Israel. As quatro razões para o adiamento da anexação da Cisjordânia

por Graça Andrade Ramos - RTP
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em 28 de junho de 2020 Reuters

Estes têm sido dias difíceis para Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel. No último ano, ao longo de três campanhas eleitorais legislativas, prometeu anexar formalmente os colonatos da Cisjordânia e do Vale do rio Jordão. Conseguiu o apoio de Washington, falou em "oportunidade histórica". E preparou tudo, incluindo as operações das Forças Armadas, para submeter os seus planos a discussão e votação a 1 de julho. Seguir-se-ia, com toda a probabilidade, o início da anexação.

À medida que a hora se aproximava, os avisos e os apelos internacionais para um recuo sucediam-se. Os palestinianos rasgavam acordos assinados. E todos sustinham a respiração.

Quarta-feira, 1 de julho, chegou e passou e nada sucedeu, ninguém se reuniu, não houve debate nem votação.

No fim-de-semana anterior tinham começado a surgir sinais de que nem tudo corria de feição a Netanyahu.

Três dias de reuniões ao mais alto nível em Washington, incluindo com Donald Trump, terminaram com declarações de reserva, de necessidade de mais dados militares e de informações, e com um lavar de mãos à maneira de Pilatos, por parte do secretário de Estado norte-americano.

A decisão sobre a anexação "cabe aos israelitas", disse quarta-feira, sumariamente, Mike Pompeo.


Declarações que não terão surpreendido Netanyahu. No dia anterior, 30 de junho, o primeiro-ministro israelita reunira-se com Avi Berkowitz, o enviado da Casa Branca e conselheiro especial de Donald Trump, e com o embaixador norte-americano para Israel, David Friedman.

No fim, Netanyahu revelou que "falámos da questão de soberania, que temos estado a trabalhar nestes dias e que vamos continuar a trabalhar nos próximos dias".

Para contentar os seus apoiantes, e entre estes, sobretudo, a maioria dos colonos, o líder do executivo israelita poderá avançar simbolicamente com a anexação de um punhado de colonatos próximos de Jerusalém. A imprensa de Israel admite que isto se possa dar muito em breve.

O que não irá passar de um fruto amargo, para quem pretendia iniciar provavelmente já em julho a anexação de 30 por cento da Cisjordânia e do Vale do Jordão e de cerca de uma centena de colonatos. E sabe que a janela de oportunidade se está a fechar à medida que novembro se aproxima e com ele uma eleição presidencial que poderá mudar o inquilino da Casa Branca, deitando provavelmente tudo a perder.

Gabe Friedman, analista do Jerusalem Post, reviu as razões para o fracasso, pelo menos momentâneo, de Netanyahu. Encontrou quatro, que terão forçado o primeiro-ministro, se não a recuar, pelo menos a não avançar com os planos iniciais.

Friedman destacou desde logo as reticências da Administração Trump e do parceiro de coligação de Netanyahu, Benny Gantz. Os esforços palestinianos para reverter e impedir o plano. E, por último, as consequências da pandemia de Covid-19.

"Abrande"

As palavras 'calma' e 'prudência', resumem a mensagem levada pela equipa de Trump para as reuniões com o primeiro-ministro israelita nos últimos meses. "Abrande o processo", recomendam Jared Kushner, descendente de judeus russos e genro do Presidente, o embaixador Friedman e Berkowitz, de apenas 31 anos.
O plano apresentado por Donald Trump em janeiro de 2020, prevê a criação de um Estado Palestiniano em 70 por cento da região da Cisjordânia e do Vale do Jordão. Os restantes 30 por cento seriam anexados por Israel.

Washington incentivou Israel a avançar, desde o início.

Entretanto algo mudou e muitos admitem que a areia na engrenagem tem origem em questões geográficas, por exemplo determinar qual a área destacada para os palestinianos e quais os colonatos a anexar.

Outros lembram que, em ano de eleições, num cenário de pandemia e de crise social e económica, e perante a recusa palestiniana de sequer discutir o plano, a Casa Branca tem mais com que se ocupar.

As Forças Armadas israelitas, refere Friedman, ficaram também de fora de todo o processo,
o que levanta questões de segurança operacional. Serão ainda necessárias mais informações sobre o que se passa no terreno, para sustentar as decisões e estabelecer estratégias.

O analista repara ainda que, estranhamente ou talvez não, Netanyahu tem deferido perante os norte-americanos, ao contrário de ocasiões - e Presidentes - anteriores, como as negociações de 2013-14.

Gantz, o conciliador
O rival e co-líder de Governo de Netanyahu, o líder do Partido Azul e Branco, Benny Gantz, tem-se mostrado inquieto com todo o plano, refere Friedman, e quer esperar e conseguir um consenso internacional alargado, algo que até agora tem sido impossível.

Este poderá ser outro pretexto para as reticências de Trump, já que a anexação exige uma frente unida ao menos em Israel. Será mesmo Gantz, um homem de centro-direita, quem tem estado a pressionar Trump no sentido de condicionar a anexação, adianta Friedman.

O líder do Azul e Branco apoia o plano de paz de Trump, incluindo a anexação, mas só se este conseguir mais apoios internacionais do que aqueles de que goza atualmente. ONU, União Europeia e Liga Árabe rejeitaram o projeto.

