Tudo bons rapazes

Este ano, a silly season antecipou-se. Arnaldo Matos, o ressuscitado grand'educador-da-class'operária, é a nova vedeta, em regime de auto-propositura, do circo mediático montado em torno do Sporting. Finalmente, Bruno de Carvalho tem um contracenante à altura. Isto promete.

À mesma hora que, em Sochi, a equipa de Portugal se estreava no Mundial de Futebol frente à de Espanha, em Lisboa, o escritor Antonio Muñoz Molina reuniu um grupo de leitores para a apresentação de «Como a Sombra que Passa» (tradução de Eugénia Antunes, edição Ponto de Fuga), mais uma obra grandiosa do autor andaluz, outra vez com a capital portuguesa em fundo, agora no encalço do assassino de Martin Luther King.


Por estranho que pareça à maioria, há pessoas que não ligam ao futebol. E que preferem juntar-se numa sala da antiga Fábrica de Braço de Prata em volta de um escritor e de uma história, densa e intensamente contada, em que criador e criação se misturam numa sucessão de flashes de memórias, próprias e alheias, à procura de um personagem. O livro é uma apaixonante narrativa que reconstitui os passos de James Earl Ray antes e depois de matar Luther King, uma história bem urdida e melhor contada, capaz até de resistir ao vírus maligno do «acordo ortográfico», única mácula desta muito cuidada edição.

É claro que não existe qualquer incompatibilidade entre a literatura e o futebol, e a coincidência de dia e hora foi, neste caso, apenas isso mesmo, uma coincidência. Dá-se porém o caso de que Molina também não é frequentador do auto-proclamado desporto-rei, pelo que fosse qual fosse o resultado nunca seria motivo de tristeza. E, assim, o empate com os espanhóis funcionou como uma cortesia extra que deixou toda a gente contente – até mesmo os apreciadores de futebol que, discretamente, dividiam a atenção entre o que ouviam na sala e o que espreitavam no smartphone.

No ano em que a Argentina acolheu o campeonato do mundo (1978), outro escritor, Jorge Luis Borges, não poupou em duras críticas ao evento e à modalidade em geral. Borges era ainda mais insensível à estética do futebol do que Molina, mas era sobretudo adverso ao espírito nem sempre racional de pertença a um grupo, e mais ainda quando dessa identificação sobressaem com desmesurado vigor algumas euforias nacionalistas. O que sucedia, e sucede, com muitos adeptos argentinos, para tristeza do escritor: «O nacionalismo apenas permite afirmações e toda a doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez», dizia.

Conta-se (o próprio o contou) que da única vez que foi assistir a uma partida, Borges saiu no fim da primeira parte, convencido de que tinha acabado. Tinha ido, por cortesia, com um amigo uruguaio também escritor, que por sua vez aceitara pelos mesmos motivos. Passaram o tempo a falar de outras coisas e, quando lhe disseram que era apenas o intervalo, Borges já não quis voltar. E nunca soube como terminou o jogo. O episódio foi recordado por Muñoz Molina em Lisboa, ao mesmo tempo que noutro lugar do mundo outros portugueses e outros espanhóis se defrontavam num jogo de futebol.

É conhecido o desprezo que Borges nutria pelo futebol, a que chamava «um dos maiores crimes da Inglaterra» e que via como «um desporto ignóbil, agressivo, desagradável e meramente comercial». Bom, isto era há 40 anos, ainda o futebol (e a indústria dele) não se tinha transformado nesta espécie de fast-food emocional, onde o espírito desportivo, qualquer que ele seja, não tem mais do que um lugar residual: à margem dos adeptos, e até dos atletas, os jogos e os campeonatos e o bizz em volta deles já dependem sobretudo dos interesses as mais das vezes obscuros dos patrocinadores e dos donos dos clubes (os investidores, que são quem realmente manda), com as consequências que nem sempre se sabe.

Uma espiral de cobiça que se revela em todo o esplendor durante situações como a que se vive por estes dias no Sporting, tão extraordinariamente bizarra que qualquer não-adepto se sente imediatamente justificado. Eu, que tal como Borges e Molina não fui tocado pelo amor ao futebol, apenas posso desfrutar da novela como espectador e tentar decifrar os delirantes sinais de alucinação geral a que, dia após dia, vamos assistindo.

Há, no entanto, motivos para crer que a ópera-bufa em curso se transformará rapidamente numa extraordinária, ainda que eventualmente pouco elegante, comédia de costumes. A recente entrada em cena de Arnaldo Matos, além de dar um novo alento mediático ao defunto MRPP, promete alguns momentos capazes de ofuscar em brilho e gáudio as melhores prestações de Bruno de Carvalho.

Inventor e principal accionista do partido onde Durão Barroso cursou as primeiras letras da vida política e se formou em ética proletária, Arnaldo Matos saiu da tumba para zurzir em Garcia Pereira, o «traidor social-fascista» que o líder imortal acusa de estar «ao serviço da extrema-direita portuguesa» (os investidores do Sporting) e de ser «o autor das rescisões por justa causa que tantos prejuízos causaram nas finanças do clube».

Como é próprio dos grandes líderes, Arnaldo Matos faz-se ouvir pelo Twitter. Se resulta com Trump, porque não havia de funcionar com ele? Certo é que o regresso do grand'educador teve, para já, o mérito (não despiciendo) de trazer para a ribalta a putativa ligação do inefável Garcia Pereira ao imbróglio sportinguista. O que, obviamente, não augura nada de bom para os sportinguistas. Mas é cativante para quem gosta de uma boa história.

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