Nicarágua. Regime de Daniel Ortega acusado de violação sistemática dos direitos humanos

por Graça Andrade Ramos - RTP
O Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, discursa perante a Assembleia Popular de Cuba em dezembro de 2022 Reuters

Assassínios arbitrários, prisões e tortura, perseguição religiosa e política e violação em larga escala dos direitos humanos. As denúncias contra a deriva crescentemente autoritária do regime sandinista de Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, têm-se acumulado em relatórios internacionais e isolado cada vez mais o país. A ONU fala mesmo em crimes contra a humanidade e apela a sanções.

Nos últimos dias diversos acontecimentos tornaram evidente a situação trágica que se vive na Nicarágua.

Na terça-feira, os Estados Unidos apontaram o clima diário de medo e de insegurança que se vive no país, com a suspensão de direitos civis e perseguição a jornalistas e a opositores políticos e suas famílias, detenções arbitrárias sob acusação de "traição à pátria", assassínios policiais não investigados, repressão brutal de protestos e risco de vida real nas prisões sobrelotadas.

O relatório do Departamento de Estado dos EUA sobre os direitos humanos na Nicarágua, aponta ainda o assalto do partido no poder, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, a todo o sistema representativo estatal, incluindo a nível local. "A Nicarágua tem um sistema político altamente centralizado e autoritário, dominado pelo Presidente Daniel Ortega Saavedra e pela sua mulher, a vice-presidente Rosário Murillo Zambrana", refere.

O poder judicial do país está "gravemente comprometido", as forças de segurança e militares estão dominadas por lealistas ao Presidente e agem brutalmente com impunidade, e a liberdade de imprensa e de expressão é vítima de censura, acrescenta o documento.

Também a ONU, no seu relatório apresentado a dois de março último ao Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, pela secretária-geral adjunta da ONU, Ilze Brands Kehris, referiu a degradação "dos direitos humanos na Nicarágua" desde Dezembro de 2022.

O Grupo de Especialistas em Direitos Humanos da Nicarágua considerou mesmo a violação generalizada dos direitos humanos no país, por razões políticas, como crimes contra a humanidade, entre os quais "assassínio, detenção, tortura, incluindo violência sexual, deportações e perseguição motivada politicamente".

No seu relatório, o Grupo apelou a comunidade internacional a impor sanções contra instituições e indivíduos envolvidos em tais actos. Estes abusos, "não são um fenómeno isolado mas o produto do desmantelamento deliberado das instituições democráticas e a destruição do espaço civil e democrático" apontou o relatório da ONU.

O especialista independente Jan Simon afirmou mesmo que "a população nicaraguense vive no medo das ações que o próprio Governo pode exercer contra ela".
Santa Sé forçada a abandonar a Nicarágua
O exemplo mais evidente da perseguição abrangente exercida no país contra os dissidentes e opositores do regime é o caso da Igreja Católica.

No sábado passado, no corolário de anos de perseguição, a Santa Sé encerrou a sua representação diplomática em Manágua, com o encarregado de Negócios da Nunciatura, Monsenhor Marcel Diouf, a abandonar o país.

A saída já era esperada, depois do Papa Francisco ter apontado o "desequilíbrio da pessoa que lidera a Nicarágua", numa entrevista recente concedida ao Infobae, um site argentino.

O Santo Padre referiu-se ao regime de Ortega como uma "ditadura grosseira" e comparou-a à tirania soviética de 1917 e à de Hitler, em 1935.

As críticas do Papa Francisco foram o golpe de misericórdia nas relações de crescente afastamento entre os dois Estados. As autoridades pediram o encerramento definitivo da Nunciatura, que se deu dia 17 de março de 2023.

A perseguição do regime sandinista à Igreja Católica do país não é recente. Em 2019 o bispo auxiliar de Manágua. D. Sílvio José Báez, foi forçado ao exílio sucedendo-se, em março de 2022, a expulsão do núncio apostólico, ou embaixador da Santa Sé, D. Waldemar Stanisław Sommertag.

Três meses depois sucederam-se os encerramentos de canais de televisão, ligados a dioceses e à Conferência Episcopal, e de centenas de ONG’s, incluindo a congregação fundada pela Madre Teresa de Calcutá, a Associação das Missionárias da Caridade.

Em fevereiro de 2023 surgiu a condenação a 26 anos de prisão do bispo de Matagalpa, D. Rolando Álvarez, detido meses antes apesar de fortes protestos e após um cerco policial à residência episcopal. O bispo, um dos maiores opositores públicos de Daniel Ortega, foi acusado de "traição à pátria", tendo-lhe sido retirada a cidadania e os direitos políticos "para toda a vida".

A perseguição a D. Rolando Álvarez passou igualmente pelo encerramento de rádios e de grupos civis ligados à Igreja Católica e pela proibição dos padres mencionarem D. Rolando nas suas homilias pedindo a sua libertação. À organização católica Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), os fiéis afirmaram que os "sermões" de alguns sacerdotes estavam a ser "gravados" e que "os católicos têm medo que os seus padres e bispos possam ser presos e deportados".

