Poder militar chinês. Ameaça verdadeira ou pretexto para corrida às armas?

A tensão tem-se agravado entre os Estados Unidos e a China sobre o estatuto de Taiwan, à boleia da guerra na Ucrânia e apesar de Pequim estar a manter-se oficialmente à margem deste último conflito.

Graça Andrade Ramos - RTP /
Forças Armadas da China em parada https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

A recente subida em flecha dos investimentos militares chineses, apesar de estes se manterem ainda muito aquém dos orçamentos de Defesa dos Estados Unidos, indica que a China não está disposta a ceder nos seus objetivos ou perante ameaças norte-americanas e que irá reagir se for provocada. O presidente chinês Xi Jinping ordenou que as forças armadas do país se deverão modernizar até 2035. Afirmou que deverão tornar-se um poder militar de “classe mundial”, capaz de “lutar e vencer guerras” até 2049.

Muitos analistas acreditam que está em curso uma alteração profunda no equilíbrio do poder mundial e temem que Taiwan se torne o próximo pretexto para um verdadeiro choque de titãs que arraste o mundo para um conflito armado.

Esta sexta-feira, um telefonema entre os presidentes dos dois maiores blocos económicos e militares do mundo, o norte-americano Joe Biden e o chinês Xi Jinping, expôs a falta de boa vontade de parte a parte em alcançar uma solução para o problema de Taiwan, um dos maiores espinhos no flanco chinês.

Os Estados Unidos repetiram ser contra a alteração de estatuto do território e a China acusou Washington de "brincar com o fogo" quando se coloca a hipótese de uma visita a Taiwan por parte da porta-voz do Congresso norte-americano.
China prepara-se
Militarmente, Pequim ainda está longe a vários níveis de se bater de igual para igual com Washington, exceto no que concerne a ataques cibernéticos.

Como sublinhou Wes O’Donnell, um autor e realizador independente norte-americano, orador habitual nas conferências TED sobre temas militares e de segurança globais, “o poderio militar norte-americano está décadas ou mais adiantado face ao dos seus adversários mais próximos”, concluindo num artigo publicado esta quinta-feira que os EUA podem por isso dar-se ao luxo, sem deixar de vigiar a China, de “tirar o pé” do acelerador das despesas militares.

A dúvida é quanto tempo as vantagens logísticas e operacionais norte-americanas irão manter-se. A BBC deu-se ao trabalho de analisar ponto a ponto as forças e fraquezas chinesas atuais, concluindo que a China “pode vir a vencer a nova corrida ao armamento”.

Pequim não revela quanto gasta realmente em Defesa e é acusada de “relatórios inconsistentes” sobre essas despesas.

O SIPRI, o Instituto de Estocolmo para a Pesquisa da Paz, que analisa de forma independente dados sobre armamentos globais, refere que em 2020 a China investiu 270 mil milhões de dólares nas suas forças armadas, um terço dos 768 mil milhões dos EUA. Comparativamente, o terceiro país em gastos militares foi a Índia, com 74 mil milhões de dólares.

Os analistas militares ocidentais estimam que Pequim apoia as suas forças armadas muito acima do que declara oficialmente. O Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington, afirma que pelo menos na última década o crescimento do orçamento militar chinês tem sido superior ao crescimento económico.

Em junho de 2022 o Wall Street Journal analisou a questão.

Armada chinesa
Um dos primeiros passos para as chefias militares chinesas concretizarem as ordens de Xi Jinping está a ser dotar a Armada chinesa, a maior do mundo, de navios modernos e equipados com o último grito em armamento. Em junho foi lançado ao mar o Fujian, um porta-aviões tipo 003 e o navio de guerra mais avançado jamais produzido na China.

Mais interessante, o Fujian é o terceiro porta-aviões da China e, contrariamente aos dois anteriores, foi inteiramente desenhado por engenheiros chineses. Tem 315 metros de comprimento, aproximadamente 85.000 toneladas e capacidade para 40 a 60 meios aéreos incluindo helicópteros. Usa o sistema de catapulta eletromagnético, considerado um avanço significativo para a China, aumentado a mobilidade e poder tático do navio. O Fujian está ainda em testes e a ser equipado, com data incerta para entrar ao serviço, mas prevê-se que irá juntar-se em breve à frota chinesa, que suplantou em número a armada norte-americana em 2014.

Pequim comanda 348 navios de guerra, incluindo de auxílio e de apoio, contra 296 de Washington. Os norte-americanos são contudo superiores em capacidades navais, com 11 porta-aviões face aos três chineses e mais submarinos nucleares, cruzadores e contratorpedeiros – navios maiores.

A Marinha norte-americana prevê que até 2040 o número total de navios chineses aumente em 40 por cento.
Mundo ciber
Uma área em que a China poderá dar cartas aos Estados Unidos é a do combate cibernético.

Pequim aposta firmemente na guerra de tecnologias disruptivas, especialmente inteligência artificial, de acordo com o Departamento de Defesa dos EUA.

Em julho, o Reino Unido, os Estados Unidos e a União Europeia acusaram a China de estar por trás de um ciberataque contra servidores da Microsoft Exchange, que terá afetado pelo menos 30 mil organizações à escala global num objetivo de espionagem e roubo de dados pessoais e propriedade intelectual. A possibilidade de interferência cibernética em infraestruturas militares durante um confronto não pode ser descartada e poderá revelar-se o calcanhar de Aquiles dos norte-americanos.

