Sócrates fala de "jornalismo de buraco de fechadura"

por RTP
"Eu não contribuo para essa infâmia nem contribuo para a degradação da nossa vida pública", reagiu José Sócrates André Kosters, Lusa

O primeiro-ministro reagiu este sábado às notícias sobre um alegado plano do Governo para controlar a comunicação social com críticas ao que afirmou ser "um jornalismo de buraco de fechadura" baseado em "escutas e conversas privadas". As declarações de José Sócrates foram precedidas de um apelo do Presidente da República ao respeito pela “liberdade de expressão”.

A última edição do semanário Sol revela extractos do despacho em que o juiz de Aveiro responsável pela instrução do processo Face Oculta, António Costa Gomes, aponta para a existência de "indícios muito fortes da existência de um plano", com o envolvimento de José Sócrates, para garantir o controlo da TVI e afastar a jornalista Manuela Moura Guedes e José Eduardo Moniz, antigo director-geral da estação de Queluz de Baixo.

O despacho do juiz de instrução criminal da Comarca do Baixo Vouga inclui transcrições de escutas telefónicas que envolvem Armando Vara, então membro da administração do Millennium BCP, Paulo Penedos, assessor da Portugal Telecom, e Rui Pedro Soares, administrador executivo da empresa de telecomunicações.

O tema é recuperado este sábado pelo Correio da Manhã, que se baseia nos mesmos extractos para adiantar que o primeiro-ministro e Armando Vara, arguido no processo, teriam sido protagonistas de um "plano para condicionar e constranger" a acção de Cavaco Silva, controlar órgãos de comunicação social e fazer uso de verbas de entidades empresariais públicas em prol do PS - o diário avança que a cúpula socialista teria por objectivo provocar eleições antecipadas em 2011, perante o cenário de perda da maioria absoluta.

"Infâmia"

Confrontado com as notícias das últimas horas, José Sócrates empregou termos como "infâmia" e "degradação". Para o primeiro-ministro, as manchetes do Sol e do Correio da Manhã resultam de um "jornalismo de buraco de fechadura".

"Eu acho absolutamente lamentável que esse jornalismo, que se pode classificar como um jornalismo de buraco de fechadura, baseado em escutas telefónicas e em conversas privadas que, não tendo relevância criminal, devem ser privadas, se faça e com o objectivo de atacar pessoas", declarou o primeiro-ministro em Vila Viçosa, à margem da adjudicação de contratos para redes de nova geração.

"Eu não contribuo para essa infâmia nem contribuo para a degradação da nossa vida pública, baseando-se essas acusações e essas notícias em, como digo, escutas telefónicas", insistiu Sócrates, para logo acrescentar: "Era o que faltava que eu ficasse agora na posição de comentar conversas privadas de outros. Não o faço. Isso é, como digo, uma atitude que me parece indecorosa e desprezível e eu não contribuo para isso".

"Todos devemos respeitar a lei"

Em entrevista à RTPN, o ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão, procurara já desvalorizar as notícias sobre o envolvimento do primeiro-ministro no alegado plano de controlo da comunicação social, classificando-as como "manobras de diversão": "O Governo não tem de dar explicações em matérias em relação às quais não tem nada que lhe pese na consciência".

A líder do PSD, Manuela Ferreira Leite, indicou na sexta-feira que o maior partido da Oposição solicitou à Comissão de Ética da Assembleia da República que se debruce sobre "a situação da liberdade de expressão em Portugal". O PS, pela voz do presidente do grupo parlamentar, Francisco Assis, já se mostrou disponível para viabilizar o requerimento dos sociais-democratas.

Em Idanha-a-Nova, na segunda jornada do Roteiro das Comunidades Locais Inovadoras, o Presidente da República evitou alargar-se em comentários sobre o caso, mas tratou de sublinhar que "Portugal é um Estado de Direito".

