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Moçambique. Entrevista a Daniel David: “Se as pessoas estiverem motivadas, elas fazem a diferença”

por Andreia Martins - RTP
"Moçambique sofreu uma das piores catástrofes desde a independência", destaca o empresário Daniel David. DR

Um mês após a passagem do ciclone Idai, que deixou um rasto de destruição em Moçambique, a Antena 1 entrevistou Daniel David, empresário de destaque naquele país, à margem do Growth Forum 2019. Daniel David, que também tem desenvolvido projetos na área dos media e do desenvolvimento, considera que o principal investimento depois da catástrofe deve estar direcionado às pessoas, muito para além da ajuda mais urgente.

Quando o ciclone Idai atingiu território moçambicano com violência desmedida, a 14 de março, Moçambique ainda se estava a reerguer da crise económica e da corrupção em larga escala que visou o país em 2016. Na conferência Growth Forum, que decorreu na passada quinta-feira na Fundação Champalimaud, em Lisboa, Daniel David falou sobre esse “murro no estômago” sentido em força nas zonas afetadas, já de si tão frágeis no que ao desenvolvimento diz respeito.

Apesar das dificuldades, o ciclone Idai e os outros problemas de Moçambique também representam desafios e oportunidades para repensar o lugar do país no mundo. Daniel David é empresário e responsável pela Fundação FUNDASO, tornou-se uma figura influente no país sobretudo depois de ter criado a Sociedade Independente de Comunicação (SOICO) em 2000, o maior grupo privado de comunicação social em Moçambique. Em 2014 foi responsável pelo lançamento do Fórum Económico e Social de Moçambique e criou a MOZTEC, a maior feira de tecnologias de Moçambique.

Em entrevista à Antena 1, para o programa Visão Global, Daniel David destacou a importância da ajuda internacional que tem chegado até às populações, mas defende que é necessário um investimento a longo prazo nas pessoas que sobreviveram à catástrofe, com foco na sua resiliência e esperança para o futuro. O empresário falou também do trabalho que desenvolve junto da fundação, com foco nos grupos demográficos mais frágeis, menos educados e mais expostos à perpetuação da pobreza.   

Após o ciclone Idai, quais considera que são as maiores necessidades no curto prazo?

Moçambique sofreu uma das piores catástrofes desde a independência. O ciclone Idai destruiu quase 90 por cento da segunda maior cidade de Moçambique, a Beira. Mas não só. A zona centro do país, Sofala e Manica, sofreu danos que demorarão anos a serem reparados. O ciclone vai deixar marcas e continua a deixar marcas no nosso país.

Neste momento, depois do ciclone, vemos um trabalho muito concertado do Governo para a recuperação e ajuda das populações, que foi bastante positivo, no sentido de tentar minimizar o impacto e o efeito negativo que poderá trazer à vida das pessoas.  

O ciclone Idai fez pelo menos 603 vítimas mortais só em Moçambique e mais de 1600 pessoas ficaram feridas, segundo o mais recente balanço.
Isso foi positivo. E foi o momento alto daquilo que podemos chamar de sociedade civil. A sociedade civil teve uma intervenção inovadora e única desde a independência do nosso país.  

Tivemos também um apoio da comunidade internacional, principalmente aqui de Portugal, um apoio muito importante, que está a ajudar sobremaneira a minimizar o impacto deste ciclone no nosso país.

Falou desse apoio da comunidade internacional. Ainda na semana passada, uma responsável da ONU alertava que apenas 11 por cento tinha sido dado em relação à ajuda necessária. Mas houve bastante ajuda nestas últimas semanas porque houve também uma maior mediatização. Qual será a forma de assegurar que a ajuda continua a chegar?

Acho que a ajuda tem estado à altura, na medida do possível. Mas o grande drama, para mim, não está na ajuda primária. Está na reabilitação das pessoas, em as pessoas acreditarem que poderão arregaçar as mangas, pensarem que, se estão vivas, é para enfrentarem aquilo que a vida lhes der como desafio.  

Garantir a esperança, garantir a capacidade de acreditarem em si próprias e que poderão fazer a diferença, e de se ajudarem a si próprias também. Isto sem deixar de reconhecer que a ajuda primária nos alimentos, nos cuidados de saúde, devido aos problemas da malária, cólera e outras doenças, essa ajuda vai ser muito importante para minimizar os efeitos negativos. Mas a ajuda na reabilitação, no drama da pessoa, essa para mim é uma ajuda muito importante que se deverá seguir nesta segunda fase.  

Que outras prioridades existem no longo prazo, para recuperar desta catástrofe?  

Há várias dimensões. A questão das infraestruturas, a questão da reabilitação das escolas, dos hospitais, das estradas, das pontes, tudo isso é importante. Mas volto a frisar que, a longo prazo, e de uma forma estratégica, a prioridade é ajudar as pessoas, são elas que fazem a diferença.