A Academia de Ciências Militares da China recebeu ordens para garantir o desenvolvimento de tecnologias disruptivas através da “fusão civil-militar”, ou seja, colocar as empresas privadas do setor chinês das tecnologias ao serviço das indústrias de Defesa do país.

Alguns relatórios sugerem que a China já pode estar a usar inteligência artificial em robots militares e sistemas de orientação de mísseis, assim como veículos aéreos e navais autónomos.
Ameaça nuclear crescente
Outra preocupação é o crescimento das reservas de armas nucleares por parte da China. Em novembro passado, o Departamento da Defesa dos EUA previu que estas irão quadruplicar até ao fim da presente década. A China, referiu, “pretende obter pelo menos 1.000 ogivas até 2030”.

Os media estatais chineses desmentiram a alegação “como infundada” garantindo que as suas forças nucleares são mantidas a um “nível mínimo”. O SIPRI tem outra versão. Entre 2011 e 2021 a China aumentou de 206 para 272 o número das suas ogivas, a maioria terrestres. Apesar de distante das 5.550 ogivas possuídas pelos Estados Unidos, a crescente capacidade nuclear da China é uma das maiores fontes de preocupação enquanto ameaça ao mundo ocidental e à sua supremacia militar.

“Há uma imensa desconfiança dos dois lados e o diálogo está muito longe do nível necessário. Há enormes riscos e rampas deslizantes difíceis de ver”, afirmou à BBC Veerle Nouwens, do Instituto de Serviços do Reino Unido.

O conselheiro de Segurança Nacional do mesmo país, Stephen Lovegrove, apontou esta quinta-feira o risco de um próximo “conflito descontrolado” entre o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos da América, e a China [e a Rússia], com especial preocupação para o uso de arsenais nucleares. Recomendou por isso prudência às potências NATO e que se concentrem no "trabalho de redução de riscos estratégicos", considerando que a falta de diálogo dos tempos atuais tornará mais prováveis erros de cálculo.
À velocidade do som
Uma arma mais recente tira também o sono a muitos. Os mísseis hipersónicos viajam a cinco vezes a velocidade do som e, apesar de não atingirem a velocidade dos mísseis balísticos intercontinentais, são tão difíceis de detetar em voo que podem tornar inúteis algumas defesas aéreas, incluindo o Escudo Antimísseis dos Estados Unidos.

São também muito mais difíceis de abater por parte de, por exemplo, um porta-aviões.

Esta é uma área em que a China está muito atrasada. Por isso está a tentar desenvolvê-los de forma a ultrapassar outras potências.

Os especialistas acreditam que a China irá adquirir em breve os seus próprios mísseis hipersónicos, hesitando apenas sobre se serão do tipo que se mantém na atmosfera ou dos que atingem altitudes orbitais antes de acelerar até ao alvo (FOBS ou Sistemas Fracionados de Bombardeamento Orbital).

Admitem que a China possa vir a combinar os dois sistemas. Mas também há quem considere estes avisos um mero estratagema para conseguir mais financiamentos para o desenvolvimento norte-americano deste tipo de arma.
As vantagens dos EUA
Todo o investimento militar chinês pode ser meramente dissuasor, com muitos especialistas a insistirem que a intenção é ganhar a guerra de influência com os Estados Unidos sem disparar um tiro.

A China não combate em cenários de conflito desde 1979, quando interveio na Indochina, contra o Vietname. As suas capacidades militares estão por isso por testar, ao contrário das dos Estados Unidos, cujos operacionais estiveram envolvidos na maioria dos conflitos globais, grandes e pequenos, nos últimos 100 anos.

Essa capacidade de combate testada é uma das grandes vantagens norte-americanas, lembrou Wes O’Donnell. “A América tem experiência de combate em solo estrangeiro nas Grandes Guerras I e II, na Guerra da Coreia, na Guerra do Vietname, do Panamá, em Granada, na Primeira Guerra do Golfo, no Kosovo, no Iraque e no Afeganistão”, referiu o analista.

Por outro lado, Pequim assenta num sistema de controlo acima do de comando, com um comissário político em cada navio e submarino, sublinhou O'Donnell, especulando também qual poderá ser a reação de marinheiros e soldados quando “as balas e os mísseis começarem a voar”.

Outra vantagem dos Estados Unidos referida pelo especialista é terem bases nos quatro cantos do mundo, possibilitando uma intervenção armada numa questão de horas, se não de minutos.

A organização logística global das Forças Armadas dos Estados Unidos não tem paralelo e possibilita desde “intervenções aéreas rápidas a operações de busca e salvamento e evacuação médica”. O número de bases no estrangeiro é contudo um assunto controverso nos corredores de Washington.

A China, por seu lado, “tem apenas uma base no Djibuti, na África Oriental, uma base naval no Camboja e um posto no Tajiquistão”.

Um dos objetivos de Pequim será igualmente aumentar o seu número de bases militares em solo amigo e já há sinais de que o pretende, apesar de afirmar que, ao contrário de Washington, “não quer ser a polícia do mundo”.

Melhor seria dizer, não, para já.
PUB