Novo Governo alemão. O que se pode esperar da "Coligação Semáforo"?

por Inês Moreira Santos - RTP
EPA

O Partido Social Democrata (SPD), os Verdes, e o Partido Liberal Democrata (FDP) anunciaram, na quarta-feira, um acordo de coligação voltado internamente para a luta contra a pandemia e a crise climática, dois pontos altos daquela que já é considerada a Era pós-Merkel. Olaf Scholz, vencedor das eleições gerais na Alemanha, avançou que o acordo ainda tem de ser aprovado pelos três partidos "nos próximos dez dias", mas alguns dos planos reformistas da denominada "coligação Semáforo" passam pelas energias renováveis, o salário mínimo nacional e a legalização da canábis para uso medicinal.

"O 'semáforo' está aqui", disse Olaf Sholz, demonstrando que foi possível chegar a uma coligação difícil. "Não é um Governo de um mínimo denominador comum, mas de grande impacto".

Oito semanas depois das eleições, que decorreram a 26 de setembro, os três partidos com as cores verde, amarela e vermelha - característica que dá o nome à chamada "Coligação Semáforo" - apresentaram o acordo oficial de coligação, que deverá ainda ser votado pelas três forças políticas. Numa conferência de imprensa, o ainda ministro das Finanças e vice-chanceler alemão manifestou a sua confiança na coligação para apontar o caminho certo à Alemanha.

"Queremos ousar fazer mais progressos", revelou, referindo-se a um aumento do salário mínimo para 12 euros por hora e ao desenvolvimento de uma tecnologia de ponta feita na Alemanha.

Se o acordo for aprovado, Scholz, apontado como futuro chanceler alemão, já indicou algumas políticas que serão seguidas.

Ainda sem planos oficiais definitivos, uma coisa é certa: a proteção climática, um dos temas mais delicados durante as negociações - que começaram oficialmente a 21 de outubro, depois de reuniões exploratórias bem-sucedidas - vai abranger todas as áreas de uma forma transversal. Da indústria à construção, passando pela habitação e agricultura, este tópico está presente no acordo, incluindo a previsão do cumprimento do Acordo Climático de Paris em relação à limitação do aquecimento global.

O acordo, que foi negociado ao longo de dois meses e se estende por 177 páginas, ainda terá de ser aprovado por cada um dos três partidos - o que se prevê que aconteça nos próximos dias.
Ambiente e crise climática – a prioridade
A expansão das energias renováveis, para que estas não continuem a ser "um complemento", mas sim de "interesse público" foi um dos pontos focados na conferência de imprensa de apresentação da coligação. A proteção climática e a transição para as "energias verdes" é, aliás, uma das bandeiras defendidas pelos três partidos.

Ao anunciar um novo "grande Ministério" que junta o Clima, a Energia e a Economia, assim como os ministérios do Ambiente e da Agricultura, o Partido Os Verdes pretende transformar a agenda ambiental da Alemanha de uma forma moderna e mais unificada.

Segundo o projeto de acordo apresentado, na quarta-feira, será encerrada a última central termoelétrica a carvão do país até 2030 - oito anos antes do previsto pelo Governo cessante. Além disso, o novo Governo pretende que, também até 2030, 80 por cento da energia usada na Alemanha seja extraída de fontes renováveis.

A produção de energia a gás terminará, de acordo com o projeto do "Semáforo", até 2040, e as caldeiras a gás serão proibidas em edifícios novos, sendo os existentes substituídos até 2030.

Também a nível dos transportes haverá mudanças. Embora ainda sem confirmação, prevê-se que sejam os liberais a assumir esta pasta ministerial e a pôr fim à circulação dos veículos com motor de combustão, avança o Guardian. A coligação pretende, assim, aumentar o transporte ferroviário de carga em 25 por cento e contar com, pelo menos, 15 milhões de carros elétricos nas ruas até 2030.

Está previsto, ainda, que aumentem os impostos sobre as emissões de dióxido de carbono sobre os combustíveis e as taxas no tráfego aéreo. Os futuros governantes alemães descartam, além do mais, o regresso da energia nuclear no país e querem, segundo o projeto, usar 3,5 por cento do PIB para investimentos em investigação e desenvolvimento, de forma a acelerar a transição para uma economia neutra em carbono. Afinal o principal objetivo, apontaram os partidos, é alcançar a neutralidade de carbono até 2045.
Covid-19, vacinação e controlo da pandemia
Apesar de as questões climáticas serem o ponto chave em todo o programa da coligação, a pandemia da Covid-19 continua a ser a questão mais urgente, considerando o novo aumento de casos na Alemanha e a baixa taxa de vacinação.

