"Fungo preto". Ainda a combater a covid-19, Índia enfrenta outra epidemia

por Inês Moreira Santos - RTP
Adnan Abidi - Reuters

No rescaldo de uma longa e mortal segunda vaga da covid-19, os casos de uma rara doença fúngica dispararam na Índia. Nas últimas três semanas foram identificados neste país asiático mais de 30 mil casos de mucormicose, também conhecida por "fungo preto", em antigos doentes covid. Médicos e especialistas apontam o uso de esteróides para a cura da infeção provocada pelo coronavírus, os hospitais sobrecarregados nos últimos meses e a falta de medicamentos e oxigénio hospitalar como as potenciais causas para o surgimento desta nova epidemia.

Em apenas três semanas, a Índia registou um aumento de 150 por cento dos casos de mucormicose no país, sendo os principais Estados afetados Maharashtra, Gujarat e Rajasthan. De acordo com o canal indiano NDTVas infeções começaram ainda durante o combate à segunda onda de covid-19 no país e, até agora, já foram identificados cerca de 31.216 casos e 2.109 mortes devido a esta doença, conhecida popularmente como "fungo preto".

A Índia foi o terceiro país no mundo a ultrapassar os 300 mil mortos por Covid-19, depois dos Estados Unidos e do Brasil, na vaga que assolou o território nos últimos meses. Mas, para além do número de mortos e da pressão dos sistemas hospitalares indianos, o difícil controlo da pandemia no país levou ao surgimento de uma nova variante e ao aumento de casos de mucormicose.

Segundo os especialistas, o desenvolvimento da mucormicose está associada à imunodeficiência do organismo (ou seja, pessoas cujo sistema imunitário está mais debilitado ou é mais débil) e afeta, sobretudo, pessoas que estão ou já estiveram infetadas pelo SARS-CoV-2 (o vírus que provoca a covid-19). A taxa de letalidade desta doença fúngica é de aproximadamente 50 por cento, enquanto que a taxa de letalidade da covid-19 é de dois a sete por cento.

O desenvolvimento da mucormicose pode ser potenciado por alguns fatores, como ter diabetes, ter doenças oncológicas (principamente leucemia) que requerem transplante de medula óssea, ser medicado com altas doses de medicamentos da classe dos corticoides, além das poucas condições sanitárias dos edifícios.

Perante o acelerado aumento de infetados, todos os Estados indianos já decretaram a doença fúngica como uma epidemia, desde dia 20 de maio. Para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, o "fungo preto" é um novo desafio no país e é importante preparar os sistemas de saúde para o enfrentar e implementar medidas para prevenir que se continue a disseminar pela população.
"Fungo preto" é consequência da covid-19?

A mucormicose é uma infeção rara, causada por uma variedade de fungos da ordem Mucorales, que podem ser encontrados no solo, no estrume, na palha e em alimentos em decomposição (como frutas e legumes). Esta infeção fúngica começa a espalhar-se pelo organismo humano após a pessoa ter tido contato com esporos do fungo - entram na nasofaringe, começam a crescer e a formar filamentos e produzem toxinas que desintegram os órgãos e tecidos do organismo humano (os filamentos, chamados hifas, têm uma cor preta, daí o nome da doença "fungo preto").

O problema é que a infeção pode espalhar-se não só pelos seios nasais, mas também chegar aos órgãos do trato gastrointestinal, pulmões e até ao cérebro, bloqueando as principais veias e artérias e provocando hemorragias.

De acordo com a BBC News, alguns pacientes infetados por este fungo só conseguiram sobreviver por terem sido submetidos a uma cirurgia de remoção dos tecidos mortos ou mesmo amputação. Até ao momento, já foram identificados dezenas de milhares de casos de mucormicose entre doentes recuperados da covid-19 ou que se encontravam ainda a recuperar. O que reforça a teoria de que existe uma relação entre a patologia rara e a pandemia do SARS-CoV-2.

A pandemia da covid-19 tem realçado mais as nítidas diferenças entre os países ricos e os países mais pobres, e a epidemia de mucormicose na Índia é a manifestação mais recente disso. Durante a segunda onda do coronavírus, que atingiu a Índia em abril, os sistemas de saúde careciam de camas, de oxigénio e de muitos outros recursos, não tendo sido capazes de responder ao aumento de infeções e mortes.

