"Todos os hospitais" privados com "pagamentos em atraso por parte do Estado"

por RTP
Regis Duvignau - Reuters

O atraso no pagamento a hospitais privados está a colocar em risco as cirurgias em lista de espera de utentes transferidos de hospitais públicos. O jornal Público avançou esta sexta-feira que há faturas por pagar há mais de dois anos. Em entrevista à RTP, Óscar Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, afirma que “não são alguns hospitais que têm este problema de pagamentos em atraso por parte do Estado. São todos os hospitais”.

Segundo o Público, os hospitais privados queixam-se de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não paga as cirurgias feitas ao abrigo do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC).

Devido aos atrasos no pagamento, algumas equipas médicas têm recusado operar doentes que são enviados dos hospitais públicos. Mas a emissão de vales-cirurgia, que permite aos doentes serem operados noutros hospitais, está a aumentar de forma significativa e estes são, cada vez mais, rejeitados no privado.

Os hospitais do SNS enviam cada vez mais doentes para o privado para realizarem cirurgias, por incapacidade de dar resposta. Mas, como avança o jornal, o problema é que “os pagamentos nunca mais são feitos”, o que põe em causa os milhares de utentes em lista de espera.

“Há faturas por pagar com mais de dois anos e os prestadores privados e as respetivas equipas médicas começam a recusar fazer cirurgias pelo SIGIC porque nunca mais recebem”.

O diretor clínico do Hospital da Ordem Terceira Chiado em Lisboa, José Domingos Vaz, ressalvou, em entrevista ao Público, que a situação da entidade que dirige “não é caso único no país e que há outros prestadores privados com o mesmo problema”.

A verdade é que “já houve muitos médicos que deixaram de fazer estas cirurgias” e esta “situação é preocupante e vai fazer aumentar as listas de espera porque o SNS não tem capacidade de resposta”, acrescenta o diretor clínico.

O problema, diz, é que os vales-cirurgia estão a “aumentar brutalmente” e os doentes andam “à procura de hospitais privados que os recebam” mas “já ninguém quer fazer estas cirurgias”.
Atrasos na faturação
Para além de uma equipa de profissionais de saúde, médicos e enfermeiros, é necessário também material para realizar as cirurgias. Mas, como explica José Domingos Vaz, “os fornecedores obrigam a um pagamento a 60 dias” e há “um travão à faturação por parte do SNS”.

Quando é emitido um vale-cirurgia, a instituição privada que recebe o doente tem de enviar o processo para a Administração Regional de Saúde (ARS) a que pertence o hospital público que emite o vale-cirurgia para o validar. Ou seja, é necessário a validação do processo por parte da ARS para ser enviada a fatura para pagamento ao hospital de origem.

Enquanto as faturas não forem validadas pela ARS a despesa não aparece nas contas dos hospitais públicos. E, mesmo depois de serem validadas, se a fatura não for lançada pela instituição do SNS , a despesa continua a não aparecer nas contas.

No entanto, o que tem acontecido é que a ARS “vai retendo a faturação e demora a validar” e, além disso, “só estão a autorizar faturação enviada até dezembro de 2017, estando a restante à espera”, referiu o diretor do prestador privado.

O jornal diz ainda que, só a esta instituição privada de Lisboa o SNS deve mais de seis milhões de euros por 3250 cirurgias. A dívida faturada e validada, até ao primeiro trimestre deste ano, foi de 2,4 milhões, estando ainda 3,9 milhões por validar.

A questão é que os últimos pagamentos registados na tesouraria do Hospital da Ordem Terceira Chiado, referentes às cirurgias recebidas dos hospitais do SNS, são de 2017.

“Compreendo quando tenho médicos que me dizem que não fazem [cirurgias]. Estamos a trabalhar de borla”, concluiu o médico.
SNS não dá resposta e privado não faz cirurgias "de borla"

No Hospital de Jesus, também em Lisboa, a situação é a mesma. Fonte oficial disse ao Público que a instituição provada tem “faturas em atraso com mais de dois anos” e uma dívida superior a dois milhões de euros.

A situação agravou-se a partir de maio de 2016 quando passaram a ser os hospitais públicos os responsáveis pelo pagamento aos privados. Até esta altura, eram as administrações regionais de saúde que pagavam às instituições privadas. Além disso, as ARS apenas pagam “os vales-cirurgia emitidos pelos hospitais de parceria público-privada”.

Embora no início do Governo de António Costa tenha havido uma tentativa de diminuir os gastos com os vales-cirurgia, os hospitais deixaram de conseguir dar resposta aos doentes e as listas de espera aumentaram significativamente, sendo necessário voltar a enviar os doentes para o privado.

