Afeganistão. Ex-diplomata britânico denuncia evacuação "caótica" e à deriva no pico da crise

por Andreia Martins - RTP
Mohammad Ismail - Reuters

Raphael Marshall, ex-funcionário do Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros, acusa o departamento de crise e o Governo do Reino Unido de terem sido "disfuncionais" e "caóticos" na forma como lidaram com a evacuação do Afeganistão após a tomada pelos talibãs.

Um caos burocrático que deixou para trás “pessoas a morrerem às mãos dos talibãs”. Num documento agora divulgado, o whistleblower descreve um processo de escolha “arbitrário" de quem poderia seguir viagem e sair do Afeganistão e refere que houve mesmo milhares de e-mails com pedidos de ajuda ficaram por abrir.

Raphael Marshall acusa ainda o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominic Raab, de ter sido demorado a tomar decisões. Perante a ascensão dos talibã ao poder, o Reino Unido transportou 15 mil pessoas para fora do Afeganistão, incluindo cinco mil cidadãos britânicos, oito mil afegãos e duas mil crianças. Mas, de acordo com o antigo diplomata, entre 75 mil e 150 mil afegãos em risco devido às ligações com Reino Unido pediram para sair do país, sendo que menos de cinco por cento recebeu assistência.

“É óbvio que muitos dos que ficaram para trás foram assassinados pelos talibã”, refere o denunciante num relatório de 39 páginas entregue aos deputados do Comité de Negócios Estrangeiros e divulgado esta terça-feira.

Raphael Marshall, de 25 anos, abandonou o MNE britânico em setembro, após três anos de serviço, por considerar que a equipa no departamento de gestão de crise era “inadequada”. Agora, enquanto denunciante, fala em “falta de experiência” e “falta de coordenação” entre o departamento de gestão de crise e o Ministério britânico da Defesa. E aponta o dedo ao próprio Dominc Raab, que diz ter “demorado horas” a responder a e-mails ao “não entender totalmente a situação”.

Para além das alegações sobre a ajuda insuficiente em comparação com os milhares de pedidos de ajuda recebidos, o whistleblower refere que nenhum membro da equipa que estava a lidar com os e-mails tinha conhecimento detalhado sobre o Afeganistão ou falava as línguas do país, dari ou pastó.

Raphael Marshall trabalhou com uma equipa especialmente designada para retirar do país “casos especiais” entre os afegãos, incluindo soldados, políticos, jornalistas, funcionários públicos, ativistas, trabalhadores humanitários e juízes. No pico da crise, em agosto, quando os talibãs alcançaram Cabul, os pedidos de ajuda choviam na caixa de entrada no Departamento de Negócios Estrangeiros, Commonwealth e Desenvolvimento (FCDO).

De acordo com o denunciante “havia normalmente 5.000 e-mails por ler na caixa de entrada, em todos os momentos” e “em milhares de casos, os e-mails nunca foram lidos”, incluindo os e-mails de antigos deputados daquele país. Para o whilstleblower, o processo de escolha dos candidatos adotado pelos responsáveis governamentais foi “arbitrário e disfuncional”, com critérios de prioridade “inúteis” e “ambíguos”.
“Equilíbrio entre a vida profissional e pessoal”

A certa altura, diz o denunciante, alguns dos responsáveis mobilizados para o centro de crise não tinham acesso aos computadores do serviço, uma vez que não foram emitidas passwords de acesso suficientes, tendo chegado a um ponto em que oito soldados partilhavam um único computador. Por outro lado, muitos deles nunca tinham recorrido ao sistema de informação usado no FCDO, pelo que foram cometidos vários erros, refere Raphael Marshall.

Num dos momentos mais graves da crise, na tarde de sábado, 21 de agosto, Raphael Marshall terá ficado sozinho a trabalhar sobre a evacuação urgente de milhares de pessoas, obrigado a tomar decisões de vida ou morte com base em critérios aleatórios.

“Nenhum e-mail tinha sido lido desde o início da tarde de sexta-feira até àquele momento. O número de e-mails não lidos já estava nos milhares, acima de 5.000 e a aumentar constantemente”, refere.

