Fracasso na Ucrânia dita queda de espião favorito de Vladimir Putin

por Graça Andrade Ramos - RTP
Sergei Beseda, coronel-general russo ex-comandante do Departamento Operacional de Informações e do 5º Serviço dos FSB DR

O todo-poderoso diretor do 5º Serviço dos FSB, o coronel-general Sergei Beseda, e o seu vice-comandante, Anatoly Bolyukh, estarão há 10 dias sob prisão domiciliária, acusados de uso indevido do financiamento destinado a apoiar ações subversivas na Ucrânia e de terem fornecido informações erróneas até às vésperas da invasão.

A informação foi reportada pelo Wall Street Journal, via fontes anónimas dos serviços secretos e referida num artigo do CEPA, o Centro para a Análise de Políticas Europeias, assinado pelos investigadores Irina Borogan e Andrei Soldatov. Sergei Beseda, de 68 anos, entrou para os FSB em 2003 e era considerado um dos protegidos de Putin. A sua queda em desgraça não augura nada de bom para os restantes envolvidos na invasão.

Apesar de nada ter sido confirmado por fontes oficiais russas, um ativista russo de direitos humanos exilado, Vladimir Osechkin, confirmou a The Times a detenção, revelando que agentes dos Serviços Federais de Segurança da Rússia efetuaram buscas na semana de 10 de março a mais de 20 moradas em Moscovo, ligadas a operacionais dos Serviços Federais suspeitos de terem falado com jornalistas.

“A base formal destas buscas foi o desvio de verbas alocadas a atividades subversivas na Ucrânia”, afirmou Osechkin. “As verdadeiras razões foram a informação pouco fiável, incompleta e parcialmente falsa, sobre a situação política na Ucrânia”.

Andrey Soldatov, co-fundador e editor do website de investigação Argenta, que acompanha os FSB e outras agências, afirma que a detenção dos dois homens lhe foi confirmada por fontes dentro dos próprios Serviços Federais.

Beseda, casado e pai de dois rapazes, poderá vir a ser acusado formalmente de traição e de desvio de fundos além da disseminação deliberada de informações falsas sobre a situação política na Ucrânia.

O 5º Serviço inclui o Departamento Operacional de Informações e Relações Internacionais, DOI, responsável por múltiplas operações de espionagem e de subversão do Kremlin, que reporta diretamente ao presidente.

A purga constitui um indicativo poderoso do nível de frustração presidencial com as operações na Ucrânia. Putin está já a tentar encontrar culpados pelo fracasso operacional ucraniano.
Enganado
A tensão no Kremlin cresce a cada dia de atoleiro ucraniano, numa autêntica luta pela sobrevivência e de troca de acusações entre o DOI e o Ministério da Defesa russo, para justificar o fracasso das operações planeadas por ambos os serviços, afirmam as mesmas fontes.

As cabeças de Beseda e do seu vice-comandante poderão ser apenas as primeiras a rolar e nada se diz sobre quem os substituiu. Correm ainda rumores de que uma série de oficiais russos foram demitidos dos seus postos, incluindo o general Roman Gavrilov, com as notícias russas a reportarem tanto que ele se demitiu como que foi detido pelos FSB, acusado de fugas de informações militares que levaram “à perda de vidas”.

Por alguma razão Vladimir Putin demorou praticamente duas semanas a perceber que os oficiais responsáveis por o manterem informado lhe transmitiram simplesmente o que ele próprio queria ouvir e não a realidade no terreno.

O diretor da CIA, William Burns, afirmou perante o Congresso norte-americano no início do mês que o presidente russo estava convencido que iria conquistar Kiev em apenas dois dias. Contudo, quase um mês depois dos primeiros bombardeamentos a cidade continua a resistir.

A Ucrânia afirma por outro lado que pelo menos cinco generais russos foram mortos em combate. Este domingo, o vice-comandante da frota russa do Mar Negro terá tombado também em Mariupol, de acordo com informações do governador de Sebastopol, na Crimeia.

Notícias que, a confirmarem-se, são maus sinais para os responsáveis próximos de Putin, consideram observadores.

“Quando falamos deste homem, é evidente que a cultura de ‘alguém errou e vai ter de pagar’ se mantém operacional”, afirmou o ex-membro da CIA e do Conselho de Segurança Nacional, Jeffrey Edmonds ao The Wall Street Journal.