Em resposta ao Público, o Ministério da Saúde disse ainda não ser “possível a consolidação da informação relativa aos pagamentos específicos a esta atividade juntos de todos os hospitais do SNS” e que “até maio do presente ano, os Hospitais EPE receberam um reforço do adiantamento do Contrato-Programa de 197 milhões de euros para pagamentos de dívida vencida, na qual se insere os fornecedores de SIGIC” e “em fevereiro de 2019, executaram-se pagamentos de dívida vencida no âmbito das entradas de capital”.

O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, confirmou ao Público que, “infelizmente”, estas faturas por pagar não são uma novidade.

Os hospitais públicos “têm elevadas restrições de tesouraria e elevadas dívidas aos fornecedores e os prestadores privados são um fornecedor como os outros” e, se as unidades do Serviço Nacional de Saúde não conseguem dar resposta, os utentes têm mesmo de ser transferidos para as unidades privadas, disse Alexandre Lourenço.
"São todos os hospitais"

Em entrevista à RTP, Óscar Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, explica que “não são alguns hospitais que têm este problema de pagamentos em atraso por parte do Estado. São todos os hospitais”.

Com isto, quer dizer que “é todo o sistema do SIGIC (…) que não funciona devidamente”, e isso leva a dois problemas: “a falta de financiamento e, portanto, atrasos dos pagamentos das faturas emitidas e validadas” e o facto de que “muitas cirurgias não são devidamente validadas pelo hospital de origem”.

O responsável explica que, muitas vezes, embora sejam emitidos os vales-cirurgia e os utentes os recebam e, supostamente, tenham a possibilidade de o “acionar” num hospital privado, “para o processo ficar completo o hospital de origem tem de o validar e isso não tem acontecido”.

O problema agrava-se porque isto “acontece em múltiplas situações”, de forma generalizada, e por razões financeiras, na maioria dos casos.

A emissão de qualquer vale-cirurgia é feita “de forma centralizada pelo Ministério da Saúde” e, quando há necessidade de transferir um doente para uma unidade privada, os hospitais de origem têm dificuldade em reconhecê-lo e “admitir que a sua atividade fica aquém daquilo que são as necessidades da população”.

Além disso, ficam com “uma dívida nas suas contas”. E, como os hospitais públicos, na verdade, não têm orçamento suficiente, não tem como “cabimentar essa despesa”.

Desde 2017, houve muitas cirurgias que não foram faturadas. Isto é, as cirurgias foram realizadas mas não constam nas contas dos hospitais públicos “e, portanto, não é feito o pagamento devido aos hospitais privados”, explicou Óscar Gaspar.

Há um “mal-estar em relação ao SIGIC” e não é de agora. A dívida existe e tem “de ser paga mas não se sabe quando”.

Por um lado, da parte dos hospitais do SNS há um grande problema financeiro, porque “há pagamentos que têm de ser feitos a 30 dias, a 60 dias, por exemplo” e por isso não é admissível que os privados tenham de pagar nesses prazos de dias mas só recebam daí a dois anos.

Por outro lado, as equipas médicas têm expressado o seu desagrado às administrações dos hospitais privados por estarem a trabalhar e a dívida ainda “nem estar reconhecida no momento”.

Considerando o aumento do número de vales emitidos, e tendo os hospitais privados recursos e possibilidade de contribuir para diminuir as listas de espera, Óscar Gaspar diz que as entidades privadas querem continuar a “fazê-lo” e a ser, de certa forma, um parceiro do Ministério da Saúde, mas esperam “que as regras sejam cumpridas”.

“Há dívidas aos hospitais privados e há dívidas que nem sequer estão contempladas e, portanto, estas dívidas do SIGIC devem ser incluídas no plano de regularização das dívidas do SNS”, concluiu.
As cirurgias e as dívidas hospitalares
De acordo com os dados de um relatório da Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos (Apormed), divulgados no Público, a dívida total dos Hospitais do SNS até abril de 2019 é de 799,1 milhões de euros, sendo que a dívida vencida corresponde a 529,2 milhões de euros.

Considerando os valores em análise, constata-se que dos mais de 231 mil utentes inscritos para cirurgia, cerca de 93,1 por cento são transferidos, por emissão de vales-cirurgia, para os hospitais privados. Além disso, pode-se observar que em 2017 houve um aumento significativo do número de vales de cirurgia emitidos, cerca de 118 mil, comparando com os registos dos anos anteriores.

Relativamente à dívida atual aos fornecedores de dispositivos médicos, os dados indicam que os hospitais têm uma dívida superior a 205 milhões de euros, enquanto os hospitais privados devem cerca de 21 milhões.
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