Viagem ao passado. Centro de Arqueologia de Lisboa a promover conhecimento há dez anos

por Carla Quirino - RTP
Carla Quirino - RTP

O Centro de Arqueologia de Lisboa assinala dez anos dedicados à promoção do conhecimento produzido a partir do património arqueológico da cidade. Além do trabalho científico e de repositório de parte do espólio exumado do subsolo da capital, este organismo sob tutela da autarquia organiza iniciativas de atividade arqueológica para a população em geral.

Sabia que, na encosta da Ajuda, o atual Geomonumento do Rio Seco já esteve debaixo de água entre o Jurássico e o Cretácio? E o que são Calcários de Rudistas (bivalves de há 163-66 milhões de anos)? As respostas puderam ser ouvidas durante as diversas visitas guiadas organizadas pelo Centro de Arqueologia de Lisboa (CAL). Esta decorreu em outubro do ano passado.

Visita orientada ao Geomonumento do Rio Seco, 2022 | Carla Quirino - RTP

Neste encontro, ficou também a saber-se que, entre as camadas de rochas sedimentares, encontram-se nódulos de sílex. A equipa do CAL explicou que essa matéria-prima foi utilizada por comunidades pré-históricas do Neolítico Final e o Calcolítico para construírem artefactos cortantes, vestígios encontrados em intervenções arqueológicas no local.


Visita orientada ao Geomonumento do Rio Seco, 2022 | Carla Quirino - RTP


Este geosítio é um exemplo de interligação entre dados geológicos e vestígios humanos, com muito para contar. A partilha de conhecimento é uma das missões do CAL.

O subsolo de Lisboa é um ficheiro imenso por explorar. É a nossa Torre do Tombo com muitos documentos ainda por identificar e tirar proveito deles. O subsolo está cheio de informação”, realça à RTP António Marques, arqueólogo e coordenador do Centro de Arqueologia de Lisboa, atestando a importância do estudo da ocupação humana no município.

Constituido em 2013, o CAL está instalado num antigo armazém de cereais localizado no n.º 166 da Avenida da Índia, perto dos Jerónimos. Reúne uma equipa de 16 pessoas, sob tutela do Departamento de Património Cultural da CML.

O CAL não tem funções de museu. É antes um motor para "dar um impulso e colocar a arqueologia, enquanto recurso patrimonial, ao serviço da comunidade, promovendo-a e criando produtos culturais e patrimoniais", vinca António Marques.
Congressos dirigidos a público docente
O CAL organiza, por exemplo, congressos como Os Encontros de Arqueologia, que irá decorrer em junho. "Promovemos, de dois em dois anos, um espaço para que os colegas que intervêm arqueologicamente na cidade de Lisboa possam apresentar os resultados dos seus trabalhos e escavações, publicá-los e divulgá-los pela comunidade”, ressalta o arqueólogo.

Juntamente com a Sociedade de Geografia, o Centro também realiza a já sexta edição dos Fragmentos Arqueológicos da Cidade de Lisboa. São eventos temáticos em que os autores convidados apresentam os estudos mais recentes.

O coordenador salienta que estes colóquios “são pensados não só para os profissionais da arqueologia, mas também para o público docente – os professores do ensino secundário. Achamos importante proporcionar momentos de atualização de conhecimento aos professores”. 

E reforça: “São eles quem está a ensinar a próxima geração. Portanto, é muito importante dar-lhes ferramentas para isso”.

“Queremos muito chegar aos professores e aos alunos. E acho que temos tido algum sucesso. Por exemplo, o site que lançámos, da Lisboa Romana, sabemos que é utilizado como ferramenta de auxílio para complementar as aulas – isso é muito bom para nós”, sublinha.

Workshop realizado no âmbito do 30º Congresso Internacional da sociedade «REI CRETARIAE ROMANAE FAUTORES», 2016 | Arquivo CAL / CML
Aproximar a arqueologia à população
Para reforçar a relação entre a cidade arqueológica e os residentes de Lisboa, o CAL dinamiza sessões de Arqueologia no Bairro.