São elas que, por si só, podem ajudar a mitigar estes problemas infraestruturais, ou das suas residências, das suas zonas de cultivo.

Se as pessoas estiverem motivadas e se tiverem capacidade e tiverem instrumentos próprios, elas fazem a diferença. A ajuda no ser humano, para mim, é muito mais importante e é muito estratégica.  

Mas não estou a minimizar a ajuda nas infraestruturas, digo apenas que o foco na pessoa humana é muito importante.

Como é que as instituições internacionais, o Governo moçambicano e outros Governos que pretendam ajudar podem ajudar as pessoas, diretamente?

Neste momento estão focados naquilo que é estagnar ou parar com o sofrimento atual. Quer na questão da saúde, na alimentação, a questão da habitação. Obviamente que não é fácil fazer tudo ao mesmo tempo. Talvez não seja estratégico tentar fazer tudo ao mesmo tempo.  

Acho que o Governo está a fazer o seu papel. A sociedade civil e a comunidade internacional estão a fazer bem o seu papel. O Governo aprovou esta semana a criação de um gabinete local naquela zona para haver um plano com o impacto a longo prazo da reconstrução daquela zona que foi devastada pelo ciclone Idai. E isso foi a forma que o Governo encontrou e todos poderão integrar-se neste plano.

Quero deixar a indicação de que vai realizar-se uma grande conferência de doadores, para todos os que queiram apoiar Moçambique. Está prevista para o próximo mês e será em Moçambique, na cidade da Beira. Esse também será um passo importante que o Governo está a dar para que possamos ter oportunidade e ter instituições, privadas ou das organizações da sociedade civil, participarem de uma forma concertada e organizada. Se não estivermos organizados e concertados, com uma visão comum, esta ajuda pode ser dispersa e inútil e não ter o impacto desejado.  

Moçambique é um dos países do mundo com maior pobreza. Agora, com dificuldades acrescidas depois do ciclone, Moçambique tem ainda outro grande desafio em mãos, relacionado com o extremismo, com as mortes que se têm registado. De que forma é que o país pode colmatar estes problemas?

É fundamental para quem está de fora do país perceber que a questão da mediatização desse extremismo pode dar a impressão que Moçambique está com problemas. Mas é um extremismo localizado numa zona específica. Está a haver um trabalho muito sério, quer a nível das instituições responsáveis em acabar com isso. Estamos a sentir que está a haver um trabalho de mitigação desse flagelo do extremismo no nosso país.  

Mas quero destacar que o país está a andar, o país está a funcionar. Esse extremismo está localizado uma zona específica no centro. Talvez a forma como sai na imprensa pode dar a entender que é no país todo. Não é verdade.  

O país está a circular, os investimentos estão a andar, a questão da circulação das pessoas está a acontecer. É um problema grave, que tem de ser resolvido, mas que acho que está a ser resolvido corretamente.

Na abertura desta conferência em que participou, a secretária-geral ibero-americana, Rebeca Gryspan, disse que haverá mais falantes de português em África que no Brasil no final do século XXI. Qual é que será o papel de Moçambique nesse futuro em que a língua portuguesa vai prevalecer no continente africano?

A questão não é só da língua portuguesa per si. O que tem de se olhar aqui é os países que têm uma relação cultural e linguística comum, como é o caso de Portugal, Brasil, Timor-Leste, Cabo verde, São Tomé, Angola. É olhar para como esses países podem criar sinergias positivas que possam alavancar o desenvolvimento dos seus respetivos países. Essa é a questão de fundo.  

Moçambique está localizado numa zona geográfica que engloba uma comunidade económica que tem um potencial de 250 milhões de habitantes. Essa comunidade é uma oportunidade para Portugal e para outros países. 

Através de Moçambique e de Angola, pode haver benefícios de escala e de desenvolvimento da região, onde as empresas podem desenvolver os seus projetos. Essa é que é a questão principal: Olharmos para como é que podemos capitalizar o nosso posicionamento geográfico para que os países da comunidade da língua portuguesa possam beneficiar desse posicionamento.

E isso já está a acontecer. Há empresas portuguesas que estão em Moçambique, estabelecidas em Moçambique, e que neste momento estão a exportar para os países da região, beneficiando do que chamamos de “free zone”, sem tarifas aduaneiras. O caso da Sumol-Compal é um exemplo. Outras empresas poderão até ganhar escala. É um mercado com milhões de pessoas poderá também ter impacto nos países que falam português, se quiserem se internacionalizar fazendo uso da comunidade de língua portuguesa.

