Estado da União. Pandemia e situação económica no centro do discurso de Von der Leyen

por RTP
Olivier Hoslet - EPA

O Estado da União está a ser debatido, esta quarta-feira, no Parlamento Europeu. A pandemia da Covid-19 e os impactos económicos e sociais foram o tema central do primeiro discurso proferido pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que defendeu uma verdadeira União da Saúde Europeia. Mas questões como o combate às alterações climáticas ou o Brexit também estão na discussão em Bruxelas.

No seu primeiro discurso sobre o Estado da União, Ursula von der Leyen começou homenagear os serviços de saúde, que fizeram "milagres" perante um "vírus mil vezes mais pequeno que um grão de areia, que mostrou a fragilidade planetária". A presidente da Comissão Europeia fez ainda um balanço do impacto da covid-19 nos últimos seis meses, a nível económico, social e sanitário, e apresentou soluções e novas metas para o futuro da União Europeia, em Bruxelas - pela primeira vez palco do debate sobre o Estado da União, devido à Covid-19.

A presidente da Comissão Europeia iniciou a sua intervenção a defender que este é o momento de a Europa "passar da fragilidade para uma nova vitalidade", após os impactos da pandemia nos últimos meses.

"[O surto] mostrou-nos a fragilidade do planeta, alterou a forma como nos comportamos e lidamos, afastando-nos uns dos outros e colocando máscaras nos rostos. (...) As pessoas querem sair deste mundo do coronavírus, querem sair da fragilidade, da incerteza, e estão prontas para a mudança", afirmou, sublinhando que cabe à UE liderar a resposta à pandemia.

"É momento de a Europa liderar este caminho, passando da fragilidade para uma nova vitalidade e é sobre isso que gostaria de vos falar hoje".

"Digo isto porque nos últimos meses descobrimos os valores que temos em comum. Transformámos o medo e a divisão em confiança na nossa União. Mostrámos o que é possível quando confiamos uns nos outros e nas instituições europeias", acrescentou a responsável.

A Europa ainda está a enfrentar as consequências sanitárias e económicas do novo coronavírus, e alguns países até já estão a combater a segunda vaga da pandemia. E segundo Von der Leyen a estratégia comunitária tem sido a de "não só recuperar e reparar agora, mas também partilhar e formar um mundo melhor para o mundo de amanhã".

"Esta é a nova geração Europa, é a nossa oportunidade de fazer com que as coisas aconteçam, não só por imposição ou catástrofe, mas criando oportunidades para o dia de amanhã", adiantou. "Queremos criar oportunidade para o mundo de amanhã e não pensar só nas contingências do mundo de ontem".

"Temos visão, temos planos, temos investimento. Chegou a altura de pôr as mãos à obra".
Nesse sentido, a líder do executivo comunitário defendeu que a covid-19 mostrou que chegou o momento de construir uma União da Saúde Europeia reforçada.

Ursula von der Leyen apontou que, para tornar essa nova política de saúde europeia reforçada uma realidade, o primeiro passo proposto pelo seu executivo é "reforçar e dar mais poder à Agência Europeia do Medicamento e ao Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças".

"Como segundo passo, vamos construir uma BARDA europeia, uma agência para investigação avançada no campo da biomedicina", disse, referindo-se à autoridade norte-americana nesta matéria, com o objetivo de "apoiar e reforçar a capacidade e prontidão" da UE para responder a ameaças e emergências transfronteiriças.

A pandemia tornou também evidente que a Europa precisa de "constituir reservas estratégicas para lidar com as dependências da cadeia de abastecimento, nomeadamente para os produtos farmacêuticos", na visão de Von der Leyen.

"E como terceiro passo, é claro como nunca que devemos discutir a questão das competências médicas. E penso que é uma tarefa urgente, e deve ser abordada na conferência sobre o Futuro da Europa", prosseguiu, referindo-se ao facto de a pandemia da covid-19 também ter mostrado que Bruxelas tem poderes muito limitados em questões de saúde, uma competência quase exclusiva dos Estados-membros.

Considerando que se trata de uma crise global, Von der Leyen afirmou ainda que "é necessário retirar as lições globais", anunciando que, em conjunto com o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, e com a presidência italiana do G20 no próximo ano, planeia organizar uma "cimeira global da saúde" em 2021 em Itália.
Meta da UE para redução de emissões até 2030
Embora a pandemia fosse o pano de fundo do Estado da União, Ursula von der Leyen abordou mais temas e questões na sua primeira intervenção e apresentou novos objetivos para a Europa. Relativamente às alterações climáticas, a líder do executivo europeu defendeu que os 27 Estados-membros devem comprometer-se com metas mais ambiciosas no corte das emissões de gases poluentes, e comprometeu-se a utilizar mais "green bonds" para financiar as metas climáticas.