Durante a conferência de imprensa, Scholz alertou para os números alarmantes do novo coronavírus no território alemão, sublinhando que “cada dia que passa há um novo recorde”. E apelou para o cumprimento das medidas mais recentes impostas pelo executivo em funções e para uma maior adesão à vacinação.

O apontado como sucessor de Angela Merkel defendeu a criação de uma equipa, ou “gabinete de crise”, que analisará em conjunto com especialistas a evolução diária das infeções, referindo-se, depois, ao projeto de lei para impulsionar a vacinação voluntária em setores profissionais essenciais, como pessoal de saúde e de atendimento a pessoas vulneráveis.

Também o líder dos liberais, Christian Lindner, apelou à redução de contactos, “limitando-os ao necessário” para travar a nova vaga da pandemia de covid-19 que tem afetado duramente a Alemanha.

Contudo, durante as negociações da coligação, a gestão da pandemia foi a questão que as três partes pareciam menos dispostas a responder. De acordo com a imprensa alemã, os partidos têm tentado passar a pasta da Saúde de uns para os outros, uma vez que quem assumir esse cargo terá de, possivelmente, responsabilizar-se pela potencial obrigatoriedade da vacina, sendo quase impossível consegui-la pacificamente.
Aborto e canábis
Mas a nível da saúde há mais reformas propostas por esta coligação.

Os partidos prometeram também abolir uma lei sobre o aborto (desde uma alteração em 2019 que as clínicas podem informar que fazem o procedimento, mas não lhes é permitido dar qualquer informação adicional). Isto é, os médicos e as instituições de saúde deixarão de ser proibidos de informar e anunciar que esse é um dos serviços que têm disponíveis.

Também foi decidido legalizar a canábis para fins recreativos, incluindo a comercialização em lojas autorizadas - uma medida muito defendida pelos liberais e pelos verdes. O objetivo é combater o comércio ilegal, proteger os clientes e dificultar o acesso da substância a menores de idade.

Mas os três partidos também pretendem investir mais em ações de sensibilização sobre os efeitos da toma recorrente desta substância.
Economia com vista à modernização
Para além da Covid-19 e da descarbonização, o novo Governo tem mais desafios, como o salário mínimo, o envelhecimento da sociedade e a transição digital, por exemplo. O aumento do salário mínimo interprofissional – dos atuais 9,5 euros por hora para 12 – e a criação de um Ministério da Habitação são dois pontos essenciais do programa social-democrata.

“Estamos diante do grande desafio de uma crise de saúde. Mas também enfrentamos outros desafios persistentes que temos de combater, como a digitalização e a modernização do país”, disse o líder liberal, Christian Lindner.

Já nas palavras de Olaf Scholz o objetivo é “modernizar o país, construir uma indústria neutra para o clima com tecnologia de ponta 'Made in Germany'”, segundo o que o acordo chamou de “economia de mercado socioecológica”.

“A primeira potência industrial da Europa vai dotar-se de um novo Governo, uma aliança sem precedentes, cujo propósito é modernizar este país, o que exige um grande esforço”, reforçou, por seu lado, o co-líder dos Verdes, Robert Habeck.

O Governo vai, então, assumir a promessa da campanha de Scholz, de aumentar o salário mínimo nacional para 12 euros por hora - uma medida que afetará cerca de dez milhões de pessoas, especialmente nas regiões do nordeste e no vale do Ruhr, onde o SPD conquistou muitos eleitores em setembro.

Será criado um Ministério da Habitação e prevê-se que sejam construídas 400 mil novas habitações por ano para combater a escassez de residências no país e o valor elevado das rendas – sendo que um quarto destas habitações será destinada a famílias de rendimentos mais baixos.

Vai ser ainda restabelecido o chamado "freio da dívida" até 2023 - mecanismo que tinha sido suspenso para permitir gastos públicos extras durante a pandemia.
Relações com a UE
Em relação à política externa, Scholz sublinhou que o novo Governo irá defender uma “Europa soberana”, cultivando as relações com a França e os Estados Unidos. Quanto à relação com a União Europeia, a prioridade é o crescimento económico e a sua sustentabilidade, bem como a defesa do Estado de Direito, que são as “traves-mestras” do acordo de coligação.

Nesse sentido, o acordo prevê que o futuro Governo alemão vá defender que as regras fiscais dos 27 sejam orientadas para os objetivos de “garantir o crescimento, manter a sustentabilidade da dívida e garantir investimentos sustentáveis e em linha com o combate às alterações climáticas”.

