Londres afável, Europa mais áspera e o Brexit ainda agora começou

por Christopher Marques - RTP
Yves Herman - Reuters

A carta está entregue, o Brexit está oficialmente lançado. Na missiva que abre o processo, Theresa May elenca as prioridades de Londres. As respostas que surgem do lado de cá da Mancha indicam já o primeiro ponto de desacordo: a Europa não quer falar do futuro sem estar decidido tudo o que significa a saída. Começam agora – pelo menos – dois anos de luta por um acordo em que todos vençam, mas que mostre que abandonar a União tem um custo.

Há nove meses que o mundo acordou desnorteado com a decisão do Reino Unido. Esta quarta-feira não foi dia de surpresas. Foi apenas o momento em que a escolha britânica se começou a concretizar. É a partir de agora que tudo começa.

Os parceiros necessitam de um acordo que favoreça todas as partes, em especial os 27 que se mantêm no projeto europeu, e que assegure crescimento económico e prosperidade.

Por outro lado, apesar de os dirigentes negarem qualquer intenção de “punir” os britânicos por terem escolhido o Brexit, há um objetivo que parece claro numa Europa em risco de fragmentação e que assiste ao crescimento das forças populistas. É preciso mostrar que estar fora da União Europeia não é a mesma coisa que estar dentro e que o Brexit não foi a escolha certa.“Estamos a deixar a União Europeia mas não deixamos a Europa. Queremos continuar parceiros e aliados”.

Daí que salte à vista a diferença de tom das intervenções que chegam de Bruxelas e de Londres. Na carta enviada a Donald Tusk, Theresa May sublinha os interesses britânicos, mas sem beliscar o projeto europeu. Londres faz até referência às suas obrigações enquanto Estado que abandona a família.

O Governo britânico reconhece que o Brexit não se poderá traduzir no acesso aos benefícios da União Europeia sem contrapartidas e até assume que os negócios com os 27 terão regras que já não serão decididas por Londres.

“Compreendemos que a saída da União Europeia terá consequências para o Reino Unido. Sabemos que perderemos influência. Sabemos que perderemos influência em relação a regulamentos que afetam a economia europeia”, explicou May no Parlamento britânico, num tom semelhante ao da carta que rubricou na noite de terça-feira.



Seja na versão falada, seja na versão escrita, as palavras de May são confortáveis para os diretórios europeus. Mas mostram também o pragmatismo britânico: pensar no futuro e não no divórcio. E é esse ponto que gera problema em Bruxelas.
May quer falar do futuro
Mais do que discutir quem perde ou o que perde, quanto deve ou não pagar, Londres quer desenhar a futura relação que manterá com o espaço europeu.

Para o Governo britânico, as duas negociações devem ser simultâneas: faz-se o debate da saída, ao mesmo tempo que é feita a discussão do futuro. As pretensões britânicas são um acordo comercial com o mercado único europeu e acordos específicos em áreas estratégicas.

Mas a simpatia e aparente boa vontade britânica tem limites. Para lá da necessidade de uma “parceria profunda e especial” com um projeto que deve “continuar forte e próspero”, há um aviso que Theresa May deixa.

“Se deixarmos a União Europeia sem um acordo, a nossa posição por defeito é que deveremos concretizar as trocas comerciais de acordo com os termos da Organização Mundial do Comércio”, escreve May. A governante nota ainda que, se não houver um acordo em matéria de segurança, “a luta conta o crime e o terrorismo sairá enfraquecida”.

“Não é o resultado que cada lado deve procurar. Devemos como tal trabalhar para evitar este resultado”, defende Londres.

Se é pouco possível que o Reino Unido saia sem acordo, não deixa de ser de notar que a primeira-ministra faça essa referência na missiva enviada a Donald Tusk. O mesmo cenário é também admitido pelo Parlamento Europeu.

O presidente do Parlamento Europeu fala dele como uma "catástrofe" mas não o exclui. "Não é o que desejamos mas estamos prontos", afirma Antonio Tajani. O mote está dado.
O que quer Bruxelas?
Apresentadas as pretensões londrinas, resta saber o que a União Europeia deseja. E aí entra tudo aquilo que marca a própria União.

Um aglomerado que deve agregar vontades de 27 Estados que divergem na postura face ao Reino Unido, que têm interesses próprios e atravessam fases políticas distintas. Um grupo tão heterogéneo que vai do Governo liderado pelo Syriza grego aos conservadores nacionalistas da Polónia e da Hungria.

A complicar as contas está o calendário político do eixo que lidera há décadas o projeto europeu: França com eleições em maio, a Alemanha que vai a votos em outubro. Os dois – especialmente Paris – confrontados com a ascensão das forças de extrema-direita.