A presidente da Comissão Europeia anunciou, então, uma nova meta comunitária para redução de emissões poluentes, que passa a ser de 55 por cento até 2030.

"A Comissão propõe aumentar os objetivos para redução de emissões de dióxido de carbono [CO2] em pelo menos 55 por cento até 2030"
, declarou no Parlamento Europeu.

"Reconheço que este aumento de 40 por cento para 55 por cento é muito para uns e que para outros fica aquém, mas a avaliação de impacto que realizámos demonstra que a economia e a indústria conseguem fazê-lo e querem fazê-lo", acrescentou a responsável.



Classificando este como um "objetivo ambicioso, alcançável e também benéfico para a Europa", Von der Leyen afincou que a União Europeia "já demonstrou" que consegue chegar a tais reduções.

"As emissões de CO2 caíram 25 por cento desde 1990 e a economia cresceu mais de 60 por cento", destacou, frisando que "agora a diferença é que existe [mais] tecnologia".

"Se outros seguirem o nosso exemplo, o mundo poderá manter o aquecimento global abaixo dos 1,5 graus", frisou ainda, numa alusão às metas ambientais estipuladas pelo Acordo de Paris.

Com a área ambiental como uma das prioridades do seu mandato, Ursula von der Leyen anunciou também que 30 por cento dos 750 mil milhões de euros do Fundo de Recuperação criado para colmatar as consequências económicas da crise gerada pela pandemia de covid-19, o chamado ‘Next Generation EU’, "serão alocados à emissão de obrigações verdes".

O objetivo é que, através desses mecanismos, possam ser financiados "programas europeus de hidrogénio e renovação", exemplificou.

"Tudo isto fará com que a Europa volte a estar de pé, mas, ao sairmos desta crise juntos, também teremos de seguir em frente, tendo em conta o dia de amanhã", adiantou Ursula von der Leyen, vincando que "o que faz bem ao clima, também é bom para as empresas".

Observando que "a atividade mundial parou durante o confinamento, mas o planeta continuou a aquecer", a responsável indicou ainda que "não há maior necessidade de agir do que quando se fala do planeta".

"Sabemos que a mudança é necessária e possível […] e terá o pacto ecológico europeu no seu cerne", adiantou.

Outra das prioridades deste mandato é a inovação digital, com Ursula von der Leyen a anunciar também no seu discurso que 20 por cento da verba total do Fundo de Recuperação será alocado a esta matéria.

Notando que a inovação digital "ajudou" os cidadãos durante o confinamento, a presidente da Comissão Europeia exemplificou que foi devido aos meios tecnológicos que se realizaram aulas à distância ou regimes de teletrabalho.

"Em poucas semanas passámos por mais transformações digitais do que o normal em anos", disse ainda, concluindo que "a próxima década deve ser a década digital da Europa".
UE quer "novo começo" com EUA e Reino Unido
Sobre o Brexit e as relações com os Estados Unidos, Ursula von der Leyen defendeu serem necessários "novos começos com velhos amigos", de ambos os lados do Atlântico e do Canal da Mancha.

Perante o Parlamento Europeu, a presidente da Comissão Europeia, referindo-se à relação com Washington, disse que a Europa pode "não concordar sempre com a Casa Branca", mas que irá sempre "acarinhar esta relação transatlântica entre dois parceiros que partilham valores e ideais comuns".

Von der Leyen já tinha deixado, anteriormente no seu discurso, uma crítica velada à atual administração norte-americana, ao orgulhar-se de, durante a crise da covid-19, a UE nunca ter adotado uma postura de "Europe first" (‘Europa em primeiro lugar’), à imagem do lema do Presidente norte-americano, Donald Trump, de "America First".

"Temos uma liderança que não defende a autopropaganda", disse, aludindo aos "aviões europeus que entregaram milhares de toneladas de equipamentos de proteção".

Sem nunca mencionar a administração norte-americana, a líder do executivo comunitário defendeu "mudanças por defeito" e reformas nas organizações mundiais do Comércio (OMC) e de Saúde (OMS) sem que prevejam a "destruição do sistema internacional".

Relativamente ao Reino Unido, e tendo como pano de fundo a atual tensão em torno da concretização do ‘Brexit’, face à ameaça de Londres de desrespeitar o Acordo de Saída celebrado com a UE, a presidente do executivo comunitário exortou o Governo de Boris Johnson a não desrespeitar o compromisso, e citou a antiga primeira-ministra Margaret Thatcher.

"Passo a citar: 'o Reino Unido não viola Tratados. Seria mau para o Reino Unido, seria mau para as relações com o resto do mundo, e seria mau para qualquer futuro acordo comercial'. Fim de citação", afirmou Von der Leyen, acrescentando que "isso era verdade então e é verdade hoje", pois "a confiança é a fundação de qualquer parceria forte".