Duas semanas depois da condenação de D. Rolando, as autoridades sandinistas decretaram a proibição da celebração de qualquer procissão nas ruas durante a Quaresma e a Semana Santa. Antes tinham ainda forçado o encerramento de duas universidades católicas, a de São João Paulo II e a Autónoma Cristã da Nicarágua e também da Fundação Mariana de combate ao Cancro e de dois escritórios da Caritas.

Perante a pressão das autoridades, as religiosas da Congregação das Irmãs Trapistas da Nicarágua informaram dia 1 de março que abandonavam “voluntariamente” o país rumo ao Panamá, acompanhadas de um outro grupo de religiosas do Porto Rico.
Crimes contra a humanidade
De acordo com o relatório do Departamento de Estado dos EUA, a lista de crimes do regime da Nicarágua, baseada em "relatos credíveis", é longa e inclui "as piores formas de trabalho infantil", "violência e perseguição de género" e de pessoas identificadas com grupos LGBT, "assassínios arbitrários e ilegais, incluindo extrajudiciais", "tortura e tratamento ou castigos cruéis, inumanos e degradantes nas prisões, infligidos pelos guardas prisionais ou por forças paramilitares", a par de condições "duras e ameaçadoras de vida", perante a indiferença e com aparente conivência do regime.

A liberdade de expressão e de imprensa está severamente limitada no país, passando por ameaças a jornalistas e censura. A independência do poder judiciário é considerada "gravemente comprometida", tendo-se as detenções sumárias sem julgamento tornado recorrentes ao abrigo da figura "traição à pátria".

O documento aponta a existência de prisioneiros políticos e a perseguição das famílias e opositores e de indivíduos mesmo no estrangeiro, com a proibição de regresso ao país. Em fevereiro, os Estados Unidos denunciaram a remoção da cidadania nicaraguense a 94 opositores políticos de Ortega.

"Grupos de oposição pró democráticos, defensores de direitos humanos, líderes de empresas privadas, o clero católico e outros atores religiosos e grupos civis afiliados com a Igreja Católica" são igualmente alvo de perseguição, sem que as autoridades investiguem ou tentem impedir tais ações, refere o relatório.
Abraço de ferro
Líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional, Daniel Ortega liderou a Nicarágua entre 1979 e 1990, tendo regressado ao poder em 2006, onde se mantém depois de sucessivas reeleições em 2011, 2016 e 2021.

Durante estes anos, a Assembleia nacional modificou a Constituição nacional e legislação de forma a garantir o controlo da maioria das instituições nacionais pelo partido de Ortega, em detrimento do estado de direito democrático.

A mais recente reeleição do Presidente foi conseguida à custa da detenção de 40 opositores e da proibição de partidos de oposição. A legitimidade do escrutínio foi questionada pela maioria da comunidade internacional.

O relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos de 21 de março de 2023, sobre a falência dos direitos humanos na Nicarágua, referiu especificamente que o "Presidente Ortega concedeu a si mesmo um quarto mandato consecutivo nas eleições de 2021", denunciando "fraude eleitoral generalizada" e obstáculos à presença de observadores internacionais.

As eleições foram descritas como "gravemente deficitárias, sem credibilidade e caracterizadas por uma abstenção histórica".

"As eleições de 2021 expandiram a maioria do partido do poder", a Frente Sandinista de Libertação Nacional, no embalo de alterações à Constituição aprovadas em 2011, "que eliminaram os limites a mandatos e a reeleição de responsáveis oficiais e líderes locais", referia ainda o documento.

"O partido no poder consolidou o seu poder nas eleições municipais de novembro, nas quais a maioria dos eleitores preferiu não participar, tendo ganho em todos os 153 municípios" da Nicarágua, denunciou ainda o Departamento de Estado.

Daniel Ortega apertou o controlo do país sobretudo a partir dos grandes protestos pacíficos contra o seu regime em 2018, que o Presidente denunciou como uma tentativa de golpe de estado e que foram reprimidos com violência, resultando em pelo menos 355 mortes.

"O Governo não tomou quaisquer medidas para identificar, investigar ou punir os responsáveis que cometeram abusos dos direitos humanos, incluindo os responsáveis por pelo menos 355 mortes e centenas de desaparecimentos durante os protestos democráticos de 2018", acusou o Departamento de Estado norte-americano.

O Governo de Ortega não só "não aborda questões de corrupção generalizada", como protege e garante "a impunidade aos abusadores de direitos humanos que lhe são leais", denuncia ainda o documento.

A Nicarágua mantém-se como o segundo país mais pobre do hemisfério ocidental, com desigualdades sociais significativas entre a população das cidades e das zonas rurais. Em 2020, dois milhões de nicaraguenses, ou 30 por cento da população, viviam abaixo do nível de pobreza estabelecido pelas Nações Unidas.
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