"É uma iniciativa que organizamos com entidades e bibliotecas locais, junta de freguesia, em que convidamos os arqueólogos que realizaram determinado trabalho a exporem diretamente o que fizeram, a contactarem diretamente com a população", destaca António Marques.

Trata-se de sessões de proximidade em que "o principal público são os vizinhos dos trabalhos arqueológicos", que provavelmente foram prejudicados e desta forma são informados do que esteve a acontecer na sua rua, atrás dos tapumes.

Sessão de Arqueologia no Bairro, nos claustros do Convento da Graça, 2019 | Arquivo CAL / CML

Pelo exterior circula também a equipa do Serviço Educativo. “É uma ferramenta essencial para nós nas questões de sensibilização patrimonial da arqueologia. É dedicada a vários públicos desde sénior, pré-escolar ou públicos com necessidades especiais", salienta o coordenador.  Zelar pelas provas da ocupação humana
A atividade arqueológica tem crescido na cidade de Lisboa nas últimas duas décadas. Com as obras de requalificaçao urbana e a obrigação legal de acompanhamento arqueológico, a cada vez que se remexe o subsolo, só em 2018 os Pedidos de Autorização para Trabalhos Arqueológicos ultrapassaram os 300.

Neste imenso desfolhar de provas produzidas pelos anteriores ocupantes do território, o CAL recebe muitos espólios arqueológicos provenientes de escavações da cidade.

“Estamos disponíveis para receber espólio – por exemplo, de empresas de arqueologia depois de realizarem trabalhos arqueológicos na cidade, sejam obras públicas ou privadas”, observa António Marques.

Mas o responsável relembra que, salvo raras exceções, a receção dos materiais tem de ser acompanhada pelo “relatório da escavação aprovado", que inclui o inventário, descrição da escavação e identificação cronológica dos materiais. Uma vez entregue, “somos nós que zelamos pelo espólio”, diz o investigador.

Depósito de Bens Arqueológicos de Pedrouços | Arquivo CAL / CML

O Centro gere dois grandes espaços de reserva - em Pedrouços e no Bairro do Rego. Aqui estão reunidos materiais provenientes de escavações desde os anos 60. Estão presentes vestígios humanos desde o período Paleolítico no terriório de Lisboa, mas os mais numerosos são de época Moderna.

Numa outra sala da sede do CAL encontra-se o Laboratório de Conservação e Restauro, onde muitos desses materiais passam pelas mãos de dois técnicos para serem recuperados.

“Temos equipamento para isso, temos meios humanos e temos todo o gosto em fazê-lo. É preciso ter o espólio acautelado e preservado para as próximas gerações”, reitera o coordenador. As peças ficam prontas para serem emprestadas e integradas em eventos públicos e assim contribuir para “divulgar a própria atividade arqueológica da cidade de Lisboa”.
 

Uma das mais recentes peças restauradas. Cântaro do séc. XVII, época Moderna | Carla Quirino - RTP
Workshop com influências gastronómicas romanas
"Quatrocentos quilos de sardinha cortados aos pedaçose  misturados com 320 litros de água e 130 quilogramas de sal" foi a fórmula escolhida pelo designer e investigador na área alimentar Victor Vicente e o chef Pedro Almeida para se aproximarem da receita do antigo molho romano conhecido por Garum.
 
Tal como os romanos, os investigadores recorreram aos recursos da região para prosseguir o projeto. Em parceria com a equipa de investigadores das Ruínas Romanas de Tróia, liderada pela arqueóloga Inês Vaz Pinto, Victor Vicente e o Pedro Almeida utilizaram um dos tanques de salga - cetária - do sítio arqueológico para reproduzir o preparado de peixe.

"Seis meses depois chegámos a um líquido com tom de ambar", tal como os textos clássicos descreviam o Garum. "Naturalmente não sabemos ao certo a que sabia", mas está comprovado que este molho intensifica o sabor dos alimentos, argumentam, durante uma sessão pública no CAL, no caso sobre o legado romano.