"Principalmente nestas circunstâncias, todos devemos respeitar a lei, tendo em conta os princípios constitucionais, e desses princípios constitucionais faz parte aquilo que acabam de referir, a liberdade de expressão e o pluralismo da comunicação social", afirmou Cavaco Silva, em resposta às perguntas dos jornalistas.

"Mas entendo que, nas circunstâncias em que se encontra o país, não devo acrescentar absolutamente mais nada e continuar concentrado naquilo que me trouxe à Beira Baixa, dar o meu contributo para o reforço da recuperação económica, porque acredito nas pequenas e médias empresas e nas comunidades locais", frisou o Chefe de Estado.

"Defender o interesse nacional"

O jornal i noticia este sábado que Cavaco Silva tenciona obter mais esclarecimentos sobre o caso, podendo mesmo chamar ao Palácio de Belém o Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro, e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento.

"Não ia dizer aos senhores jornalistas com quem penso falar ou quem penso chamar. São matérias do domínio reservado. E também vos peço que contribuam para que se mantenha no país o clima de tranquilidade e serenidade que é importante nesta situação difícil em que nos encontramos e em que há uma atenção injusta e incorrecta nos mercados internacionais em relação a Portugal. Queremos o melhor para o nosso país", acrescentou o Presidente da República.

Cavaco Silva assinalou, ainda, que a sua "preocupação permanente é defender o interesse nacional, servir o país, procurar cumprir com rigor e honestidade" as "funções de Presidente da República", dando "atenção particular aos problemas do país e dos portugueses, actuando sempre com total isenção e independência em relação às forças políticas".

"Quero ser o primeiro a dar o exemplo do clima de serenidade que precisamos de manter no país", concluiu.

Pinto Monteiro desencadeia inquérito

O Procurador-Geral da República decretou entretanto a abertura de um inquérito à divulgação de notícias sobre as escutas efectuadas no âmbito do processo Face Oculta. Foi também desencadeado um segundo inquérito por decisão do procurador-geral distrital de Coimbra.

Em nota difundida na sexta-feira, Pinto Monteiro argumenta que o conteúdo das notícias em causa "não altera absolutamente nada do que decidiu nos despachos a propósito referidos, por não existir qualquer fundamento jurídico para tal".

"Aliás, as questões relacionadas com as referidas escutas foram decididas em definitivo pelos despachos do senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferidos no uso de competência própria e já transitados em julgado", acrescenta o Procurador-Geral, que conclui a nota com a garantia de que "as consequências jurídicas da divulgação feita pela comunicação social serão tiradas oportunamente".

À agência Lusa, o desembargador Paulo Brandão, presidente da Comarca do Baixo Vouga, adiantou que o juiz de instrução criminal António Costa Gomes vai cumprir "escrupulosamente" a ordem de Noronha Nascimento para a destruição das escutas que envolvem Vara e Sócrates. O magistrado de Aveiro argumenta, por outro lado, que a divulgação das escutas citadas pelo Sol não constitui um crime de desobediência, uma vez que "não se trata de conversas abrangidas" pelo despacho do presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Lançada a 28 de Outubro de 2009, a operação Face Oculta levou a Polícia Judiciária a efectuar 30 buscas domiciliárias e em locais de trabalho de diferentes pontos do país. A investigação incide sobre alegados crimes económicos relacionados com empresas do sector empresarial do Estado e praticados por um grupo de Ovar que inclui a empresa O2 - Tratamento e Limpezas Ambientais, a que está ligado Manuel Godinho, o único arguido em prisão preventiva.

Na sequência das investigações do processo Face Oculta foram constituídos 18 arguidos, entre os quais o antigo governante socialista Armando Vara, o presidente da REN - Redes Eléctricas Nacionais, José Penedos, que viu as suas funções suspensas por decisão do juiz de instrução criminal, e o seu filho Paulo Penedos, que é advogado da SCI - Sociedade Comercial e Industrial de Metalomecânica S.A., do empresário Manuel Godinho.

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