Mulheres que contam. Capicua

por Silvia Alves - RTP

Capicua, ou Ana Matos Fernandes, nasceu no Porto nos anos 80, descobriu a cultura Hip Hop nos anos 90 e tornou-se Rapper nos anos 00.

Em 2024, no Dia da Mulher, lançou em todas as plataformas a música “Que força é essa amiga”, baseada na canção “Que força é essa” de Sérgio Godinho.


No ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril de 1974, Capicua tem concertos marcados a: 21 de Março - Santo Tirso, 23 de Março – Viseu, 12 de Abril – Guimarães, 24 de Abril com os Clã – CCB-Lisboa, 27 de Abril – Palácio Baldaia-Lisboa.

Socióloga de formação (ISCTE), com Erasmus e doutoramento feitos em Barcelona, Capicua acabou por fazer da música o seu principal ofício e é conhecida pela sua escrita emotiva, feminista e politicamente engajada.
 
Da experiência entre Lisboa, Porto e Barcelona soube ler com clareza o processo de gentrificação e o seu lado irreversível: “dificilmente voltas atrás no tempo para recriar o café que perdeste, e que estava ali desde os anos 50 ou antes. Da mesma maneira que as lógicas de vizinhança se perdem e que muitas vezes garantem, através da solidariedade, a sobrevivência das pessoas, ou os velhos hábitos de circulação na cidade e de as pessoas se conhecerem e reencontrarem dia após dia na tabacaria, no barbeiro etc., são coisas que nunca mais voltam a acontecer. E quando substituis essa população que vive de facto numa cidade por uma população que passa 3, 4 dias e vai embora, há uma atomização das coisas, os laços desfazem-se. Uma cidade são essas relações muito complexas, que se constroem todos os dias e que, quando se perdem, é irreversível.”

A letra para "Hostel da Mariquinhas", cantada por Gisela João, revela cáustica, mas humoristicamente, as consequências da gentrificação:


A sua discografia conta com duas mixtapes (Capicua Goes Preemo, 2008 e Capicua Goes West, 2013) e três álbuns em nome próprio, um disco de remisturas, dois discos-livro para crianças, um disco luso-brasileiro colaborativo e um EP ao vivo.
Na última década, tem somado concertos, workshops e projetos sociais, e conquistado um público muito diverso. Teve colaborações com vários artistas lusófonos e é também letrista para vários intérpretes, teve algumas experiências na escrita para teatro, foi cronista na Revista Visão (2015-2021) e agora no Jornal de Notícias. Como escritora, lançou o seu primeiro livro “Aquário” (pela Companhia das Letras em 2022) e o livro infantil “Cor-de-Margarida” (pela Nuvem de Letras em 2023). E afirma: “Eu podia não ter encontrado a música na minha vida, mas a escrita tinha de facto de acontecer, porque é o meu superpoder.


Capicua comenta numa das crónicas – ‘25 de Abril sempre!’ - inserida no livro Aquário:

“Percebi desde cedo, desde a pré-adolescência, que se não tivesse acontecido o 25 de Abril, a minha vida teria sido diferente e eu provavelmente não poderia ser aquilo que eu sou, enquanto pessoa crítica e envolvida politicamente, e com uma perspectiva engajada com as questões sociais e políticas. Para mim sempre foi muito óbvio que enquanto mulher, enquanto pessoa preocupada com as injustiças do mundo e também depois enquanto artista, a minha vida estaria muito, muito condicionada. E tenho uma profunda gratidão por aqueles que arriscaram a sua vida na luta contra a ditadura, muitos deles sofrendo perseguição, tortura, prisão, exílio e, muitas vezes, há pessoas que se esquecem que isso acontecia – e não foi assim há tanto tempo – e, portanto, acho que tenho quase um dever moral de exercer essa gratidão na reconquista quotidiana dessas liberdades, porque elas nunca estão garantidas, e é preciso lembrar isso. E, depois, também no exercício pleno daquilo que eu faço que é: enquanto mulher, estar em cima do palco, fazer a minha música, a dizer as coisas que declaradamente eu acredito, sem pedir licença a ninguém, sem me preocupar em ser decorativa, e incentivando outras pessoas, e outras mulheres nomeadamente, a fazer o mesmo, isso já podia por si só ser subversivo, e continua a ser de certa forma, portanto, tenho consciência que o 25 de Abril sempre! porque se exerce sempre todos os dias, quotidianamente, e para que as pessoas não se esqueçam de que, da mesma forma que custou tanto a conseguir conquistar, pode ser fácil perder. E, às vezes, as pessoas têm tendência a relativizar ou a não passar às próximas gerações o que significou de facto, mas, de facto, não podemos adormecer sobre aquilo que é a nossa história recente, porque já temos vários exemplos na Europa sobre como facilmente a extrema-direita cresce e pode de facto ameaçar as nossas liberdades, os nossos direitos mais básicos e há-que estar atento.”

Enquanto feminista acredita que a sociedade impõe uma super-exigência sobre mulheres, mas que, mesmo exausta, há muito que celebrar – uma celebração que considera, é em si própria subversiva. “Nós apresentarmo-nos não como vítimas, mas como potências vivas, e isso é para mim uma coisa muito óbvia. E, depois, também há uma nota final na crónica [de homenagem às 3 Marias] ‘Sobre a exaustão’ (do livro Aquário) que eu acho que é importante: fala do facto de, no Porto, a cidade onde eu vivo, haver apenas 5 estátuas de mulheres em nome próprio, que são Guilhermina Suggia, Sophia de Mello Breyner, Rosalia de Castro, Virgínia Moura e Carolina Michaelis de Vasconcelos. É impressionante a desigualdade histórica desse reconhecimento do talento das mulheres, a sua importância, pela sua invibilização durante milénios, mas também pensarmos que há imensas outras estátuas na cidade em que há mulheres seminuas, decorativas apenas, ali a celebrar o homem homenageado, e é óbvio para mim que temos de rejeitar esse papel de perpetuar essa condição de coadjuvantes, e tornarmo-nos as protagonistas das nossas próprias vidas, para que haja mais referências, para que as próximas gerações tenham muito mais estátuas de mulheres em nome próprio e possam inspirar-se nesses exemplos, tal como nós nos podemos inspirar nas 3 Marias, nestas 5 mulheres homenageadas no Porto, em todas as outras cidades, do país e do mundo.”


Sobre a distorção criada na música, no cinema, e cultura de massas sobre a expectativa do envelhecimento das mulheres, Capicua dá dois exemplos de mulheres que envelheceram mantendo a rebeldia e ostentando o seu envelhecimento de uma forma livre e feminista:

“Rita Lee ressalva a importância de envelhecermos como feiticeiras e não como “pirúas”, não é? (ri-se), ou seja, como mulheres sábias, mulheres que põem essa sabedoria ao serviço da sua liberdade e da sua arte, sem dar satisfações a ninguém… E a Jane Fonda que é um exemplo de activismo político – presa por se manifestar contra as políticas ambientais – vemo-la sempre perto das grandes causas como, aliás, vimos ao longo da sua vida, a fazer cinema feliz. Diz que se encontrou a si própria no celibato; que esteve toda a vida a viver em relação ao pai ou aos seus maridos e que agora, na terceira idade, se encontra a ela própria como mulher, enquanto indivíduo, para cumprir a sua independência, e a sua individualidade de uma forma mais feminista. São de facto exemplos muito inspiradores.”

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