“O aprofundamento das regras de política fiscal deve basear-se nesses objetivos para fortalecer a eficácia diante dos desafios do momento”, defendem os três partidos.

“Queremos fortalecer e aprofundar a união económica e monetária. O Pacto de Estabilidade e Crescimento [PEC] mostrou a sua flexibilidade”, acrescentaram os partidos alemães, que especificam que este instrumento “deve ser mais simples e transparente, também para reforçar a sua aplicação”.

Na declaração de intenções, a coligação refere-se aos fundos europeus para as consequências da pandemia e considera, em particular, que o programa “Next Genaration” (“Próxima Geração”) “é um instrumento limitado em termos de tempo e quantidade”.

“Queremos que o programa de reconstrução obtenha uma recuperação rápida e, com uma visão de futuro visionária, avance depois de passar a crise na Europa”, sustentam, defendendo que essa medida “é também do interesse básico alemão”.

No acordo, os três partidos defendem também que a estabilidade de preços é “fundamental” para a prosperidade da Europa, garantindo, por outro lado, “levar muito a sério” as preocupações relacionadas com o aumento da inflação.

O SPD (social-democratas), FDP e os Verdes afirmaram ainda que o Banco Central Europeu (BCE) “pode exercer melhor o seu mandato”, que deverá estar empenhado sobretudo no objetivo da estabilidade de preços, “quando a política orçamental da UE e dos Estados-membros cumprir as suas responsabilidades”.

Ainda na esfera externa, os social-democratas, liberais e ambientalistas dedicam grande parte da sua declaração ao respeito pelo Estado de Direito na UE, depois de, nos últimos meses, as instituições europeias terem atuado contra as violações cometidas em países como a Polónia e a Hungria.

“Instamos a Comissão Europeia, enquanto guardiã dos tratados, a usar e fazer cumprir os instrumentos existentes sobre o Estado de Direito de forma mais coerente e rápida, incluindo os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)”, sustentam.

E asseguraram que, no Conselho da UE, a Alemanha irá “aplicar e desenvolver” de forma “mais consistente” os instrumentos existentes de defesa do Estado de Direito, incluindo o mecanismo de condicionalidade em relação ao desembolso de fundos europeus para os países que violam esses princípios.
Ministérios distribuídos pelas três forças políticas

Ainda não foi confirmado quem assume cada Ministério, mas a imprensa alemã avança já com algumas previsões.

Os Verdes, terceiro partido mais votado nas eleições alemãs, deverão assumir cinco ministérios e o cargo de vice-chanceler no futuro Governo. Já os liberais do FDP ficam com quatro pastas, entre elas a das Finanças, que deverá ser entregue a Christian Lindner, líder da força partidária.

O SPD, a força mais votada nas legislativas de setembro, com 25,7 por cento dos votos, ficará na liderança do novo Governo, com Olaf Scholz, atual ministro das Finanças e vice-chanceler, como chanceler. A cargo dos social-democratas deverá ficar também o Ministério da Saúde, que assume um papel fundamental durante a atual pandemia de covid-19.

De acordo com Der Spiegel e a televisão pública ARD, o recém-criado Ministério da Habitação, tal como as pastas da Defesa, Interior, Trabalho e Assuntos Sociais, entre outras, num total de sete ministérios, serão controlados pelo SPD.

Debaixo da alçada dos Verdes, que conseguiram 14,8 por cento nas legislativas, ficará um ministério que juntará as áreas da Economia e do Ambiente, provavelmente atribuído a Robert Habeck, um dos líderes do partido ecologista, segundo a agência EFE. A outra líder dos Verdes, Annalena Bärbock, ficará com os Negócios Estrangeiros e provavelmente com uma vice-chancelaria, avança ainda a mesma agência.

Já o FDP, que teve um resultado de 11,5 por cento nas últimas eleições, além das Finanças, consegue as pastas da Justiça, Transportes e Educação.

O acordo, apresentado na quarta-feira, segue agora para votação dos partidos - o que deve acontecer num congresso extraordinário a 4 de dezembro.

Os três partidos querem apresentar Olaf Scholz, candidato do SPD e vencedor das eleições legislativas, como chanceler a 6 de dezembro, dia de São Nicolau (Nikolaustag), celebrado por muitos na Alemanha.

Caso esta aliança "semáforo" venha a confirmar-se, o novo executivo passa a substituir a "grande coligação", formada pelo SPD e pela União Democrata-Cristã (CDU), força política de Angela Merkel que sairá da liderança do país após 16 anos no poder.


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