A imprensa alemã e o PREC. Dois casos de estudo

por António Louçã
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No biénio de 1974-1975, a opinião publicada na Alemanha, tal como ela nos surge em dois semanários de referência, o jornal Die Zeit e a revista Der Spiegel, foi um indicador da atitude dominante no país face ao processo revolucionário português. A esta distância, o conteúdo desses dois semanários diz-nos mais sobre a grelha interpretativa e sobre as inclinações políticas desta imprensa alemã do que sobre o PREC (Processo Revolucionário em Curso).

O défice da imprensa alemã em observação directa e presencial nota-se especialmente nos primeiros tempos do processo e vai sendo colmatado, aqui e ali, com o recurso a jornalistas enviados ad hoc, muitas vezes a partir das delegações que essa imprensa tradicionalmente mantinha em Madrid, como relatou à RTP o adido social da Embaixada, Hans-Ulrich Bünger.

Nas páginas dos dois semanários continuam portanto a abundar comentários a partir de informação das agências noticiosas. As reportagens realizadas em visitas fugazes, mesmo quando brilham pelo poder de observação ou pela vivacidade do relato, continuam a ressentir-se da falta de um enraizamento social que só jornalistas residentes podem ir construindo com o tempo. Estas são características comuns aos dois semanários que aqui analisamos.
Os antecedentes de dois semanários de referência
Die Zeit chegara a 1974 depois de um percurso acidentado, com algumas crises internas, suscitadas ora pelo envolvimento de alguns dos seus responsáveis com o nacional-socialismo, ora por opções editoriais branqueadoras de alguma proeminente figura intelectual do nazismo, ora ainda por convulsões originadas em práticas censórias.

Em meados da década de 1950, uma dessas crises redundara na estabilização de uma linha mais liberal, em que a partir de certa altura pontificou um dos máximos expoentes da social-democracia: Helmut Schmidt, entretanto ascendido a ministro da Defesa e depois, finalmente, a chanceler.
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No momento em que eclode a revolução de Abril, o chefe de redação de Die Zeit é Theo Sommer, anteriormente um dos lugares-tenentes de Schmidt no Ministério da Defesa e estreitamente ligado a ele em várias fases da sua carreira.

Da redação chefiada por Sommer faz parte Horst Bieber, ao tempo um jornalista de 32 anos, mas já com uma reputação de saber enciclopédico que o acompanha como uma sombra. Bieber irá mais tarde deixar a carreira jornalística e tornar-se um autor de sucesso no género das novelas policiais.

Der Spiegel, por sua vez, conta em 1974 um pouco mais de um quarto de século de existência, sob a direção do lendário Rudolf Augstein. É, já então, uma revista com um historial respeitável no jornalismo de investigação e uma imagem de contrapoder que em diversos momentos atraíu sobre ela os rigores de uma repressão de estilo macartista.

Logo em 1949, a publicação foi suspensa pelas autoridades de ocupação britânicas devido a uma queixa da Casa Real holandesa, e em 1962 as suas instalações foram invadidas pela polícia, sendo dois dos seus jornalistas detidos na sequência de uma reportagem que comprometia o ministro da Defesa social-cristão, Franz Josef Strauß. Mas o movimento de solidariedade com Der Spiegel obrigou à libertação dos jornalistas e conduziu finalmente à demissão do ministro.

Por outro lado, o contencioso entre Der Spiegel e o Governo de Adenauer, ou a solidariedade que em 1962 recebeu entre muitos outros do SPD, não colocava a revista na órbita de alguma das esquerdas do poder em solo alemão. Assim, Der Spiegel foi em 1974 apodado de „Scheißblatt“ [folha de merda] pelo chanceler social-democrata Willy Brandt e viu em 1978 os seus escritórios em Berlim Leste serem encerrados por alegada ingerência nos assuntos da RDA.

Apesar de mais tarde ter sido posto em causa o silêncio de Der Spiegel sobre o curriculum nazi de alguns redatores seus de segundo plano, essas denúncias nunca tiveram o mesmo peso que na história de Die Zeit. Em 1974, Der Spiegel podia exibir os seus pergaminhos de imprensa crítica sem o embaraço de várias ambiguidades que abundavam na atormentada história de Die Zeit.

Ao irromper a Revolução dos Cravos, Jutta Fischbeck era quem na redação de Der Spiegel se encontrava em melhores condições para acompanhar os acontecimentos em Portugal. Com a mesma idade do seu homólogo em Die Zeit, Horst Bieber, Fischbeck tinha uma inclinação política bem diferente: no obituário que em 1982 lhe dedicou por ocasião da sua morte prematura, Der Spiegel havia de descrevê-la como “uma esquerdista combativa, com critérios claros de moral política”.

