Estado Islâmico: a grande ameaça para o Islão

A execução a sangue frio do jornalista norte-americano James Foley por um militante do Estado Islâmico (EI), difundida terça-feira passada, foi condenada pelo mundo ocidental mas não só. Os líderes do mundo islâmico começam a assumir a sua preocupação com o avanço da ameaça que o grupo radical Estado Islâmico constitui, tanto a nível religioso como político.

Graça Andrade Ramos, RTP /
Uma mulher yazidi de Sinkar numa tenda do campo de refugiados de Nowruz em Qamishili, nordeste da Síria, após a fuga da perseguição dos militantes do grupo sunita radical Estado Islâmico Reuters

Iraque, Síria e Líbano são os países mais diretamente ameaçados pelas ações militares do grupo extremista, que ambiciona estabelecer um Califado, da Ásia ao Sul da Europa e a todo o norte de África.

As suas conquistas territoriais começaram na Síria em 2013, onde tem garantido domínio no leste junto à fronteira com o Iraque. E, desde junho de 2014, lançou uma ofensiva armada, bem equipada e estruturada, para garantir o domínio do norte iraquiano e das suas riquezas de cereais, de petróleo, de gás e de água. Regiões do Líbano estão igualmente na sua mira próxima.

Mas o grupo é considerado uma ameaça política e religiosa muito mais vasta e está a ganhar anti-corpos à mesma velocidade com que avança e à medida da crueldade daqueles que o integram.

"É chocante e está a ficar fora de controlo", reagiu o Presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhoyono, numa entrevista ao jornal The Australian, à execução de James Foley.

O líder do maior país de maioria muçulmana do mundo afirmou que as ações dos militantes do Estado Islâmico "envergonham" o Islão e exortou os líderes islâmicos a unirem-se na luta contra o extremismo.
Contestação religiosa
Os líderes religiosos do Islão já haviam começado a manifestar-se contra a crueldade e perseguição do EI às comunidades muçulmanas xiitas, cristãs e yazidis do norte do Iraque.

Dia 13 de agosto o principal clérigo muçulmano do Egipto condenou sem rodeios o grupo Estado Islâmico descrevendo-o como uma organização "terrorista" e um perigo para o Islão e para os muçulmanos.

O Estado Islâmico "viola todos os príncipios islâmicos e as intenções da lei islâmica da sharia", declarou o grande mufti Shawki Allam, apelando ainda à cooperação internacional e regional a todos os níveis".A condenação egípcia foi ecoada dia 19, quase palavra a palavra, pelo grande mufti da Arábia Saudita, que classificou as ações e a ideologia do grupo Estado Islâmico e da Al Qaeda, como "inimigos do Islão".

Numa posição pública de rara violência contra todos os grupos extremistas islâmicos, o sheik Abdul-Aziz al-Sheik, a maior autoridade religiosa do Arábia Saudita, afirmou depois que o terrorismo não tem lugar no Islão e que o perigo dos extremistas reside no seu uso de slogans islâmicos para justificar as suas ações que dividem as pessoas.

 Abdul-Aziz al-Sheik, grande mufti da Arábia Saudita (DR)

"Estes grupos são corpos estranhos, não pertencem ao Islão", afirmou o grande mufti saudita, apelando à unidade dos muçulmanos em torno da Arábia Saudita e da sua família real, para evitar o caos atualmente vigente.
O massacre de Sheitat
Domingo passado, o mundo muçulmano debateu chocado a execução sumária de 700 membros da tribo Sheitat da província de Deir al-Zor, no leste da Síria, maioritariamente controlada pelos soldados do Estado Islâmico.

Vídeos publicados na internet mostram a decapitação de centenas de pessoas em várias aldeias Sheitat. Nas imagens os soldados do Estado Islâmico riem e troçam das suas vítimas, imitando cabras, enquanto decorrem as execuções. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, cerca de 100 dos executados eram soldados Sheitat mas os restantes eram civis.

Entre os executados estariam ainda homens feridos em combate contra o Estado Islâmico. Relatórios de grupos não governamentais garantem que eles foram arrastados para fora do hospital Hujein e do centro médico de Mayadeen e decapitados.

As execuções aconteceram após negociações falhadas durante as quais os anciãos dos Sheitat recusaram jurar lealdade do Estado Islâmico.
 


Pelo contrário. De acordo com fontes da Al Jazeera, um líder Sheitat apelou mesmo aos membros do grupo extremista para pedirem perdão a Deus e abandonarem o grupo. Apelou aos soldados do EI para seguirem "a religião da misericórdia" e abandonarem o que descreveu como "o gado dos desviados". Os membros da tribo mataram então alguns dos soldados do EI e expuseram os seus corpos nas ruas.
A ameaça do takfirismo
A crueldade de parte a parte pode ser explicada pela guerra e por características culturais. Mas, no caso do Estado Islâmico, a origem é mais profunda e enraíza-se numa interpretação de tal forma radical do Islão que considera hereges todos aqueles que não a seguem: o takfirismo, da palavra takfir que significa "aquele que renega a Deus". Para os 'takfiristas' é legítimo matar todos aqueles que recusem a conversão.

