Brasil. Decisão sobre reserva índia do Pará ameaça direitos indígenas às terras

por Graça Andrade Ramos - RTP
Homens da tribo índia brasileira Parakanã, da reserva de Apyterewa, no Estado do Pará, Amazónia, em 2009 Reuters

A tribo indígena Parakanã-ocidental, que habita a reserva de Apyterewa, no Estado brasileiro do Pará, na Amazónia, prepara-se para uma luta desigual na defesa do seu território. O juiz Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal do Brasil, decidiu autorizar o município da área, São Félix do Xingu, a negociar uma redução da reserva com uma associação local de fazendeiros.

Ativistas de proteção de terras avisam que a decisão, comunicada esta segunda-feira, poderá estabelecer um precedente perigoso nas negociações, marcadas para os próximos meses, sobre conflitos de terras semelhantes noutras áreas do país, sobretudo na Amazónia, onde cresce a pressão para reduzir territórios atribuídos aos povos indígenas brasileiros.

Ainda por cima, é inconstitucional, indignam-se.A Constituição brasileira, datada de 1988, dá ao Estado a posse das terras indígenas. É igualmente o Estado que consagra o direitos das tribos índias a viver e a trabalhar nessas áreas.

"Os direitos aos territórios [das tribos], tal como refere a Constituição, não são sujeitáveis a qualquer tipo de negociação", garantiu, à Agência Reuters, Luiz Eloy Terena, advogado na APIB, a maior federação índia do Brasil.

A reserva em causa, a TI (Terra Indígena) Apyterewa, localiza-se na bacia do rio Xingu, e cobre áreas atribuídas aos municípios de Altamira e de São Félix do Xingu. Foi declarada posse permanente dos Parakanã, ou Parakaná, em 1992. Originalmente tinha 981 mil hectares, mas a revogação de uma portaria levou à sua redução, para 773 mil hectares.
Invasão sem consequências
Em 2003, a população indígena contava cerca de 314 pessoas, distribuídas por duas aldeias, Apyterewa e Xingu. No ano seguinte, uma nova portaria do Ministério da Justiça consagrou a reserva para posse e usufruto exclusivo do povo Parakanã. Em 2007, a decisão foi homologada por decreto presidencial.

Apenas 20 por cento da superfície de 773 mil hectares está sob a posse real dos 452 indígenas contabilizados no mais recente census, e nenhuma das decisões judiciais anteriores, tomadas desde 2005, impediu o constante avanço ilegal, nos últimos 30 anos, de garimpeiros de ouro, de madeireiros, de fazendeiros em busca de novos pastos para o gado ou de áreas de cultivo intensivo, e de colonos.

Mais de metade da reserva está atualmente ocupada por não índios.

Sem surpresa, a TI Apyterewa era, em 2019, a segunda área mais desmatada do Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial, que acompanha a desflorestação do país. Só nesse ano, mais de 85 quilómetros quadrados de árvores e de floresta desapareceram em fumo ou foram derrubadas na área da reserva, revelam os mesmos dados.

As queimadas e a desflorestação têm vindo a intensificar-se ao longo de 2020.
A implantação da barragem hidroelétrica de Belo Monte na área veio legitimar de alguma forma a invasão das terras, apesar de uma das condicionantes ambientais do Governo, para autorizar o empreendimento, ser a retirada dos ocupantes não indígenas. Agravou ainda a contaminação do rio Xingu e veio alterar rotinas da pesca dos índios.

Desde 2011 que a Funai (Fundação Nacional do Índio) procura, através da Operação Apyterewa, a regularização fundiária e a retirada de não índios, incluindo através do pagamento de indemnizações.

Em janeiro de 2020, o Ministério Público Federal alertou para a importância de retomar o programa, face à desflorestação registada. E em julho, decidiu prolongar até outubro a ação da Guarda Nacional, como apoio ao processo de retirada de não índios da área.

A decisão do juiz Gilmar Mendes tem estado por isso a ser vista como uma ameaça a todo este processo, e ao resguardo de outras áreas indígenas. Até porque, apesar de classificada como conciliação, a decisão finalmente adotada pelo Supremo Tribunal não abrangeu desde o início as populações índias.
"Trocar índios por gado"
Carlos Fausto, um antropólogo do Museu Nacional do Brasil, cujo doutoramento se baseou na vida dos Parakanã, refere que as implicações podem ser decisivas.

"Significa que toda a terra indígena será um alvo a partir de agora", afirmou à Reuters.

Além disso, a ocupação e exploração ilegais estão a ter um impacto ambiental elevado, sobretudo nas fontes de água vitais para os animais e para os peixes que os Parakanã caçam e pescam.

"O pior de tudo é que estamos a falar de uma zona onde se localizam as fontes que garantem a subsistência do povo Parakanã", referiu.


Kaworé, um dos líderes dos Parakanã da TI Apyterewa, acusa o Governo brasileiro de ameaçar o seu território. O presidente Jair Bolsonaro tem sido acusado pelos ativistas de querer caucionar as explorações mineiras e agrícolas nas áreas protegidas do país.

"O Governo quer trocar índios por gado. É esse o principal interesse do Governo - transformar a floresta em área agrícola e colocar gado na terra dos índios", acusou Kaworé, entrevistado pela Reuters ao telefone.

"Se isto suceder ao povo Parakanã, o povo irá morrer com a terra, pois como podermos praticar a nossa cultura? Poderia morrer de repente e não queremos isso", acrescentou.
100 anos de desencontros
Os Parakanã que habitam a TI Apyterewa são um dos dois ramos de um mesmo povo, que se cindiu há mais de um século devido a disputa por mulheres.

O ramo ocidental, a que pertencem, é o mais aguerrido e tem um longo historial de ataques a colonos e a outras tribos índias, que os consideram simplesmente 'o inimigo'.

Ao longo de 100 anos, entre guerras internas e empurrados a procurar novos territórios, muitas vezes em litígio com ocupantes anteriores, acabaram por se fixar na zona do rio Xingu, em meados do século XX.

Aí recuperaram atividades agrícolas perdidas entretanto e aprenderam a navegar em canoas e a pescar, duas atividades que até então não praticavam.

Os Parakanã-orientais, mais pacíficos e numerosos, habitam a Terra Indígena Parakanã, na bacia do Tocantins, que abrange os municípios de Repartimento, de Jacundá e de Itupiranga, no Pará.

Tem uma extensão de 351 mil hectares, demarcados e com situação jurídica regularizada, onde se distribuem cinco aldeamentos, morada de cerca de 600 índios (census de 2003).
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