Ministra da Justiça considera que penas para incendiários são “severas” e aposta na prevenção da reincidência

por RTP
A ministra da Justiça foi a convidada de Vítor Gonçalves na <i>Grande Entrevista</i> desta quarta-feira. Rafael Marchante - Reuters

A ministra da Justiça rejeitou a ideia de que as penas contra incendiários sejam leves e declina alterar a moldura penal. Van Dunem recordou que estão previstas penas até dez anos e que há já mecanismos para acrescentar penas suplementares. Na Grande Entrevista, Van Dunem falou ainda sobre a greve dos juízes, o combate à corrupção, a "delação premiada" e a importância da sua nomeação como ministra para a comunidade africana.

A ministra da Justiça revelou na Grande Entrevista desta quarta-feira que a Polícia Judiciária deteve 82 suspeitos de atear fogos, das quais 39 ficaram em prisão preventiva. Francisca Van Dunem indicou ainda que terá início em setembro um programa experimental de cadastro dos terrenos da região centro que arderam.

“Vai-se utilizar a circunstância desses terrenos estarem neste momento rasos para se fazer a georreferenciação e para depois se juntar toda a informação relativa a esses terrenos”, explicou a governante.

Francisca Van Dunem abordou ainda a adequação da moldura penal para os crimes ligados aos incêndios, contrariando a ideia de que as “penas são leves”, o que motivaria elevados níveis de reincidência.

Em resposta a esta ideia, a ministra referiu que já é possível aplicar penas até dez anos de prisão aos incendiários, o que considera ser já uma “pena severa”.

A ministra da Justiça garantiu por isso que o Governo não vai mexer nas penas previstas para estes crimes, mas avança com outros mecanismos.

A governante explicou que o Executivo apresentou uma proposta de lei que já foi aprovada e que prevê a aplicação de uma “pena relativamente indeterminada” para os casos de “delinquentes por tendência aos quais é identificada uma pulsão para a prática de crimes” através da reincidência.

Ou seja, nesses casos, o juiz pode acrescentar até seis anos de prisão à pena inicialmente prevista, “considerando a personalidade daquele agente e a pulsão dele para a prática do crime”.

O Governo indica ainda que, no caso de penas suspensas e de liberdades condicionais para estes criminosos, o juíz pode impor a condição de que o incendiário passe o período de maior risco de incêndios em prisão domiciliária com vigilância eletrónica. Esta alteração foi já introduzida pelo Governo e vai ser posta em prática a partir de agora, explicou a ministra.

O Executivo adquiriu ainda à Universidade de Kent um programa que visa dissuadir a prática do crime. Este programa começará a ser aplicado experimentalmente em setembro junto de pessoas que concretizaram já um crime do género para prevenir a reincidência.

“É um programa que implica a intervenção de técnicos, de psicólogos – tem a ver com a psicologia a aplicada – para desestimular a pulsão para a prática do crime”, explicou Francisca Van Dunem na RTP.
Caso Sócrates
Quase três anos depois da sua detenção, a acusação a José Sócrates ainda não é conhecida. Confrontada com o prolongamento desta investigação, a ministra da Justiça recordou que é responsável pelo sistema mas não pela jurisdição. “Não compete ao ministro a intervenção relativamente às decisões judiciais”, afirmou.

No entanto, Van Dunem admitiu que “ninguém do sistema de justiça fica confortável com situações que se arrastam por muito tempo” e disse perceber as queixas dos arguidos neste domínio, “seja ele o antigo primeiro-ministro José Sócrates ou outro arguido qualquer”.

A governante recordou que a legislação exige que a Justiça “se faça num prazo razoável” mas assinalou também que “o prazo razoável depende também da qualidade do processo, das dificuldades e das vicissitudes do processo”.

Questionada sobre se considera razoáveis os prazos no caso que envolve José Sócrates, Francisca Van Dunem não se pronunciou, justificando que uma ministra não fala sobre casos concretos.

