António Guterres, Figura Nacional do Ano

2016 ficará nos arquivos como o ano em que um dos principais cargos políticos e diplomáticos do mundo moderno foi atribuído a um português. Pela sua eleição como secretário-geral da ONU, António Guterres é a escolha da redação da RTP para Figura Nacional.

No culminar de uma longa carreira de político, dirigente partidário, governante e diplomata, sempre em posições de alta exigência executiva, António Guterres foi eleito, em outubro, secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Nunca um cidadão nascido em Portugal havia sido chamado a desempenhar funções de tamanha importância internacional.

Reuters/Lucas Jackson
A candidatura
Quando começou a corrida ao lugar de secretário-geral da ONU, a campanha de António Guterres não parecia especialmente votada ao sucesso. Para a cadeira atualmente ocupada por Ban Ki-moon (até 31 de dezembro), o intricado jogo de sensibilidades políticas e diplomáticas omnipresente nas Nações Unidas vaticinava um perfil preferencial em que o português, recentemente saído do Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR), não se enquadrava.

Diziam os oráculos que o seguinte secretário-geral deveria apresentar pelo menos uma destas duas características específicas: ser uma mulher, por uma questão de igualdade de oportunidades entre géneros, e provir da Europa de Leste, no espírito tradicional da rotatividade geográfica como critério para a atribuição do lugar. Para além disso, a candidatura do português não tinha o “patrocínio” de nenhum dos grandes blocos internacionais, fosse o de influência norte-americana, o de influência russa, ou o de influência germânica, a Comissão Europeia.
Os candidatos

Ao contrário de Guterres, da lista inicial de nove candidatos (cinco homens e quatro mulheres), vários nomes preenchiam uma ou as duas características básicas tidas como preferenciais para suceder ao sul-coreano Ki-moon. Mas, a seu favor, o ex-alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados tinha argumentos de peso mais objetivos, em termos da função a que se candidatava: a sua reconhecida eloquência e preparação técnica, aliadas ao profundo conhecimento dos meandros da Organização e à experiência no terreno, em resultado dos dez anos que passou à frente do ACNUR.

Assim, de uma surpresa inicial para uma progressiva afirmação como favorito, o antigo primeiro-ministro de Portugal foi vencendo, uma a uma, as cinco primeiras votações indicativas a que os candidatos foram sendo submetidos pelo Conselho de Segurança – uma absoluta novidade criada para dar mais transparência ao processo de seleção do secretário-geral.

Clareza que foi ameaçada pela candidatura de “último minuto” da búlgara Kristalina Georgieva, lançada pela Comissão Europeia antes da sexta, última e decisiva votação, para tentar contrariar o favoritismo que António Guterres já tinha nesse momento e colocar no lugar de secretário-geral alguém próximo da Alemanha, “eterna pretendente” a um assento permanente do Conselho de Segurança (CS).

Apesar desta manobra política, que foi largamente criticada – Kristalina não se submeteu à exigente e exaustiva bateria de “provas orais” públicas que os outros candidatos tiveram de percorrer ao longo de vários meses - António Guterres acabou por conquistar a unanimidade do CS, incluindo os cinco membros permanentes, cujo direito individual de veto poderia bloquear qualquer decisão.

Como fez questão de vincar depois da votação decisiva Vitaly Churkin, embaixador da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, foi escolhido o melhor de entre os candidatos. As redes sociais, meio de comunicação instantâneo, foram imediatamente inundadas por mensagens de felicitações ao português. Entre elas, a da turbo-candidata Georgieva:


Em Portugal, sucederam-se em catadupa as reações de satisfação, que se podem condensar nas palavras do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, regozijando-se com a "histórica" nomeação de Guterres, um "português excepcional", "um orgulho" para o país que o viu nascer no dia 30 de abril de 1949.

Entre a indicação do seu nome pelo Conselho de Segurança e a eleição - por aclamação - pelos 193 países que compõem a Assembleia-geral da ONU, António Guterres fez o seu primeiro discurso como secretário-geral designado. A partir do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, Guterres usou o português, o inglês, o francês e o espanhol para exprimir “gratidão” pela escolha e “humildade” perante os grandes desafios que o esperam ao longo dos cinco anos do mandato que se inicia no primeiro dia de 2017.

Os desafios

São muitos, complexos e exigentes, esses desafios. A guerra na Síria - "uma ameaça à segurança mundial", alerta Guterres - e os outros conflitos no Médio Oriente; a crise dos refugiados - que gerou na Europa movimentos de antagonismo para com os migrantes, reações "que se estão a espalhar como um vírus" pelo mundo fora; o terrorismo, a questão ucraniana e a resposta global às alterações climáticas são dossiers prementes frequentemente usados pelos críticos da ONU como argumento para apontar os perigos da inoperância e da ineficiência da atual estrutura diretiva da Organização.

Outro, não menos complexo, é o da própria modernização das Nações Unidas, cuja constituição e funcionamento refletem mais o equilíbrio de forças saído da II Grande Guerra (1939-45) do que o mundo do início do século XXI.

A ONU é cada vez mais vista como um monstro burocrático e tendencioso, que age principalmente no interesse dos países mais poderosos e vai falhando na reunião de consensos que permitam resolver os mais graves assuntos do Mundo.

A necessidade de reformas, especialmente no Conselho de Segurança, o principal centro de decisão, é cada vez mais considerada como fundamental para a sobrevivência da Organização, que é - recorde-se - o grande fórum político-diplomático mundial onde se determinam o presente e o futuro do planeta. Já o dizia, por exemplo, o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em 2005. Reiterou-o, em 2015, o, então, Alto Comissário para os Refugiados António Guterres, num tom muito crítico, relativamente à comunidade internacional e, em particular, ao Conselho de Segurança. 

Apenas um ano depois das declarações de Guterres a que se acaba de aludir - e com o português agora investido em funções que lhe permitem maior contributo direto para a solução dos problemas que então enunciou -, mantêm-se inalteráveis os grandes problemas que a concertação internacional precisa de solucionar ou atenuar. No centro desse trabalho ciclópico, a partir de 1 de janeiro, estará António Guterres. Um português que, em 2016, aos 67 anos (cumpre 68 em abril), sobe ao degrau mais alto da sua carreira, desde cedo orientada pelos princípios do Humanismo.

António Guterres é, por isso, a escolha da redação da RTP para Figura Nacional do Ano.

Sandra Machado Soares, Miguel Teixeira - RTP