A sua área de especialização é a área dos media. O Daniel é uma das principais figuras dos media em Moçambique, mas também tem apostado no desenvolvimento do país com o trabalho da sua fundação. Qual é o cenário dos media em Moçambique e como é que ele pode ter impacto no desenvolvimento do país?

Acho que o nosso papel como grupo de media é de informar, entreter e educar com qualidade. Esse é o nosso papel e temos apostado nisto. Somos um grupo de referência em Moçambique, um grupo com um posicionamento estratégico bem conseguido.

Continuamos a achar que a utilização das tecnologias deve ser a base de disseminação da informação em Moçambique. É necessário que o país invista em infraestruturas, em fibra ótica, em redes de telefonia móvel, para que a informação chegue de forma rápida aos cidadãos e ajude as pessoas a terem acesso ao conhecimento. Isso é o que estamos a fazer e isso vai ajudar ao desenvolvimento do país. 

As tecnologias são um fator fundamental na mitigação dos problemas que o país tem. Temos um país com um desafio enorme devido ao dividendo demográfico. Oitenta por cento da população é jovem, e isso é um desafio enorme: o jovem que não tem emprego, que não tem educação, que sofre de falta de oportunidades.

A tecnologia, a comunicação social, poderá ser um fator importante na ajuda dessa juventude a conhecer o mundo, a aprenderem as oportunidades que podem, através de benchmarking internacional. Criar empreendedores, start-ups, que possam minimizar os efeitos de desemprego que os jovens enfrentam.

Falou no problema do desemprego em Moçambique. Que outros problemas é que Moçambique tem em mãos neste momento?

Moçambique tem problemas gravíssimos, por exemplo o problema da desnutrição crónica. Quando as pessoas não têm capacidade de ter uma saúde e bem-estar devido à desnutrição, não podem absorver o conhecimento. Também tem problemas na questão da instrução, a questão da rapariga. 

Em Moçambique, a rapariga enfrenta grandes desafios devido à exclusão social que sofre. A rapariga que deixa de ir à escola por causa de gravidez prematura, rapariga que deixa de ir à escola talvez por questões de saúde, quando atinge a altura da menstruação. Elas têm medo, por falta de instrumentos de educação para elas perceberem com tratar disso. Também devido ao papel da rapariga nos trabalhos domésticos, muitas vezes imposta pelos familiares. São muitos desafios. Costumamos dizer em Moçambique: apostar na rapariga é apostar no país.

Investindo na rapariga investimos no desenvolvimento do país. É nesse sentido que coloco a rapariga como um dos pontos fortes no desenvolvimento do país, um dos pontos fulcrais nas políticas de desenvolvimento, criação de emprego, educação, e na formação, e na capacitação, para que possamos mitigar os desafios na sociedade rural para a rapariga.

Outro problema em Moçambique é o do fortalecimento das instituições. Moçambique está a crescer, está a receber investimento estrangeiro. É preciso que tenha capacidade de ir fortalecendo as instituições, porque são elas a pedra basilar para que uma sociedade democrática cresça de uma forma sustentável.

Mas volto a falar da questão da saúde, da educação, é fundamental para que o país cresça e cresça de uma forma sustentada.

Quer destacar alguma iniciativa empresarial para mitigar os problemas de que falou? 

Nas nossas empresas, nós temos uma fundação. Nessa fundação o nosso objetivo é também apostar na rapariga, investir na educação da rapariga e investir na disseminação de informação que possa ajudar essa rapariga a ter instrumentos para a sua autoestima e de aprendizagem, para se defender desses problemas que falamos há pouco. E a fundação FUNDASO, do grupo SOICO, está a funcionar nesse sentido. 

A fundação atua em três pilares fundamentais. A área da educação, a área da saúde e bem-estar, e a área do ambiente e desenvolvimento sustentável. São as três áreas que a fundação está a atuar e que está a investir os seus recursos, de modo a focalizar-se em zonas menos favorecidas e em pessoas também menos favorecidas, para que possam ter oportunidades iguais.

Qual é a vossa ação concreta junto da população? 

Neste momento estamos a desenhar projetos específicos. Já temos um projeto, chamado “Futuro Esperança”, que queremos atuar nas crianças necessitadas, com desnutrição crónica, crianças que não têm identificação, crianças que têm doenças raras ou doenças que não possibilitam que se exponham à sociedade. 

Queremos atuar também na conservação do ambiente. Temos projetos específicos no desenvolvimento sustentável, como o MOZEFO, Mozambique Economic Forum, MOZGRO, na área do agro-negócio, MOZTEC, na área da tecnologia. A fundação tem organizado eventos nessas áreas todas, e também na saúde e bem-estar. Vamos tentar potenciar aquilo que chamamos de educação cívica, como viver de forma saudável nas condições em que as pessoas estão.
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