É o caso dos muçulmanos xiitas, que têm sido perseguidos e mortos aos milhares, sobretudo nos últimos dois meses, a par dos cristãos e yazidis que habitam o norte do Iraque há milhares de anos mas que foram expulsos de suas casas da noite para o dia, sob ameaça de execução se não se convertessem.

Famílias iraquianas yazidis a caminho da fronteira com a Síria em fuga da ameaça do Estado Islâmico (Foto: Reuters)

Jovem cristã caldeia iraquiana ergue uma cruz durante um protesto em Berlim contra a perseguição da sua comunidade no Iraque pelos radicais sunitas do Estado Islâmico (Foto: Reuters)

A perseguição forçou à deslocação de 1,2 milhões de pessoas, que desde junho se refugiaram em campos da ONU ou que estão encurraladas entre posições do Estado Islâmico. Foi sobretudo o drama destas populações que chamou a atenção do Ocidente para o reino de terror que o Estado Islâmico procura instituir. Milhares de pessoas foram já executadas e os seus corpos expostos. Outros terão sido enterrados vivos, incluindo mulheres e crianças. Milhares de mulheres e de raparigas terão ainda sido raptadas e estarão a ser vendidas como escravas nos mercados de Mossul, a cidade do norte iraquiano que se tornou a base de operações do EI na região.

A posse das riquezas do norte do Iraque é essencial para a estratégia de sobrevivência do EI. Além de ser a base da produção cerealífera do Iraque, a região possui ainda poços de petróleo, gás e a barragem de Mossul, que abastece de água e de energia toda a bacia do rio Tigre.

Há relatos de que o Estado Islâmico estará a vender petróleo dos cinco poços que controla no Iraque, para se financiar. Existem ainda rumores de que a liderança do EI pediu apoios bancários para manter o seu exército e tem de ter com que os pagar.

São aspetos pragmáticos de uma ofensiva que procura consolidar o seu poder territorial, político e religioso com base no regresso de um Califado. Um Califa tem o poder político de chamar todos os muçulmanos à guerra santa, um facto de que o líder do Estado Islâmico, Abu al Bakr al-Bagdadi, tem plena consciência. E que pretende estender o seu domínio da Ásia à Europa e norte de África.
Califado ameaça o Islão vigente
O estabelecimento do Califado no Iraque e no Levante é um dos objetivos declarados dos radicais muçulmanos e foi uma das primeiras medidas de al-Bagdadi para assumir uma autoridade suplementar entre os muçulmanos e relegar para segundo plano o líder da própria Al Qaeda, Ayman al-Zawahari, com quem se desentendeu e que o expulsou do grupo por alegadas divergências estratégicas.

O Califado segundo os desígnios do líder  do grupo radical Estado Islâmico, Abu Bakr al-Bagdadi (RTP)

O segundo bónus é desafiar a Arábia Saudita, em particular a sua autoridade sobre o mundo islâmico sunita. A Arábia Saudita segue ela própria o wahabismo, uma escola islâmica fundada no século XVIII que recusa desde a dança e o riso, à música, poesia, álcool ou tabaco e que institui regras rígidas para qualquer função social do vestuário ao penteado. Mesmo outras correntes islâmicas são consideradas boas para abater.

Contudo, a família Ibn Saud, garante da pureza da ideologia wahabitta, recusa o takfirismo, que já atraiu milhares de sauditas, o mais conhecido dos quais foi Osama Bin Laden, fundador e líder da Al Qaeda. O takfirismo é uma corrente do ramo wahabitta do Islão sunita e está na origem de muitos grupos extremistas islâmicos. Atrai para as suas fileiras cada vez mais jovens muçulmanos - só o Estado Islâmico terá entre 15.000 e 50.000 homens provenientes de todo o mundo de acordo com diversas estimativas - e está a tornar-se um tema de aceso debate no próprio Islão. A imprensa árabe tem estado cheia de artigos e debates sobre como confrontar esta ideologia radical.

O debate contra o takfirismo está a ser fortemente apoiado pela Arábia Saudita e seus aliados no mundo árabe, sobretudo depois da instituição do Califado, uma ameaça direta a todo o poder político do Islão.

O Rei saudita, Abdullah bin Saud, tem pressionado as autoridades religiosas do país a tomarem posição contra os extremistas. O Rei emitiu já um decreto a proibir os seus cidadãos de lutar em conflitos no estrangeiro.

Clérigos que não condenem o terrorismo nos seus sermões podem ser multados e ter as suas licenças de pregação revogadas. O Ministério saudita do Interior pode mesmo fazer uma avaliação prévia dos clérigos antes de os autorizar a pregar. Desde 2003 já foram dispensados 3.500 clérigos na Arábia saudita, devido aos seus sermões.
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