Análise. Donald Trump, o líder ausente de todas as frentes

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Tom Brenner, Reuters

Com a dramática linha das 50 mil novas infecções por covid-19 atingida esta quarta-feira, a situação começa a retirar a Donald Trump qualquer margem de manobra quando inexoravelmente se aproximam as presidenciais de Novembro para a Casa Branca. No que pode ser uma inversão impensável do caminho antes visto como mais do que provável para a reeleição deste ano, a Administração Trump enfrenta agora não apenas a crítica interna dos democratas, como também uma visão externa que deixa de ver os Estados Unidos como o grande pivot para o equilíbrio internacional. É o caso dos europeus, que já não reconhecem aquele que foi “o amigo americano”.

A deterioração da liderança ocidental dos norte-americanos parece estar estreitamente ligada à forma como a Administração Trump escolheu lidar com a pandemia do novo coronavírus no país. Os sinais de descolamento europeu ao grande aliado transatlântico já vinham de trás. Um desses sinais, que fizeram tocar as campainhas, foi dado pelo presidente Trump quando, pouco depois da eleição, rasgou o TTIP, o tratado transatlântico para uma nova relação comercial entre a Europa e os Estados Unidos concluído quase em contra-relógio pela equipa do seu antecessor, Barack Obama.

Ao longo destes três anos Trump não fez segredo de que os interesses da sua macropolítica estavam virados para dentro, isolando progressivamente a agenda americana, muitas vezes deixando os aliados do Velho Continente sem o habitual esteio do multilateralismo que vinha desde o pós-guerra, em 1945.

A crise do novo coronavírus é, no entanto, um capítulo novo que abre espaço a uma interrogação deste lado do Atlântico: que é feito da liderança norte-americana? Quando seria de esperar um sinal positivo dos Estados Unidos, uma parceria na luta contra a pandemia, o que os europeus – e, já agora, o resto do mundo – viram foi um presidente Trump preocupado em açambarcar medicamentos promissores nas terapias contra a covid-19, um líder do mundo ocidental apressado em garantir para o seu país o exclusivo da produção de uma primeira vacina contra o novo coronavírus.

Esta é, contudo, uma linha estratégica que também não grangeia favores internamente, face aos números americanos da pandemia: 2,6 milhões de infectados nos Estados Unidos, 128 mil mortos e uma contagem de dezenas de milhares de novos casos positivos a cada dia que passa, 50 mil só nesta quarta-feira, revelam que a obsessão do governo federal com a reabertura da economia deixou há muito de ser a mensagem ideal para estes tempos de caos sanitário que se vive na grande maioria dos Estados norte-americanos.
O mundo a mudar nos seus eixos estratégicos?

E são números que ecoam também deste lado do mundo. A crise sanitária produziu já uma profunda deterioração da percepção da opinião pública europeia face aos Estados Unidos, de acordo com uma sondagem do Conselho Europeu de Relações Exteriores (European Council on Foreign Relations – ECFR, na sigla original), um think tank criado em 2007 que realiza pesquisas sobre a política externa e de segurança europeia.

O estudo realizado entre Abril e Maio por este grupo sedeado em Berlim abrangeu nove países da União Europeia que, entre si, representam dois terços da população dos 27. Mais de 60% das pessoas questionadas na Alemanha, França, Espanha, Dinamarca e Portugal responderam que tinham perdido a confiança nos Estados Unidos como líder global.

Os resultados mostram que uma maioria da amostra considerou que a sua percepção em relação aos Estados Unidos se deteriorou desde o início da pandemia. Uma atitude negativa face àquele país foi mais marcante na Dinamarca (71%), Portugal (70%), França (68%), Alemanha (65%) e Espanha (64%). Por outro lado, em França e na Alemanha, 46% e 42%, respectivamente, consideram que a sua visão dos Estados Unidos tinha piorado “muito” no decorrer da pandemia.

A ideia mais encontrada nos países onde foi desenvolvido o inquérito do ECFR é a de que a forma como os norte-americanos estão a lidar com a pandemia está a minar a confiança que os aliados externos tinham nos Estados Unidos.
O amigo americano

Durante uma entrevista ao britânico The Guardian, a própria chanceler alemã, Angela Merkel, deixou essa advertência de que o mundo não pode contar como certo que a América ainda tenha aspirações quanto a uma liderança global.