Fluente em castelhano e com uma experiência que ao longo da sua carreira se foi alargando na Península Ibérica, na América Latina e na África lusófona, a jornalista conseguiu chegar à fala com diversos protagonistas da revolução portuguesa. Ela entrevistou para Der Spiegel figuras como Mário Soares, Costa Gomes, Otelo ou Álvaro Cunhal, que em geral permaneceram ausentes nas páginas de Die Zeit.

Mas, fosse a tradição mais conservadora como em Die Zeit ou mais crítica como em Der Spiegel, fossem as inclinações mais de direita como as de Bieber ou mais de esquerda como as de Fischbeck, a missão que esperava os dois semanários era praticamente uma missão impossível de cumprir plenamente, quer pela distância a que se encontravam os postos de observação respetivos, quer pela complexidade própria do fenómeno revolucionário.
Primeira semana: uma imprensa apanhada de surpresa
No primeiro trimestre de 1974, Horst Bieber acompanha ainda à distância, de forma mais ou menos rotineira, as notícias que vão chegando do Portugal pré-revolucionário. O tom genérico da sua escrita é o do mainstream atlantista: crítico da ditadura de Marcelo Caetano (na foto) e da sua intransigência colonial, favorável a uma mudança de regime, e favorável sobretudo a que ela se faça por via gradual e pacífica.
(Arquivo RTP)

Ao longo do processo revolucionário, as suas análises e prognósticos irão por vezes suportar mal o confronto com a realidade. Nem uma apurada competência jornalística podia arrogar-se a pretensão de captar à distância o ritmo frenético da revolução.

O primeiro erro de paralaxe visível na escrita de Bieber é a sobrestimação da extrema-direita nas vésperas da revolução (figuras como Tenreiro, ou Casal Ribeiro, que não chega a nomear). Depois, nos primeiros tempos do PREC, essa sobrestimação passará a incidir sobre supostas ameaças de golpe restauracionista.

Num artigo escrito em 1974, já nos últimos dias da ditadura, sustentava o nosso autor que o livro de Spínola “Portugal e o futuro” motivara a direita mais ultramontana a sair da sua modorra e a lutar com algum sucesso por uma quota de poder. A ideia de uma extrema-direita que reforça o seu controlo sobre o Governo dissimulava, contudo, ao observador alemão a realidade de um Governo que perdia controlo sobre o país.

Esta prosa, escrita em vésperas do levantamento militar da quinta-feira 25 de Abril, só é publicada por Die Zeit na edição da sexta-feira 26 de Abril – com 24 horas de atraso para ter ainda alguma atualidade. No momento da sua publicação, encontra-se reduzida a uma mera curiosidade arqueológica.

Mais sorte com a data da revolução teve o concorrente Der Spiegel. Da quinta-feira 25 de Abril até à segunda-feira da sua publicação habitual decorreram quatro dias preciosos para qualquer jornalista decidido a recuperar o atraso.
(Arquivo RTP)

artigo que Der Spiegel então publica contém já um relato bastante circunstanciado da sublevação: refere a transmissão da “Grândola, vila morena” pela rádio, como sinal para a saída das tropas; o apelo aos médicos para que compareçam nos hospitais; a coincidência com a saída dos navios para o exercício da NATO “Dawn Patrol”; a detenção na Praça do Comércio de um oficial indeciso por um insurreto muito mais determinado [Pato Anselmo detido por Fernando Brito e Cunha].
  
O artigo não assinado enumera também alguns dos mais significativos antecedentes da revolta. Descreve o anterior ambiente de repressão policial, censura à imprensa, partido único e parlamento fantoche, tudo sobre o pano de fundo de uma realidade social desoladora. Refere igualmente a insegurança da ditadura portuguesa nas suas relações com o Exército e a incapacidade deste para conter os movimentos de libertação nas colónias africanas.

Der Spiegel constata a facilidade com que caiu a ditadura (“quase não se ouviu um tiro”), mas ignora, entre os factos relevantes da sublevação, aquele que se tornou consensualmente reconhecido como um dos mais marcantes da jornada: o apelo dos capitães a que o povo permanecesse em casa, bem como o afluxo à rua de enormes multidões que desacataram essa ordem de confinamento.

E debate-se, sobretudo, com uma evidente dificuldade em analisar os planos de Spínola para as colónias. Especula, nomeadamente, sobre a possibilidade de o general ter uma agenda secreta para reconhecer a independência das colónias, vendo-se obrigado a ocultá-la temporariamente para não antagonizar “as dinastias económicas portuguesas, os colonos brancos do ultramar e possivelmente também sectores do Exército”.
(Arquivo RTP)

Com uma semana de atraso sobre o 25 de Abril, Die Zeit regista depois, em três artigos, a viragem radical que sofreu a situação. Num deles, Horst Bieber comenta finalmente o facto, admitindo a sua surpresa perante a facilidade com que a ditadura implodiu: “Ao primeiro abalo sério, o regime português desabou como um castelo de cartas”.

