Fármaco que causou cegueira foi desaconselhado

A Roche desaconselhou a utilização oftalmológica do fármaco administrado aos seis doentes que desenvolveram infecções oculares graves no Hospital de Santa Maria. A farmacêutica enviou uma carta aos hospitais portugueses a alertar que a aplicação do Avastin "no contexto oftalmológico não foi autorizada por qualquer autoridade de saúde mundial", noticia a Sábado.

RTP /
O director do Serviço de Oftalmologia do Hospital de Santa Maria diz que dois dos doentes apresentam "alguma recuperação" João Relvas, Lusa

Na base da informação enviada a todos os directores de serviços farmacêuticos e de oftalmologia das unidades de saúde portuguesas esteve a observação de efeitos adversos do Avastin em tratamentos de oftalmologia no Canadá, em Novembro de 2008. A carta, revela a edição on-line da revista Sábado, tem a assinatura da directora médica do laboratório e assinala que "a Roche não estudou nem procurou obter autorização para o uso de Avastin em contexto oftalmológico". Sublinha ainda que a utilização do medicamento em "contexto oftalmológico não foi autorizada por qualquer autoridade de saúde mundial".

Em declarações à revista, o presidente do conselho de administração do Hospital de Santa Maria disse desconhecer a existência da carta. No entanto, Adalberto Campos Fernandes garantiu que "o uso do medicamento nestas circunstâncias é relativamente frequente, inclusivamente no estrangeiro". Ouvido pela agência Lusa, o porta-voz daquela unidade de saúde de Lisboa, José António Pinto da Costa, escusou-se a fazer qualquer comentário "isoladamente", remetendo eventuais esclarecimentos para futuras conferências ou notas de imprensa. Até ao momento, disse o porta-voz, "o Hospital de Santa Maria ainda não tem dados novos".

A 16 de Novembro de 2008, a Roche fez chegar um aviso no mesmo sentido aos médicos oftalmologistas do Canadá. A farmacêutica alertava, então, para a ocorrência de reacções adversas em 25 doentes canadianos - visão turva e inflamação tóxica para os tecidos após uma sequência de administrações intra-oculares de um lote do fármaco Avastin. A página do Ministério da Saúde do Canadá na Internet mantém publicada uma nota sobre o medicamento.

Medicamento para tratamentos oncológicos

O bevacizumab, substância activa do Avastin, é utilizado em oncologia. Só recentemente começou a ser aplicado em procedimentos de oftalmologia. Na edição de quinta-feira, o Diário de Notícias adianta que o medicamento foi associado a 361 reacções adversas em tratamentos oftalmológicos no Canadá, em 2008.

O presidente da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, Carlos Pires, recusa-se a comentar o teor da carta enviada aos hospitais portugueses. Ouvido pela Lusa, o responsável pelo Infarmed remeteu para as indicações terapêuticas do Avastin, que apenas recomendam a utilização do produto em tratamentos oncológicos.

As indicações terapêuticas referem que, "em associação com quimioterapia contendo fluruopirimidinas, [o Avastin] está indicado no tratamento de doentes com carcinoma metastizado do cólon ou do recto". O medicamento é também indicado para o tratamento de "doentes com cancro da mama metástico", em combinação com o "paclitaxel". "Em associação com quimioterapia baseada em platinos", o bevacizumab "está indicado no tratamento de primeira linha de doentes com cancro do pulmão de células não pequenas, irressecável, avançado, metástico ou recidivante". Está também indicado "no tratamento de primeira linha de doentes com cancro de células renais avançado e/ou metastizado", quando associado a "interferão alfa-2a".

Doentes cegaram após administração de bevacizumab

O director clínico do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, João Correia da Cunha, explicava na terça-feira, em comunicado, que o bevacizumab foi administrado, a 17 de Julho, no tratamento de seis pessoas de um grupo de 12 com "degeneração macular associada à idade". Os seis doentes desenvolveram "um quadro de endoftalmite (infecção ocular) que obrigou ao seu internamento", encontrando-se agora em risco de cegueira permanente.

Segundo o presidente do conselho de administração do Hospital de Santa Maria, o relatório sobre os doentes só deverá ser tornado público dentro de duas semanas. A unidade de saúde, garantia ontem Adalberto Campos Fernandes, "não se furtará às responsabilidades que lhe possam ser imputadas".

O caso está a ser escrutinado pelos serviços internos do Hospital de Santa Maria e por uma investigação "externa e independente" por parte da Inspecção-Geral de Saúde. O Infarmed recolheu amostras do medicamento para análise.

O director do Serviço de Oftalmologia do hospital, Manuel Monteiro-Grillo, diz que quatro dos seis doentes estão estáveis e que outros dois apresentam "alguma recuperação": "Com os exames clínicos e meios de diagnóstico complementares, estamos animados com a possibilidade de recuperação da visão dos doentes. Talvez para a semana possamos ter uma ideia mais clara, mas hoje dizemos que não há uma regressão".

Manuel Monteiro-Grillo confirmou que todas as intervenções em causa foram conduzidas por uma única equipa e no mesmo bloco operatório de oftalmologia. Apenas um lote do medicamento diferiu. Por sua vez, o responsável pela Farmácia Hospitalar, João Paulo Cruz, sustentou que a possibilidade "de o caso ser imputado a 100 por cento à molécula" do bevacizumab "é muito baixa". Contudo, admitiu que esse é um cenário que "não se pode descartar completamente".

A utilização do medicamento encontra-se suspensa até que "seja encontrada a razão" das infecções oculares. A equipa médica que procedeu aos tratamentos permanece em funções.

PUB