A responsável europeia alertou que "a cada dia que passa, as chances de se chegar a um acordo atempado diminuem", e reforçou que o acordo entre entre Londres e Bruxelas "não pode ser unilateralmente alterado, desconsiderado ou não aplicado".

Num discurso de mais de uma hora, Ursula von der Leyen abordou ainda a ligação da UE à China, classificando este país asiático como "um parceiro de negociação, um concorrente económico e um rival sistémico".

E destacou também que existem "interesses comuns", em matérias como alterações climáticas e comércio.

Ainda assim, condenou os "abusos dos direitos humanos em Hong Kong e contra a comunidade uigur" na China.

"Em Hong Kong, Moscovo ou Minsk, a Europa tem uma posição clara e firme", assegurou.
Pacto migratório para "sarar feridas"
Von der Leyen afirmou, em Bruxelas, que o novo pacto migratório europeu servirá para sarar "as feridas abertas" na União Europeia através de uma "visão humanitária".

"A crise migratória de 2015 provocou muitas divisões entre os Estados-membros e ainda existem feridas abertas, apesar de ter sido feita muita coisa entretanto", afirmou.

Lembrando que "a migração sempre foi uma realidade do continente europeu, [já que] foi a migração que definiu as sociedades e a cultura europeias", a líder do executivo comunitário argumentou que a UE "pode chegar a um compromisso, respeitando completamente os seus princípios", relativamente a esta matéria.

Por isso, a proposta que a Comissão Europeia irá apresentar na próxima semana para novo pacto migratório prevê uma "nova visão humanitária", no âmbito da qual "deixou de ser uma mera opção salvar vidas do mar2.

Acresce que "os países [europeus] mais expostos precisam de contar com toda a solidariedade da UE", defendeu, vincando que "a Europa precisa de agir em conjunto" e que cada Estado-membro deve "fazer a sua parte" relativamente às migrações.

Ao mesmo tempo, com o novo pacto migratório, a Comissão Europeia quer "uma definição clara entre asilo e retorno", bem como "vias jurídicas seguras" e medidas mais apertadas contra o tráfico.

"Aqueles que têm o direito de permanecer devem integrar-se e sentir-se bem-vindos", disse Ursula von der Leyen.

Já numa alusão aos incêndios da semana passada no campo de refugiados de Moria, o maior da Europa na ilha grega de Lesbos, a responsável considerou que "o que aconteceu foi um exemplo doloroso".

E anunciou que "a Comissão está, juntamente com o Governo grego, a criar um plano para um novo campo em Lesbos para acelerar os processos de asilo, melhorando também as condições para os refugiados".
Plano de ação contra o racismo
A presidente da Comissão Europeia anunciou ainda a intenção de criar um plano de ação contra o racismo e os crimes de ódio, afirmando que "ódio é ódio e ninguém deve ser sujeito a isso".

"Na UE, a luta contra o racismo não é uma opção", assegurou Ursula von der Leyen.

Referindo-se aos recentes casos polémicos de discriminação e violência racial, disse que é preciso "passar da condenação à ação" para construir uma UE "verdadeiramente antirracista".

Por isso, a Comissão Europeia vai propor "alargar a lista de crimes da UE a todos os tipos de crime de ódio e discurso de ódio, seja por causa da raça, da religião, do género ou da sexualidade", anunciou.

Será também reforçada a legislação sobre igualdade racial onde houver falhas e o orçamento da UE será usado para abordar a discriminação no acesso ao emprego, à habitação e à saúde.

Von der Leyen propôs ainda melhorar a educação e o conhecimento sobre as causas históricas e culturais do racismo e combater o "preconceito inconsciente que existe nas pessoas, nas instituições e até nos algoritmos".

A dirigente anunciou ainda que o executivo comunitário passará a dispor de um coordenador antirracismo, que trabalhará diretamente com as pessoas, a sociedade civil e as instituições numa matéria que será "um ponto primordial na agenda" europeia.


Rejeitando "velhas desculpas e velhos desconfortos" para mudar, Ursula von der Leyen anunciou ter enviado esta manhã uma carta de intenções ao presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, e à chanceler alemã, Angela Merkel, dada a presidência do presidente do Conselho da UE, com "o plano da Comissão para o próximo ano".

Entre as prioridades estão áreas como a ambiental, o digital, as migrações, a recuperação económica, a proteção do trabalho, entre outras.

Ursula von der Leyen terminou o seu discurso sobre o Estado da União, um dos mais longos da história, com cerca de 75 minutos, dizendo "viva a Europa" e arrecadando uma ovação em pé no hemiciclo do Parlamento Europeu.
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