Líderes europeus têm ameaçado com sanções contra Israel se a anexação avançar. E vários Estados Árabes do Golfo têm alertado que a iniciativa, sem o acordo dos palestinianos, poderá perturbar de forma desastrosa o equilíbrio em todo o Médio Oriente.

A Jordânia, um dos aliados de Israel na região, poderá recuar. E, como escreveu o embaixador dos Emirados Árabes Unidos em Washington, a anexação iria destruir os laços que Netanyahu se tem esforçado por estabelecer com o mundo árabe.

"Acredito que o plano de Trump segue a estrutura política e securitária correta para ser promovida pelo Estado de Israel", referiu terça-feira Gantz ao Ynet. Mas, "isto precisa de ser feito de forma correta e envolver na discussão tantos países da região quanto possível, com o apoio internacional", acrescentou.

Temos "de fazer todos os esforços para nos ligarmos a eles e só depois prosseguir. E penso que não esgotamos ainda todos os meios para envolver estes atores", defendeu Gantz.


O facto de tanto Gantz, que ocupa a pasta da Defesa, como o atual ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Gabi Ashkenazi, terem sido chefes do Estado Maior das Forças Armadas, tem igualmente muito peso, já que as operações militares serão fulcrais para o sucesso da iniciativa e a influência de ambos será determinante.

O acordo de rotatividade, que permitiu o atual Governo de coligação israelita, prevê que Gantz, atualmente ministro da Defesa, se torne primeiro-ministro em novembro de 2021, substituindo Netanyahu. Realizar a promessa deste, colhendo os louros enquanto líder de Governo, não deixa também de ser atrativo para Gantz.
O fator palestiniano
O plano de anexação irritou tanto Mahmmoud Abbas, o presidente da Fatah e da Autoridade Palestiniana, que a AP rasgou todos os acordos de segurança já assinados com Israel e recusou receber os impostos que Israel recolheu em seu nome nas zonas ocupadas. Ameaçou mesmo declarar um Estado independente.

Entretanto, surgiram sinais de que o lado palestiniano está a mexer-se.

A Agência France Presse falou de uma carta da AP para o quarteto internacional para a paz no Médio Oriente - formado pelos Estados Unidos, União Europeia, Nações Unidas e Rússia. Dizia-se "pronta a retomar conversações bilaterais diretas no ponto onde estas foram interrompidas", algo que não sucede desde 2014, desde que Israel desista da anexação.

A carta poderá não ter sido enviada, admite a AFP. Esta quinta-feira a AP viu-se forçada a cortar nos salários dos seus funcionários devido à falta de liquidez da tesouraria, uma vez que não quis receber os impostos que lhe eram devidos.

E, numa iniciativa como há muito não se via, a Fatah e os seus rivais palestinianos do Hamas, deram uma conferência de imprensa conjunta, onde afirmaram que se comprometeram a "unir-se" contra o projeto israelo-americano "para a Cisjordânia ocupada".

"Vamos implementar todos os mecanismos para garantir a unidade nacional" contra o projeto, afirmou em Ramallah o secretário-geral da Fatah. Jibril Rajoub acrescentou que se exprimia "a uma só e mesma voz" com Saleh al-Arouri, quadro do Hamas, que participava na mesma videoconferência a partir de Beirute.

"Afirmo que a posição da direção do Hamas é pelo consenso nacional. Esta conferência de imprensa conjunta é aliás uma oportunidade para iniciar uma nova etapa ao serviço do nosso povo nestes momentos perigosos", apoiou Arouri.

A laica Fatah domina o território palestiniano da Cisjordânia, enquanto o movimento islamita armado, Hamas, controla a Faixa de Gaza. Estão desavindos desde 2007, data em que o Hamas assumiu o controlo da Gaza um ano após ter vencido as eleições legislativas e no fim de uma quase guerra civil.

O plano anunciado em janeiro levou o Hamas a apelar desde logo à "união da classe politica" palestiniana face ao perigo.

De acordo com o projeto de Trump, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, distantes entre si em cerca de 50 quilómetros, seriam ligadas por um corredor. O novo Estado Palestiniano seria também desmilitarizado.
A pandemia
Este é o outro argumento de Benny Gantz. O líder do Partido Azul e Branco tem falado da necessidade de primeiro resolver a crise provocada pela pandemia de Covid-19 e só depois voltar a falar da anexação.

O novo coronavírus, como noutros lugares do mundo, está de regresso em Israel, depois de algum apaziguamento. O ministro da Defesa quer dar prioridade ao combate e controlo da pandemia.

A reação inicial de Netanyahu e da sua equipa ao alastrar do SARS-Cov-2 no país recebeu elogios transversais, pela rapidez e eficácia da quarentena imposta. Nas últimas semanas, depois de aliviar as restrições e reabrir escolas e a economia - os surtos de contágio regressaram em força.

Terça-feira, o Ministério da Saúde de Israel confirmou 700 novos casos em 24 horas - o segundo maior número num único dia desde o início da pandemia. Fala-se em recolher obrigatório em dezenas de cidades para conter o alastramento do coronavírus.

Netanyahu discorda de Gantz.
"Temos questões graves para discutir", afirmou. "Tão graves que não podem esperar que a pandemia passe".
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