a sentença do julgamento por corrupção no caso de concessão de vistos gold. O antigo ministro da Administração Interna Miguel Macedo foi absolvido de todos os crimes de que estava acusado. Em novembro de 2014, era acusado de alegado favorecimento de um grupo que visaria obter dividendos ilícitos da atribuição dos chamados vistos dourados – por via de negócios imobiliários com empresários chineses.

Foi considerado o maior caso de corrupção no aparelho de Estado. Dos 21 arguidos, quatro foram condenados. A antiga secretária do Ministério da Justiça, Maria Antónia Anes, foi condenada a quatro anos e quatro meses de prisão com pena suspensa. O ex-presidente Instituto de Registos e Notariado António Figueiredo foi condenado a quatro anos e sete meses de prisão com pena suspensa, por corrupção e peculato de uso.

Em declarações ao Guardian, fonte do Ministério da Administração Interna confirma que o programa não está suspenso. “Contudo, estamos empenhados com a sua reforma. O anúncio será feito no devido tempo”, disse.

Desde 2012, foram atribuídas 6813 autorizações de residência ao abrigo deste programa: duas no ano de arranque, 494 em 2013, 1526 em 2014, 766 em 2015, 1414 em 2016, 1351 em 2017 e 1260 no ano passado.
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