Ossos com dois milhões de anos indicam início da posição bípede humana

por Graça Andrade Ramos - RTP
Pormenor da reconstrução de A.sediba por Elizabeth Dayers, Elisabeth Daynes / S. Entressangle

Os ossos fossilizados extremamente bem preservados, encontrados perto de Joanesburgo, África do Sul, são de uma fêmea pertencente a uma espécie hominídea denominada Australopitecos sediba e lançam uma nova luz sobre a evolução da locomoção primata quadrúpede para a locomoção bípede.

O estudo liderado pelo paleoantropólogo Scott Williams, da Universidade de Nova Iorque, concluiu que o espécime MH2 – Malapa Hominin 2 - seria capaz de se erguer e de andar confortavelmente sobre os dois membros inferiores apesar de outros aspetos indicarem que continuaria a passar muito tempo a trepar e a movimentar-se nas árvores.

Vértebras, joelho e tornozelo do MH2 “demonstram provas claras de locomoção bípede” refere a investigação publicada na eLife. Em particular, a articulação do tornozelo e o ângulo do fémur revelam traços inteiramente humanos.
O bipedismo humano – outros animais, de aves a répteis, adotaram o equilíbrio em duas patas – desenvolveu-se graças à curvatura avançada da seção inferior da espinha dorsal, que possibilita a postura ereta e difere da de outras espécies de macacos, como os chimpanzés, os orangotangos e os gorilas que, não a possuindo, se movem no solo apoiados nos quatro membros.
A coluna bem preservada do exemplar de A. sediba indica ainda uma curvatura evidente, mais do que qualquer outro fóssil humano primitivo, e apoia a hipótese de que a espécie estava bem adaptada a caminhar sobre as duas pernas.

O que não significa que a espinha do MH2 fosse já igual à dos humanos modernos. Apesar de “apresentar no geral uma forma humana”, as vértebras cervicais da coluna apresentam características diferentes que apoiam a hipótese de uma musculatura poderosa do tronco, a omoplata similar à dos orangotangos e os úmeros alongados como os de outras espécies de macacos, indicativas de grande facilidade em trepar e se movimentar entre os ramos e coincidentes com os fósseis encontrados de um membro superior.

De acordo com os estudos dos primeiros fósseis encontrados, a parte inferior da espinha dorsal apresentava uma curvatura menos acentuada do que a do Homo sapiens mais próxima do extinto Homo neandertalensis, “de certa forma intermédia entre as colunas vertebrais do homem moderno e dos grandes macacos”. Em MH2, depois da descoberta de novas vértebras, percebe-se que a curvatura da espinha era semelhante às das mulheres modernas indica a nova pesquisa.

À esquerda as ossadas de MH2, à direita reconstrução de A.sediba por Elizabeth Daynes Foto S. Entressangle, NYU
Entre as árvores e o chão
A locomoção ereta humana poderá ter sido tentada várias vezes ao longo da evolução primata, desde que provasse ser vantajosa para a sobrevivência e em resultado de uma adaptação às características naturais envolventes, como pradarias e escassez de árvores.

Os fósseis de A. sediba indicam que os seus elementos teriam provavelmente acesso ao melhor dos dois mundos, o solo e as árvores. A espécie, extinta, viveu há cerca de dois milhões de anos e foi descrita pela primeira-vez em 2010 por Lee Berger e pela sua equipa da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo.

Os primeiros fósseis foram descobertos em 2008 por um filho de Berger na Área Fóssil das grutas de Malapa perto de Joanesburgo, considerada berço da humanidade, mas os fragmentos estavam demasiado incompletos para ser possível determinar se a espécie era bípede ou quadrúpede.

A descoberta gradual dos restos do MH2, no mesmo local e até 2015 revelou uma imagem muito mais completa.
Um estudo de 2011 já tinha revelado ainda que os A. sediba possuíam mãos com um polegar relativamente longo e dedos curtos similares aos dos humanos modernos, indicativos da habilidade de criar instrumentos em pedra complexos.

Os antropólogos examinaram os restos de dois indivíduos parcialmente preservados, MH1, uma criança a quem chamaram Karabo - "resposta" na língua Tswana, e MH2, uma fêmea adulta, tendo determinado tratarem-se de Australopitecus, os primeiros descobertos na África do Sul desde 1938. A equipa chamou à fêmea Issa, que significa “protetora” em língua Swahili.

Os restos de ambos foram encontrados entre fragmentos de rochas dinamitadas há cerca de um século por mineiros que procuravam extrair calcário da área. Os mineiros usaram os blocos para construir uma estrada e, na última década, Berger e os seus colegas têm vindo a escrutiná-los.

Num deles conseguiram-se extrair quatro vértebras da parte inferior dorsal da fêmea, além do sacrum que liga a espinha à pélvis, o que possibilitou a reconstrução da maior parte da zona inferior lombar de Issa.

Depois de juntar as vértebras, a equipa de Williams concluiu agora que a espinha dela era curva, descrevendo um S suave quando vista de lado, uma característica humana que mantém a massa corporal centrada sobre a pélvis para locomoção bípede eficaz.

Outros restos identificados aguardam escavação e análise para aprofundar o estudo da espécie, já examinada quanto ao crescimento e desenvolvimento, patologias, traumas ou dieta – sobretudo frutas, folhas e plantas. Em 2010, Berger indicou que o A. sediba partilhava traços do crânio, diminuto, tanto com australopitecos como com representantes de Homo primitivos.
Os fósseis comparados de MH1, A.afarensis Lucy e MH2. Fonte Peter Schmid, Lee R.Berger, Universidade de Witwatersrand
Apesar de muitos antropólogos considerarem o A. sediba um predecessor direto do genus Homo, ao qual pertence o humano moderno, o Homo sapiens, há quem admita tratar-se antes de um ramo evolutivo paralelo. A análise filogenética aponta a primeira hipótese com a mais correta.

“As descobertas lançam uma nova luz sobre a nossa história evolutiva – e no final de contas, do nosso lugar no mundo à nossa volta”, refletiu Williams no estudo.

“A nossa parte inferior das costas é vulnerável a danos e a dor, associados a postura, gravidez e exercício ou falta dele”, sublinhou o investigador, esperando que o entendimento sobre a evolução desta área anatómica” possa ajudar a evitar problemas e a mantê-la saudável”.
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