O ex-diplomata denuncia que, apesar da gravidade da situação, a expetativa geral na equipa de gestão de crise era de continuar a fazer os horários normais: oito horas por dia, cinco dias por semana, e apenas pontualmente eram chamados a fazer turnos extra para os quais se tinham voluntariado. Durante cinco dias seguidos, nenhum funcionário foi designado para ficar trabalhar durante a noite, por exemplo. 

Raphael Marshall refere que houve “uma séria escassez de capacidades” e “um impulso deliberado para dar prioridade ao equilíbrio entre a vida profissional e pessoal”.
O papel de Dominic Raab

De acordo com o Guardian, o relatório de Raphael Marshall, entregue há várias semanas e agora publicado, terá contribuído para o afastamento de Raab.

De recordar que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, afastou o então ministro dos Negócios Estrangeiros do cargo em setembro após a contestação pela reação à retirada do Afeganistão. Na altura, Dominic Raab passou a ocupar a pasta da Justiça, sendo também atual vice-primeiro-ministro.

No centro da polémica mais imediata durante a crise esteve um controverso regresso de férias. Raab estava em Creta e terá adiado por dois dias o regresso ao Reino Unido numa altura em que os talibãs se aproximavam de Cabul.

Especificamente sobre Dominic Raab, o ex-diplomata refere que o antigo ministro recebeu várias informações sobre os casos de retirada mais difíceis, mas que “passaram várias horas até que o chanceler se ocupasse das nossas notas”. Quando o fez, o antigo MNE afirmou que “não podia decidir sobre casos individuais” sem olhar para todos os casos.

“É difícil explicar como é que ele reservou para si próprio a decisão, mas não a tomou de imediato”, acusa.

Marshall alega ainda que o MNE britânico tinha aprovado uma lista de profissões a que se devia dar prioridade na evacuação, incluindo juízes e responsáveis de informação, mas que essa lista não chegou aos trabalhadores que lidavam diretamente com os e-mails.

Na reação a estas acusações, Dominic Raab rejeitou que tenha havido uma resposta incompetente ou caótica por parte do MNE britânico: “Mais de 1.000 funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros trabalharam dia e noite num sistema rotativo, assim como as tropas no Afeganistão, sob enormes pressões operacionais. Destacaria o facto de termos retirado 15.000 pessoas em apenas duas semanas”.

“Não nos lembramos de uma operação destas em larga escala e nenhum outro país, à exceção dos Estados Unidos, conseguiu retirar mais pessoas”, frisou o ministro em declarações ao programa Today, da BBC.

Acrescentou ainda que o depoimento de Raphael Marshall era “impreciso” e que os funcionários não foram obrigados a tomar decisões. “Há uma diferença entre processar informação e decidir. Não aceito esta caracterização”, refere Raab.

“Toda a pressão estava no terreno e era uma pressão dupla. Tivemos um grande número de pessoas a apresentarem-se sem documentos. A verificação de candidatos indocumentados foi um dos grandes desafios e o segundo foi levar as pessoas para o aeroporto”, acrescenta o ministro em declarações à rádio pública britânica.

“Não peço desculpa por dizer que precisava de factos claros sobre cada caso apresentado, precisamente para que pudéssemos tomar decisões rápidas. Não se pode simplesmente receber e-mails e analisá-los um a um, eles precisam de ser estudados, precisamos de extrair os pontos-chave e claro, precisam de ser verificados”, refere ainda Dominic Raab.

Também em declarações ao progama Today, na BBC Radio 4, Tom Tugendhat, presidente do Comité de Negócios Estrangeiros do Parlamento britânico, considerou que as revelações de Raphael Marshall são “chocantes” e que o Departamento de Negócios Estrangeiros, Commonwealth e Desenvolvimento tem agora questões muito sérias a responder.

“Este é um individuo de 25 anos que afirma que esteve completamente sozinho em vários momentos a lidar com um enorme processo de receção de e-mails e contactos, num Ministério dos Negócios Estrangeiros que era, efetivamente, um Mary Celeste [navio do século XIX encontrado completamente à deriva pelo Oceano Atlântico, sem tripulação] num momento de emergência nacional. Se isto for verdade, então é realmente preocupante”, adiantou.
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