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Antes dos Leaks já se sabia que o que aí vem é outra coisa

As negociações do TTIP estão numa fase sem retorno. É o que dizem os papéis que a meio do mês de março de 2016 caíram nas mãos do jornal britânico Independent e do grupo ativista Corporate Europe Observatory (CEO), que trabalha sobre os efeitos do lobby das grandes empresas.

Fase sem retorno, uma fase que ruma a um futuro mais ou menos próximo em que uma espécie de comissão não-eleita terá o poder de determinar em que termos assentará a cooperação entre a União Europeia e os Estado Unidos, deixando à margem dessa decisão os Estados-membros da União e o próprio Parlamento Europeu.

Estas suspeitas que pairavam nos céus europeus e andavam na boca dos mais céticos são agora confirmadas com os TTIP Leaks de 2 de maio.

O que está em jogo é a abertura dos corredores de Estrasburgo às grandes multinacionais (americanas), que ganham desta forma um salvo-conduto para “trabalhar” propostas legislativas antes de os textos chegarem ao escrutínio dos eurodeputados. A palavra-chave para derrubar o contraforte democrático do Parlamento Europeu parece assentar num aspecto técnico-jurídico previsto nas negociações do Tratado Transatlântico: regulatory cooperation.

“Cooperação para a regulamentação”, à falta de melhor tradução. Na prática, uma manobra que obriga Bruxelas a consultar os players norte-americanos sempre que estejam em jogo novas propostas legislativas.

O objetivo primeiro e último dos norte-americanos é o assalto à legislação europeia, para que possam impor a sua regulamentação doméstica a todo o tipo de ofertas que têm em carteira. No entanto, quebrar essas barreiras não-pautais assenta num plano sofisticado.

Como podem essas diferenças de regulamentação encontrar-se num ponto ideal? Uma primeira opção seria baixar os padrões da região mais exigente ao nível da região mais permissiva. Esta é, porém, uma opção que encontra demasiada contestação por parte dos europeus, não os legisladores mas os cidadãos, pelo que Bruxelas ensaia de momento as suas resistências. Não está preparada para pagar toda a fatura.

Axel Schmidt - Reuters

Poder-se-ia então ponderar subir os padrões da região mais permissiva. Neste caso é a indústria americana que se recusa a adotar as regulamentações europeias, que implicam custos e restrições que cortam e de que maneira o lucro dos acionistas.

Outra fórmula: concessões mútuas. Os produtos “validados” numa das regiões seriam tidos como apropriados para a outra. Mas esta solução apresenta um problema relacionado com os números. No caso de químicos para cosméticos, por exemplo: 1300 estão banidos na Europa, apenas 11 nos Estados Unidos. Se os cosméticos americanos fossem permitidos na UE seriam 1289 os químicos banidos que passariam a ser permitidos no Velho Continente. Ou seja, estaríamos de novo colocados perante o problema inicial: um recuo nos padrões de comercialização que é para já uma factura demasiado onerosa para Bruxelas.

É aqui que entra o assalto final ao contraforte da democracia europeia: a cooperação para a regulação.

Esquecido o passado - o que está feito -, põem-se esforços no que vem adiante. Ambos os parceiros do acordo estão livres para trabalhar em regulações futuras que compatibilizem as partes. Sobre esta solução, Washington mantém o silêncio.

Os burocratas de Bruxelas sintetizam a sua posição com uma proposta lançada para a mesa das negociações:

1 – Abertura à criação de um mecanismo de alerta que assegure a possibilidade de qualquer das partes poder envolver-se na fase preliminar de tomada de decisão, antes de os políticos eleitos entrarem em jogo.

2 – Reformulação das avaliações de impacto, com especial atenção aos efeitos de novas propostas relativas à comercialização.

3 – Possibilidade de encetar conversações em qualquer ponto do processo de tomada de decisão se os interesses da outra parte forem postos em causa por determinada medida legislativa.

4 – Constituição de uma estrutura institucional incumbida de elaborar estratégias de longo prazo com vista à coerência (leia-se convergência) das regulamentações de ambas as regiões.

5 – Criação de grupos de trabalho com a função de elaborar estratégias para determinados tópicos ou sectores.

6 – O envolvimento das partes interessadas no desenho de regulamentação.

Com as negociações um tanto cruas acerca deste ponto, certo é que ambas as partes terão já colocado de parte o cenário de um “duplo controlo” dos produtos. Bruxelas concederá que as autoridades norte-americanas são tão competentes quanto as suas homólogas europeias para efeitos de certificação: “A UE sublinhou a necessidade de garantir a consistência e evitar duplicação [de processos]… ”.

Vincent Kessler - Reuters

Assalto à democracia? Qualquer das posições reveladas por documentação anterior ou posterior aos Leaks da Greenpeace são uma bandeira pirata de uma nave que navega à bolina rumo ao edifício da democracia europeia.

Sob essa bandeira da reconciliação de sistemas regulatórios, americanos e europeus acabam por perfilhar essa ideia peregrina de conceder livre passe aos agentes económicos na reforma normativa e criação de um edifício legislativo vergado aos interesses económicos do sector privado e dos lobbies mais poderosos.

Mas há ainda um sinal poderoso de que Washington não deitou a toalha ao chão em termos de regulamentação antiga. Os negociadores norte-americanos ponderam a possibilidade de exigir da União Europeia que seja mais clara, mais explícita, no que respeita à sua legislação para a comercialização de produtos e relações comerciais. Haja uma cedência por parte dos europeus e nessa altura já poderão os EUA entrar na reformulação das leis que concediam como intocáveis.

A manobra foi denunciada por Monique Goyens, da BEUC – The European Consumer Organization. De acordo com Goyens não estaríamos perante a reformulação dos textos antigos, mas antes criação de nova legislação.

Seria abrir novo capítulo à contribuição dos lobbies, já que os negociadores americanos não se cansam de referir de forma transversal nos textos agora libertados que “é necessário consultar com a sua indústria e associações de comércio” antes de pôr em marcha novas regulamentações.

“Na preparação de atos regulamentares a nível central que estão em fase de avaliação de impacto, a parte que regulamenta deve oferecer uma oportunidade razoável para que qualquer pessoa singular ou coletiva interessada possa levar contribuições à discussão no âmbito de um processo de consulta pública e terá em conta as contribuições recebidas para a finalização dos seus atos normativos”, lê-se no capítulo dos Leaks referente à regulação.