Com os sistemas de saúde sob pressão e sem recursos, os médicos e os especialistas acreditam que os hospitais fizeram escolhas que deixaram os doentes com covid-19 mais vulneráveis e que, dessa forma, podem ter favorecido o desenvolvimento de mais uma doença potencialmente mortal.

"A pandemia precipitou uma epidemia", afirmou ao New York Times o otorrinolaringologista do Hospital Civil da Índia, Bela Prajapati.

Sem oxigénio suficiente para assistir os doentes infetados pelo SARS-CoV-2, muito médicos prescreveram esteróides, e em doses superiores às recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, em alternativa para combater a infeção. Estes medicamentos podem reduzir a inflamação nos pulmões e, assim, ajudar os pacientes com covid-19 a respirar com menos dificuldade.

Especialistas na Índia acreditam que os hospitais sobrelotados e a falta de oxigénio hospitalar propiciaram, por isso, o desenvolvimento do fungo.

Segundo o NYT, os esteróides podem ter comprometido o sistema imunitário dos doentes covid, tornando-os mais suscetíveis aos esporos fúngicos. Os dados do Ministério da Saúde da Índia revelam que cerca de quatro em cada cinco pacientes com mucormicose já tiveram covid-19.

Além disso, os esteróides também podem ter aumentado perigosamente os níveis de açúcar no sangue, deixando as pessoas com diabetes ainda mais vulneráveis ​​à mucormicose - e a Índia é dos países com mais pessoas diagnosticadas com diabetes.

A maioria dos médicos, durante a segunda vaga da covid-19 com o aumento de doentes a necessitar de cuidados hospitalares e com cada vez menos recursos, não tiveram tempo de verificar se alguns dos doentes tinham diabetes ou outras doenças que os tornassem mais vulneráveis com o uso de esteróides.

"Os médicos dificilmente tinham tempo para fazer a avalição total dos pacientes", afirmou o especialista em microbiologia Arunaloke Chakrabarti. "Todos estavam a tentar tratar os sintomas do trato respiratório".
Como se propaga?

Esta doença fúngica não é contagiosa entre pessoas ou animais. Os especialistas garantem ainda que o fungo só se desenvolve em pacientes com as 'condições certas', como diabetes ou imunossupressão provocada por outras condições clínicas.

No entanto, como se dissemina por esporos de fungos presentes na atmosfera ou no ambiente, é praticamente impossível evitá-lo (embora pessoas saudáveis não corram tanto risco de serem infetadas).

"Bactérias e fungos estão presentes no nosso corpo, mas o sistema imunitário mantém-nos sob controlo", afirmou à Reuters K. Bhujang Shetty, diretor do Hospital Narayana Nethralaya na Índia. "Quando o sistema imunitário está enfraquecido devido ao tratamento de tumores, diabetes ou uso de esteroides, esses fungos aproveitam e multiplicam-se", acrescentou.

Mas um dos motivos por que se está, neste momento, a agravar a epidemia do "fungo preto" é o facto de escassear o principal medicamento antifúngico usado para combater esta doença: o Anfotericina B.

"A mucormicose vai diminuir e voltar à linha de base à medida que os casos de Covid diminuirem", explicou ao NYT Dileep Mavalankar, epidemiologista indiano. "Mas pode voltar na terceira vaga, a menos que consigamos entretanto descobrir o que a potenciar esta doença".

Se não for tratado, este fungo espalha-se para as órbitas dos olhos e para o cérebro. O tratamento envolve uma cirurgia complexa, muitas vezes desfigurante, e um medicamento incomum e caro, o que contribui para uma taxa de mortalidade superior a 50 por cento.

A epidemia de mucormicose vem aumentar a necessidade e urgência de imunizar a população de cerca de 1,4 mil milhões de pessoas na Índia contra o coronavírus, visto que a população continua a correr o risco de enfrentar uma terceira vaga da covid-19 e tornar-se mais vulnerável a novas doenças.
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