Depois do corte e evisceração das sardinhas, a mistura com o sal e água foi colocada dentro de uma das cetárias integradas no maior centro industrial de salgas de peixe do Império Romano |  Projeto Garum - Selo de Mar

Esta investigação gastronómica cruza-se com o projeto Lisboa Romana, que o CAL lidera desde 2019. Este trabalho, que reuniu universidades, investigadores, empresas de arqueologia e 19 câmaras municipais da Área Metropolitana de Lisboa, pretende "valorizar e promover aquilo que foi o passado da cidade de Lisboa e do território que compôs o antigo município de Felicitas Iulia Olisipo", faz notar o coordenador do CAL.

A valorização desse legado histórico vai das ruínas à produção de alimentos à base de peixe, que representam os consumos e os gostos da população entre os séc. I e V d.C. Esse conjunto de dados caracteriza "a economia de época romana neste território" assegura o arqueólogo.
Balanço positivo mas com recado
O balanço de dez anos “é sempre positivo”. “Trabalho não falta, houvesse maior equidade no tratamento das autarquias por parte do enquadramento jurídico da atividade arqueológica em Portugal”, afirma António Marques.

O coordenador do CAL considera que um dos entraves que o serviço municipal encontra é o acesso à informação dos trabalhos arqueológicos que está concentrada nos arquivos da Direção-Geral do Património (DGPC).

Para explicar melhor, o arqueólogo recua até aos anos 90. Nessa altura, o braço da CML para o património arqueológico estava incorporado no então Museu da Cidade. Em 2013, com a “reformulação da politica cultural da CML foi decidido que o Museu passava para a EGEAC e nós, enquanto serviço de arqueologia – uma vez que somos de alguma forma transversais a toda a estrutura do município de Lisboa -, foi entendido continuar dentro da orgânica da Câmara”, explana.

O coordenador descreve que, até 2013, havia a prática, embora sem “cobertura e obrigatoriedade legal”, de partilha da informação sobre as intervenções arqueológicas nas áreas urbanas entre os municípios e o Instituto Português de Arqueologia (e depois Igespar, ambos extintos): “Era um ideal da minha geração, acho, na fase em que sonhávamos, puro voluntarismo, mas que se perdeu sobretudo nos últimos 11 anos, precisamente”.

“Apesar da boa vontade dos municípios portugueses, continuamos a estar no terceiro plano no que diz respeito à gestão do património e informação arqueológica – desde logo porque essa informação não é partilhada pela administração central com os municípios”, sustenta.

E reitera: “Seria mais fácil os municípios irem gerindo a informação arqueológica, até porque eles são quem mais facilmente podem promover esse conjunto de dados e que melhor os podem rentabilizar e até salvaguardar – mas por enquanto a legislação não confere esse papel às autarquias”.

Está tudo exclusivamente dado ao arquivo da tutela – DGPC - e está tudo dependente do arquivo da Ajuda”.

António Marques deixa ainda um alerta: “Quanto a mim, é um erro geracional porque se houver algum problema nesse único sítio onde se encontra a informação arqueológica – como não existe redundância nenhuma -, a informação corre o risco de se perder. Portanto, fica em causa a transmissão para as gerações vindouras”. 

“Do ponto de vista coletivo, não é uma situação justa para a sociedade”, remata.
Ainda tempo para um sonho
Para além de ver a partilha de informação facilitada entre entidades, António Marques gostava de contretizar um sonho: "Fazer layers cronológicos da cidade".

Ou seja, reunir, analizar e processar a informação arqueológica do território e sistematizá-la por cronologias – por camadas. "O território da cidade no paleolítico, no neolítico, calcolitico, bronze etc.", enumera o arqueólogo. Dessa forma, permitir-se-ia "elaborar as plantas evolutivas da ocupação humana no território".

"É no fundo ter um servidor onde se pode começar a coligir esta informação, processá-la e divulgá-la pelo público. Porque não interessa ter informação para depois estar escondida", acentua o coordenador.

Nos dez anos de vida, o CAL recebeu cinco distinções: da Património PT, da Society for Historical Archaeology e da APOM. A mais recente chegou na semana passada e foi atribuída ao projeto Lisboa Romana - Felicitas Iulia Olisipo, pela APOM.
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