A governante fez ainda um balanço favorável do trabalho de Joana Marques Vidal na Procuradoria-Geral da República.
Greve dos juízes
Os juízes convocaram uma greve para o princípio de outubro, logo a seguir às autárquicas. A ministra garantiu na RTP que o Governo “tem a inteira disponibilidade” para negociar, tendo sublinhado que foi possível chegar a acordo em todos os segmentos do estatuto, com exceção da componente salarial, o que motivou a convocação da greve.


“Neste momento, o Governo não tem condições para satisfazer as pretensões dos magistrados por mais justas que elas sejam”, assegurou a governante.

Francisca Van Dunem rejeitou que não consiga dialogar com os juízes sobre este assunto: “uma coisa é dialogar, outra coisa é dizer o que os senhores juízes querem que eu diga”.

A ministra da Justiça recusou ainda comentar a eventual ilegalidade desta greve dos juízes - como é apontado por alguns constitucionalistas pelo facto de os juízes serem titulares de um órgão de soberania - e a oportunidade desta paralisação.

Na entrevista conduzida por Vítor Gonçalves, Francisca Van Dunem assegurou ainda que todos os tribunais que foram reabertos vão continuar em funcionamento mesmo que mantenham poucos julgamentos.

“A lógica do Governo não foi uma logica quantitativa”, justificou, dizendo tratar-se de uma “questão de princípio”.
Combate à corrupção
A ministra da Justiça não considera que “Portugal seja um país de corruptos” mas admitiu na RTP que há “um problema ao nível da perceção da corrupção que algum fundo tem”.

Van Dunem apontou que é preciso prevenir a corrupção, “por a funcionar as instâncias de controlo”, dar meios às autoridades e criar legislação adequada à prevenção e repressão da corrupção”.

Sobre o recurso à “delação premiada” - como existe no Brasil - Francisca Van Dunem considerou que Portugal compara bem com o quadro europeu, tendo explicado que a legislação já permite a atribuição de compensações a quem colabora.

A ministra explicou que a lei prevê a possibilidade de a colaboração pode ser premiada com uma atenuação de pena. O esquema é no entanto diferente do existente no Brasil, onde é possível fazer um acordo com o tribunal no qual é logo feita uma ponderação da pena final a aplicar.

Este sistema não existe em Portugal. A ministra considera que um sistema deste tipo poderia “violar alguns princípios que são estruturantes do processo penal”.

“Será que esta é a estrutura jurídica que queremos e estas as referências morais que queremos ter e transmitir às gerações futuras?”, questionou.

Van Dunem diz não ter uma resposta clara, mas aponta que só se deve avançar para um sistema destes numa “situação de tal modo que obrigue a isto”.
“Intolerante com a intolerância”
Há quase dois anos no cargo, Francisca Van Dunem admite que a sua nomeação tenha tido uma importância simbólica para as comunidades de origem africana que residem em Portugal.

“Por várias vezes houve pessoas que se me dirigiram e que fizeram esse tipo de apreciação. Foi uma coisa que eu inicialmente não tinha tão presente”, confessou na conversa com Vítor Gonçalves.

Sobre as notícias referentes a fenómenos de racismo em Portugal, a ministra considera que estes não podem ser desvalorizados.

“Só podemos celebrar-nos como uma sociedade inclusiva se formos capazes de adotar relativamente a todas essas pessoas um tratamento absolutamente igualitário”, defendeu. Um objetivo que, acredita a ministra, Portugal ainda está longe de alcançar.

Francisca Van Dunem afirmou ainda que é “totalmente intolerante com a intolerância racial, religiosa, étnica ou outra”. “Espanta-me que estando nós a fazer quase 50 anos da morte de Martin Luther King, que na prática, continuemos a conviver com os mesmos problemas que nos anos 60”, lamentou Van Dunem, numa referência à atual situação nos Estados Unidos.

Apesar de ter nascido em Angola, Van Dunem não quis comentar a atual situação política no país. Admitiu no entanto que este é um “momento de mudança” e exprimiu “o desejo que Angola se encaminhe para o progresso e felicidade dos seus povos que foi o grande fundamento da luta pela independência”.
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