Esta percepção aparece já no inquérito do ECFR, onde se pode ler em conclusão que “a confiança dos europeus nos Estados Unidos desapareceu. Muitos ficaram chocados com a resposta caótica [dos EUA] à covid-19; a falta de solidariedade que demonstraram para com os europeus ao decidir a 12 de Março o encerramento da sua fronteira a membros do espaço Schengen; e a sua falta de liderança na resolução da crise do coronavírus a nível global – ou mesmo o seu compromisso com essa questão (para além de uma guerra de palavras com a Organização Mundial de Saúde)”.

O gabinete europeu sublinha que o grau de confiança no futuro da relação transatlântica atingiu um grau tão baixo que apenas 2% dos questionados na Alemanha e 3% na França acreditam que os Estados Unidos possam vir a dar uma contribuição para a reconstrução europeia na pós-pandemia.

“Os europeus digeriram o facto de os Estados Unidos não serem já necessariamente os amigos da Europa em tempos de necessidade”, afirmou Susi Dennison, analista política, numa leitura dos resultados do inquérito.

Trata-se de um sentimento que não encontra no exterior todas as suas razões, já que subsiste também aqui a ideia de que os governos europeus falharam na resposta interna à pandemia e que a União não esteve à altura no desenho de uma estratégia global: “Os europeus têm agora de viver com o facto de que, apesar de todas as estruturas que criámos para nos protegermos a nível da UE e a nível global, o nosso Continente pode passar da complacência ao encerramento económico e social total numa questão de semanas. Esta conclusão pode ter consequências profundas para a forma como a Europa se envolve com o resto do mundo”, referem os autores do estudo.

Face a estes sentimentos predominantes de “abandono” e “vulnerabilidade”, a análise do ECFR vai mais longe, ao sugerir que as atitudes agora percepcionadas nos europeus que fizeram parte da pesquisa vão para lá da hostilidade que têm merecido Donald Trump e a sua Administração na forma como está a lidar com o surto do novo coronavírus.

Os responsáveis pelo estudo apontam, assim, uma profunda incerteza relativamente à América como uma força do bem, a América comprometida com o multilateralismo e a sua capacidade para liderar o mundo. Face ao que se apresenta como uma alteração dos vectores de liderança internacional, os europeus exigem que seja a União Europeia a assumir o papel de timoneiro nos vários desafios globais que se apresentam: seja a pandemia, sejam os problemas do clima. Os europeus apontam a cooperação entre os Estados membros como o caminho a seguir.
Críticas internas

Mas Trump tem mais para se preocupar do que a Europa e a leitura que os europeus fazem da sua estratégia para debelar a pandemia. Trump tem de anular a ideia de muitos americanos de que é agora um líder enfraquecido.

A escassos meses da tentativa de reeleição, são muitas as vozes que se levantam contra a Administração, são muitas as directivas de Estados republicanos que contrariam o que é dito a partir da Casa Branca. E depois há uma questão têxtil que vem fazendo toda a diferença na última semana: o uso de máscara.

A utilização de máscaras sanitárias tem sido objecto das mais variadas teorias ao longo dos últimos meses, tornando-se num ponto sensível da luta contra o coronavírus. A própria Organização Mundial da Saúde teve já posições diametralmente opostas sobre esta questão. E, internamente, a discussão não é diferente nos Estados Unidos, com o presidente Trump a negar-se terminantemente ao seu uso.

O assunto vem contudo sendo acrescentado de contributos e esses contributos vieram recentemente do vice-presidente Mike Pence. O infeciologista máximo do país, Anthony Fauci, já antes começou a aparecer de máscara colocada sempre que é visto em público, mas, quando falamos do vice-presidente, assenta como uma luva o adágio “uma imagem vale mais do que mil palavras”.

