Crise rohingya. Guterres pede investigação e acusação de militares birmaneses

por Andreia Martins - RTP
No início de julho, o secretário-geral das Nações Unidas visitou um dos campos de refugiados de rohingyas na zona de Cox's Bazar, no Bangladesh Mohammad Ponir Hossain - Reuters

O secretário-geral da ONU defendeu a responsabilização dos autores da "horrenda perseguição" dos muçulmanos rohingya em Myanmar. Esta declaração surge no mesmo dia em que o Governo da antiga Birmânia veio rejeitar as acusações de genocídio de que os líderes militares são alvo num documento da ONU.

Numa sessão do Conselho de Segurança das Nações Unidas realizada na terça-feira, o secretário-geral da organização falou da crise dos rohingya como uma “limpeza étnica” contra aquela minoria muçulmana.

António Guterres pediu ainda uma análise aprofundada ao relatório das Nações Unidas, revelado no início da semana, onde se pede a acusação dos militares birmaneses por crimes de genocídio. Pediu também que as recomendações deixadas pelo documento sejam “consideradas de forma séria” pelo Conselho de Segurança.  

O secretário-geral das Nações Unidas considerou ainda que a cooperação internacional eficaz “será fundamental para assegurar que os mecanismos de responsabilização sejam confiáveis, transparentes, imparciais, independentes e compatíveis com as obrigações de Myanmar em relação à lei internacional".  

Na segunda-feira, um relatório divulgado pelas Nações Unidas, mais especificamente a cargo do Conselho de Direitos Humanos, considera que seis figuras de topo do exército birmanês devem ser investigadas e acusadas de vários crimes contra civis à luz do direito internacional, incluindo os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e ainda crimes de guerra.  

Mais especificamente, este documento sem precedentes aponta as várias ações perpetradas pelos Tatmadaw – nome do exército da antiga Birmânia – em que constam os crimes de homicídio, violação, tortura, escravatura sexual e perseguição, entre outros. As conclusões deste estudo têm por base mais de 800 testemunhos ouvidos ao longo dos últimos meses.  

“A escala, a brutalidade e a natureza sistemática das violações e da violência indica que essas ações fazem parte de uma estratégia deliberada para intimidar, aterrorizar e punir a população civil”, pode ler-se no documento.  

Na declaração desta terça-feira ao Conselho de Segurança, António Guterres não deixou de referir o que o próprio viu e ouviu durante uma visita recente aos campos de refugiados rohingya no Bangladesh.

“Um pai contou-me que o seu filho foi morto a tiro mesmo à sua frente. A sua mãe tinha sido brutalmente assassinada e a casa foi totalmente queimada. Contou que ele se tinha refugiado numa mesquita e que foi descoberto por soldados, que abusaram dele e queimaram o Alcorão”, referiu durante a sessão de terça-feira.

Guterres contou ainda o caso de uma mulher que tinha tido um filho como resultado de uma violação. “Precisamos de segurança e de cidadania no Myanmar. Queremos justiça para as nossas irmãs, para as nossas filhas e para as nossas mães que sofreram”, ouviu durante a visita ao campo de refugiados.  

Apesar dos esforços das Nações Unidas no sentido de assegurar o regresso em segurança destes refugiados às suas aldeias e comunidades, não existem ainda condições para um retorno “seguro, voluntário e sustentável” por parte destes refugiados, sublinhou o secretário-geral das Nações Unidas.  

No final de 2017, um acordo entre o Bangladesh e o Myanmar estabelecia os termos para o regresso de milhares de muçulmanos rohingya à antiga Birmânia, depois de vários meses de repressão e perseguição da minoria étnica pelos militares. No entanto, a esmagadora maioria de refugiados que partiram do estado de Rakhine continua no país vizinho.  
Myanmar rejeita acusações de genocídio

Já esta quarta-feira, um porta-voz do Governo de Myanmar, Zaw Htay, rejeitava as acusações contra os militares que constam no relatório das Nações Unidas. O representante do Governo disse ainda que o país tem “tolerância zero” para com a violação dos Direitos Humanos.  

“Não permitimos à missão da ONU que entrasse no Myanmar. É por isso que não concordamos e não aceitamos quaisquer resoluções do Conselho de Direitos Humanos”, disse o responsável do Governo em declarações ao Global New Light of Myanmar.

Zaw Htay revela ainda que o executivo vai criar uma comissão de inquérito independente para responder às “falsas alegações das agências da ONU e outras comunidades internacionais”.

Entre os países que integram o Conselho de Segurança das Nações Unidas, nem todos concordaram com a publicação do relatório contra Myanmar no início da semana. A China, país com fortes relações diplomáticas e económicas com a antiga Birmânia, considera que a divulgação do documento “não ajuda” a resolver a crise.

Pequim considera que a comunidade internacional deve parar de pressionar Myanmar e permitir que o Governo articule com o Bangladesh a repatriação dos refugiados rohingya o mais rápido possível. Lembra ainda os antecedentes “históricos, religiosos e étnicos extremamente complexos” naquele país.

“A crítica unilateral ou a pressão exercida não são úteis para a resolução do problema”, referiu Hua Chunying, porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros.

O argumento tem sido igualmente sustentado pela diplomacia russa, que tal como a China ocupa o lugar de membro permanente do Conselho de Segurança e prefere privilegiar o diálogo para a resolução da crise.

Desde agosto de 2017, mais de 700 mil rohingyas fugiram do Myanmar em direção ao Bangladesh. Grande parte destes refugiados encontra-se em campos na zona de Cox’s Bazar. Ainda antes da crise humanitária destes 12 últimos meses, cerca de 400 mil rohingyas já tinham fugido para o Bangladesh.

A minoria muçulmana conta com cerca de um milhão de pessoas, é originária der povoações no norte do Estado de Rakhine, perto da fronteira com o Bangladesh. O grupo étnico é perseguido há várias décadas no Myanmar, onde grande parte da população professa o budismo. A presença deste grupo no norte do país é vista como uma “ocupação ilegal” de território birmanês. 

Por vários anos os rohingya têm lutado pelo reconhecimento da cidadania que lhes é negada pelo Governo do Myanmar, bem como pela plena liberdade de movimento e de acesso a bens e serviços básicos, de que não dispõem enquanto cidadãos daquele país.  
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