A baleia no meio da sala

Andamos todos por estes dias atordoados com um jogo - parece que há pelo menos quatro variantes no mundo inteiro alimentadas por redes sociais da darknet - que promove e estimula a auto-mutilação e o suicídio nos jovens. É mais um daqueles fenómenos que aparecem de repente, para os quais não estamos preparados e que nos deixam desarmados e sem reacção. Mas o problema vai mais fundo, não aparece com o jogo Baleia Azul e similares, e deve ser encontrado numa profunda reflexão relativamente às nossas relações sociais, familiares e profissionais.

Vivemos num tempo de múltiplos estímulos, ainda mais exigências e de pressão constante a vários níveis. Não temos tempo. Nem para nós, nem para os outros. Os nossos amigos que estão doentes acabam muitas vezes por morrer sem que tenhamos a oportunidade de um último almoço, um último jantar ou uma última conversa. 


Os mais velhos passam dias e dias sozinhos sem uma visita dos familiares mais directos que estão soterrados de trabalho e muitas vezes não conseguem libertar-se nem ao fim de semana das suas obrigações profissionais - quantos não são obrigados a acumular empregos para garantirem a sobrevivência familiar? 

Cansados e exaustos, muitos de nós não damos a devida atenção aos nossos filhos, não há conversas ao jantar, estórias de fim de dia ou actividades em conjunto. Não há convívio, não há acompanhamento, não há apoio, não há desabafos ou tempo para a simples parvoíce que ajude a desanuviar a intensidade dos nossos dias cada vez mais preenchidos.

Experimentem entrar num restaurante e vejam quantas famílias estão a conversar. Normalmente, para poderem colocar a vida em dia, os casais entregam telefones inteligentes aos filhos para que se entretenham em jogos electrónicos que permitam uma pausa e o desejado silêncio dos mais pequenos. Nas viagens de automóvel é vulgar vermos écrans nas traseiras dos bancos dianteiros com filmes infantis que ajudam a mitigar a impaciência dos miúdos, e os pais, os dois, ao telefone em conversas urgentes.

Porque as coisas dos adultos são sempre urgentes. Fico abismado com a quantidade de casais, pais de amigos dos meus filhos, preocupados porque os filhos mal falam em casa do que aconteceu na escola. Refugiam-se num impenetrável silêncio e só parecem ter gosto em estímulos virtuais mostrando enfado para as conversas reais, com pessoas a sério, em família, nem que seja apenas dez minutos ao final do dia.

Nos tempos que correm não temos tempo uns para os outros. Não conversamos, não desabafamos, não partilhamos experiências e problemas, não tentamos encontrar soluções em conjunto. Tentamos ganhar dinheiro, ser bem sucedidos e conquistar o máximo de bens materiais que mostrem ao mundo que conseguimos vencer na vida. 

Um dia aparece uma Baleia Azul qualquer, que já andava pela sala há uns tempos mas que quase ninguém parecia ver. Entramos em choque e ficamos sem reacção, aparvalhados e tolhidos pelo receio de que a coisa possa chegar lá a casa. Mas como não temos tempo, depressa optamos pela solução mais fácil e acreditamos que estas coisas só acontecem aos outros, a crianças sem família ou a famílias que não merecem a designação. Puro engano, o silêncio e o isolamento dá cabo de muitas famílias, com a mesma rapidez dos cancros agressivos e galopantes. Quase só os descobrimos quando já não há remédio. Vejam a taxa de divórcios ou de crianças que fogem de casa dos pais.

A solução é ridícula de tão simples. Abracem os vossos filhos quando se despedem pela manhã e não tenham vergonha de dizer que os amam muito e que estão orgulhosos na forma como estão a crescer. Quando os repreenderem façam-no com uma atitude compreensiva, de forma calma e tranquila e nunca com uma raiva incontida de quem não percebe onde falhou. 

Obriguem-se a jantar em conjunto, sem telemóveis à mesa e com a televisão desligada e inventem conversas interessantes ou simples parvoíces que ajudem a quebrar o gelo. Eles adoram as nossas histórias de infância e as nossas diabruras e tropelias. 

Aproveitem as deslocações de carro e inventem ou estimulem aqueles jogos que já tínhamos esquecido: cá em casa resulta muito bem o jogo dos carros de cores esquisitas ou palavras começadas por letras específicas. 

Deixem-nos correr nos jardins, mesmo que estejam molhados e com lama, e se possível descalços. Juntem-se a eles e lembrem-se que alguma verdade haverá nos anúncios de detergentes que nos garantem que fica tudo como novo nos programas mais simples daquelas máquinas de lavar complicadas. 

Abram mão de vez em quando de regras parvas como por exemplo: " na cama dos pais só ao fim de semana" ou "não mexes naquele brinquedo porque foi caríssimo". Caramba, é um brinquedo!. 

Aproximem-se dos vossos filhos, criem cumplicidades e amizade. A vulnerabilidade e as inseguranças podem ser mortais na juventude. E o silêncio também mata. As relações familiares e a auto-estima. 

É assim que aparecem as baleias. Não é do nada, é do tudo que vamos ignorando e perdendo.

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