A pressão terá sido tão insuportável para Trump que até agora o presidente admite que o uso de máscara é recomendável, apesar de não ser uma profilaxia que considere apropriada para si próprio. Aparentemente menor, a questão do uso de máscara acaba por ilustrar o percurso titubeante em que se desenrola a estratégia da Administração e essa percepção tem valido a Donald Trump críticas de todos os quadrantes.

Um dos críticos que surge agora é Leon Panetta, ex-secretário da Defesa e ex-director da CIA: “[Donald Trump] está desaparecido em combate do trabalho de liderança que deveria estar a exercer com o país em apuros” nesta pandemia do coronavírus.

Para Panetta, que já trabalhou para nove presidentes americanos, Trump rendeu-se ao vírus e abandonou os norte-americanos à sua sorte. “Esta é uma crise gigantesca”, alertou o antigo chefe da Defesa, lembrando que Fauci já deixou o aviso de um cenário de 100 mil novos casos a surgirem a cada dia.

“Mas o presidente, em vez de organizar uma estratégia nacional para enfrentar esta crise, simplesmente recorre a tweets sobre vandalismo e outras coisas para desviar a atenção da crise que temos nas mãos”, criticou Leon Panetta, considerando que “temos um presidente que não está disposto a agir e fazer o que é necessário para conduzir este país em tempos de crise profunda”.

“Nunca tinha tido um presidente que se tivesse esquivado a essa responsabilidade”, lamentou.

A mesma ideia ecoou a partir de Wilmington, no Estado do Delaware, num dos discursos do ex-vice-presidente e candidato democrata à Casa Branca Joe Biden: “Parece que nesta guerra o nosso presidente se rendeu, levantou a bandeira branca e deixou o campo de batalha”.

Nas últimas semanas, Trump tem dedicado parte do seu discurso e a quase a totalidade dos seus tweets à questão da “violência” nos protestos que se seguiram à morte de George Floyd. É uma estratégia que, na leitura dos analistas, pretende desviar a atenção do falhanço, por um lado, da luta contra a covid-19 e, por outro, das tentativas de reabertura da economia.

“Acho que ele [Donald Trump] acredita mesmo que, se não falar sobre isso, e se nos distrair, de alguma forma vamos esquecer que ele foi o responsável por isso [falhanço da luta contra o coronavírus]. Pensa que se falar de outra coisa (…) ou se se envolver noutro padrão de comportamento ridículo, então vamos esquecer que as pessoas estão a morrer. Como é que nos esquecemos de que as pessoas estão a morrer? Isto não é um surto; isto é a progressão de um vírus muito mortal que se está a espalhar como um fogo e ele está a correr na direção oposta”, acusa Moe Vela, um consultor político dos democratas e antigo conselheiro de Biden na Casa Branca.
Não é a economia, estúpido

Questionada sobre a gestão de Trump no que é uma crise sem precedentes, Neera Tanden, presidente do think tank liberal Center for American Progress, deixou um recado que contraria a literatura política norte-americana e que deveria ser um sério aviso para o presidente-candidato: “Os eleitores estão mais preocupados com o vírus do que com a economia”.

Ela própria a recuperar da infecção, Tanden considera que “a resposta do presidente Trump ao vírus tem sido, penso eu, a pior de qualquer democracia em larga escala no mundo. Não tem precedentes. Não há qualquer estratégia”.

“[Trump] foi apanhado porque a sua gestão [da pandemia] tem sido tão terrível que acha que pode mudar de assunto não falando sobre isso. O problema é que esta é a principal preocupação dos eleitores, muito mais do que a economia”, considerou a analista.

De facto, uma sondagem para o Protect Our Care, grupo de defesa de serviços de saúde, concluiu que mesmo os eleitores que aprovam a forma como Trump lidou com a economia se preocupam mais com a sua resposta desastrosa à pandemia: 57% acreditam que as políticas de Trump fazem crescer as hipóteses de muito mais pessoas morrerem do coronavírus, com apenas 17% a dizerem que acreditam que a diminuem.

Em termos gerais, 60% dos eleitores desaprovam a forma como Trump lidou com o coronavírus e 57% acreditam que o presidente é mesmo o culpado pelas mortes que lhe foram associadas.
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