Por enquanto há um aspeto que parece claro e que se apresenta como primeiro empecilho nas negociações. A União Europeia não quer para já falar da futura relação com o Reino Unido. Pretende apenas ver abordado o tema da saída.

As declarações nesse sentido chegam já do eixo franco-alemão mas também do Parlamento de Estrasburgo. Para Angela Merkel, é preciso clarificar a saída antes de discutir o futuro, retomando o discurso que tem sido adotado pela Comissão Europeia.

“Espero que o Reino Unido e a União Europeia continuem parceiros próximos. Para mim, o Reino Unido continua a ser uma parte da Europa com a qual partilhamos muito, nomeadamente os nosso valores comum”, não deixou de acrescentar a líder germânica.

Do outro lado do Reno, a resposta à carta de May é semelhante. “Depois das negociações sobre a separação, haverá outra negociação para organizar as relações futuras entre os 27 da União Europeia e o Grã Bretanha”, explicou aos jornalistas o chefe da diplomacia francesa.

Jean-Marc Ayrault nega, no entanto, que o grupo europeu queira “castigar” o Reino Unido pelo Brexit.
As linhas vermelhas de Estrasburgo
Por enquanto, a Europa fala a vozes concordantes. Também o Parlamento Europeu considera que a relação futura não deve ser discutida para já. A Assembleia de Estrasburgo apresentou esta terça-feira o texto que deverá ser aprovado no dia 5 de abril e contém as linhas vermelhas das negociações com Londres.

O texto diz claramente que “um acordo sobre a futura relação entre a União Europeia e o Reino Unido como país terceiro só pode ser concluído uma vez que o Reino se encontre fora da União Europeia”.

Os deputados admitem no entanto que “eventuais normas transitórias” para o período seguinte ao divórcio sejam negociadas mas apenas caso haja “progressos notáveis” nos assuntos prioritários, leia-se, o Brexit em si.

 

Para o Parlamento Europeu, qualquer período de transição não deverá ser superior a três anos. A assembleia de eurodeputados assinala ainda que só aceitará um acordo que garanta os direitos dos cidadãos europeus que vivem no Reino Unido, bem como dos cidadãos britânicos que vivem na União Europeia.

Estrasburgo quer que o acordo deixe claro quais são os “compromissos financeiros” de Londres perante a União Europeia, assim como a localização da fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte.

Afinal, a República da Irlanda é um Estado soberano, independente e membro da União Europeia e acolherá a única fronteira terrestre entre o reino e o espaço comunitário.

O Parlamento pretende ainda que o Tribunal de Justiça da União Europeia seja designado como instância competente para a resolução de diferendos em relação ao acordo de saída.

O documento é apresentado pelos dois principais grupos políticos do Parlamento: o Partido Popular Europeu (centro-direita que inclui o PSD e o CDS-PP) e os Socialistas e Democratas (centro-esquerda que inclui o PS). Também os liberais do ALDE e os Verdes são signatários do documento. O responsável do Parlamento para as negociações do Brexit admitiu ainda que outros grupos parlamentares se associem ao documento.
A vez de Bruxelas
Depois da carta londrina, as cartas estão do lado de Bruxelas. O presidente do Conselho Europeu tem de preparar um documento com as grandes linhas da negociação, que será depois enviado às 27 capitais europeias. O documento será debatido numa cimeira extraordinária marcada para 29 de abril, já sem a presença do Reino Unido.

A Comissão irá elaborar depois um mandato de negociação que deverá estar pronto no início de maio. Após a validação dos Estados-Membros entrará na última fase das negociações.

Até lá, o Reino Unido continuará membro da União Europeia, fará parte do mercado único e submete-se às leis europeias.

O Parlamento Europeu fará parte do complexo processo de aprovação do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia. O documento tem ainda de ser aprovado no Conselho Europeu por pelo menos 20 países que representem 65 por cento da população.



Também os parlamentos nacionais e alguns regionais terão de ratificar o documento: são cerca de 40 votações arriscadas. Afinal, recentemente o tratado comercial com o Canadá (CETA) ficou pendurado devido ao chumbo pelo Parlamento da região belga da Valónia.

Os dados estão portanto lançados, o jogo é difícil. A União Europeia precisa de convergir posições num momento de incerteza política, de crescimento das forças populistas e de divergências entre Estados membros.

Do lado de Theresa May, o jogo não é melhor. Theresa May enfrenta aquele que será, porventura, o mais difícil processo britânico desde o fim da II Guerra Mundial. Londres tenta separar-se da União Europeia sem cair no risco de se desagregar, perante os anseios independentistas da Escócia.

Apesar das dúvidas e das incertezas, Theresa May garante que não há volta a dar. O Brexit teve início formal e chegará mesmo ao fim. Mesmo que esse fim continue longe.
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