O ambiente de medo e raiva crescentes no Kremlin poderá virar-se também contra Putin, como lembrou em entrevista ao New Yorker o especialista em História russa, Stephen Kotkin. Putin, afirmou, está a obter apenas a informação “que ele quer ouvir. De qualquer forma, ele crê ser superior e mais inteligente. Este é o problema do despotismo”.
Protegido de Putin
O fracasso de Beseda e do DOI tem para Putin um sabor especialmente amargo e a perda de face atinge-o pessoalmente, uma vez que foi ele a formar nos anos 90 do século XX o diretório que viria a transformar-se no Departamento Operacional de Informações.

Nessa década Vladimir Putin assumiu a direção dos FSB e obteve autorização para conduzir operações internacionais. O diretório assim formado ficou com a missão de vigiar os vizinhos mais próximos da Rússia. As operações tornaram-se mais abrangentes quando uma série de “revoluções coloridas” começaram a fazer tombar os regimes pós-soviéticos. Ao diretório foi atribuída a incumbência de promover políticos pró-Kremlin.O DOI foi oficialmente formado em 2004, uma decisão que evidencia a sua crescente importância no Kremlin. Sergei Beseda, que servia na seção dos FSB responsável pela Administração do presidente, assumiu em 2009 o comando do novo departamento com acesso direto a Putin.

A missão de Beseda e do seu DOI era superintender as conexões com serviços similares internacionais, incluindo norte-americanos, com o departamento a ser o ramo de informações externas do FSB e a coordenar operações, incluindo políticas, para manter as nações vizinhas da Rússia, incluindo a Ucrânia, sob a influência de Moscovo, com os seus operacionais a serem vistos da Bielorrússia à Moldova e à Abkhazia, na Georgia.

A Ucrânia foi sempre um dos alvos principais do DOI sendo palco de um episódio caricato em junho de 2010, quando uma falsificação de informações para opor a Ucrânia e o Turquemenistão foi tão bem sucedida que enganou até mesmo os serviços russos de espionagem, os SVR.

Para Sergei Beseda este foi um motivo de orgulho. Tinham na verdade sido os seus serviços a lançarem o website lubyanskayapravda.com, ou ‘a verdade sobre o Lubyanka’ [sede dos FSB] supostamente de revelação de documentos ultra secretos, uma série deles assinados pelo próprio Beseda e dirigidos a Putin.

Entre a documentação encontrava-se um relatório dos serviços secretos ucranianos, completamente forjado, onde se sugeria que Kiev tinha estado a financiar a oposição do Turquemenistão. O DOI forneceu-o aos media ucranianos, enganando os SVR. Sergei Beseda escapou incólume.
Beseda sai do anonimato
Apesar destes sucessos, o 5º Serviço e o seu comandante escapavam ainda aos radares dos serviços de espionagem internacionais. Quatro anos depois isso mudou, com Beseda a tornar-se por direito próprio alvo de sanções europeias e norte-americanas.

Em 20 e 21 de fevereiro de 2014 o responsável pelas operações do DOI foi visto em Kiev, durante a revolução da praça Maidan, quando dezenas de manifestantes desarmados foram abatidos a tiro.

Em abril do mesmo ano, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia pediu aos FSB para questionar Beseda, “no âmbito do pré-investigação aos procedimentos criminais cometidos durante os eventos massivos ocorridos em Kiev no período” da presença de Beseda.

Os FSB reconheceram que o coronel-general tinha estado em Kiev naquelas datas mas apenas para supervisionar a segurança da embaixada russa, versão mal aceite pelos ucranianos. O departamento do Tesouro norte-americano afirmou depois que, em 2014, o FSB tinha estado envolvido no “financiamento e apoio de atividades separatistas na Crimeia e no leste da Ucrânia”.

Apesar do escândalo, nada beliscou o 5º Serviço ou o seu comando e ambos continuaram responsáveis pelas informações sobre a Ucrânia, pela implantação de uma rede de espiões e por operações subversivas.

Foram por isso os principais responsáveis pelo fornecimento das informações que serviram de base ao planeamento da guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022, com Vladimir Putin a confiar cegamente no que lhe era transmitido.

A maioria dos analistas ocidentais refere que o presidente russo foi vítima da sua própria arrogância e do medo instilado ao seu redor.

“É difícil imaginar algum alto responsável do setor de informações a falar com o Putin e a não lhe dizer o que ele quer ouvir, sobretudo se é uma crença profunda, como as de Putin quanto à Ucrânia”, referiu Jeffrey Edmonds.
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