O jornalista que ainda na semana anterior se insurgia contra um regime colonial intratável e contra um governo refém da extrema-direita, passa a tomar como alvo a eventualidade de um governo socialista e a agitação dos grupos de esquerda pela independência das colónias. Esta agitação, adverte, torna “mais provável um contragolpe da direita”.
 
Em caixa publicada na mesma edição de Die Zeit, enumeram-se diversas medidas tomadas pela Junta de Salvação Nacional. Supõe-se ainda que a libertação de presos políticos possa excluir aqueles que tinham participado na luta armada antifascista.

Mas, no momento da publicação, mais uma vez, a prosa de Die Zeit já se encontra irremediavelmente ultrapassada e o desiderato spinolista de manter na cadeia os presos da luta armada já foi derrotado por pujantes manifestações de solidariedade, e também pela solidariedade dos próprios presos políticos em sentido estrito, que recusaram ser libertados enquanto não o fossem também os da luta armada (na foto: a libertação de Palma Inácio).
(Arquivo RTP)
Spínola, para que o poder não caia na rua
Num outro artigo publicado no mesmo dia, Bieber apresenta um perspicaz diagnóstico do processo de desmoralização sofrido pelas tropas, que em última análise explica a existência de um potencial de revolta suficiente para não se ter esgotado na derrota sofrida em Março pela Revolta das Caldas.

Ele refere também brevemente o “élan revolucionário e o entusiasmo das massas, que faz lembrar o da insurreição húngara de 1956, e [que] não estava nos planos dos putschistas”, acrescentando o facto histórico bem conhecido de o ditador, Marcello Caetano, ter transmitido o poder a Spínola “para que ele não caia nas mãos da populaça”, segundo a fórmula aproximativa que o jornalista entendeu citar.
(Arquivo RTP)

O artigo denota ainda assim um défice de informação sobre a realidade portuguesa, expectável em qualquer redação apanhada de surpresa pela revolução, ao referir a suposta tortura dos oficiais conjurados pela PIDE, escassos dias antes do levantamento. Pelo contrário, a polícia era habitualmente contida no tratamento da elite castrense, e esta, nos meses seguintes, pagou-lhe na mesma moeda.

Por isso, Bieber erra também quando atribui a resistência desesperada da PIDE ao seu receio de sofrer a ira “dos novos senhores”: ao abater quatro manifestantes e ao ferir vários outros, a polícia resistia por medo à rua. Nos meses seguintes, os agentes presos continuariam aliás a receber os seus vencimentos e a beneficiar de proteção por parte dos “novos senhores”.

Bieber não deixa dúvidas sobre a sua simpatia pela figura de Spínola, que define como um “general ultraconservador”, mas “com um apurado sentido de fair play e de decência política” que deverá funcionar como “uma figura paternal para a população e uma força aglutinadora para as correntes heterogéneas das Forças Armadas”. 

Os elogios que o nosso autor tece à figura do general não o deixam, contudo, enganar-se sobre o sentido autoritário do projeto spinolista, que resume assim: “Vagas associações de interesses, sim; partidos políticos, talvez; experiências socialistas – não!”. E, muito especialmente, não o deixam enganar-se sobre os planos de Spínola para as colónias, como adiante veremos.
“Uma revolução amável”
Como a justificar-se pela sobreavaliação que, ainda no dia 26 de Abril, publicara sobre a extrema-direita do regime marcelista, Die Zeit dará ainda à estampa, duas semanas depois, um artigo de José Cardoso Pires, confessando que ele próprio e outros cometeram erro idêntico na própria madrugada da revolução: “Quando às cinco da manhã me acordou a notícia transmitida por telefone, de que estavam a entrar em Lisboa colunas militares, pensei logo que tinha chegado a hora dos ultras e com ela a das ações punitivas”. Do outro lado da linha telefónica, diz o escritor, alguém o avisava: “Fuja! Começou a caça à democracia!”

Mas, ao sair para a rua, Cardoso Pires deparou com um espectáculo diametralmente oposto: “Os soldados confraternizavam com as pessoas; sorrisos, abraços, lágrimas de alegria – eram soldados da liberdade. Não receavam a rua; iam ao encontro dela”. O escritor relata também que, enquanto helicópteros voavam a baixa altitude, “a cidade partilhava pão e cigarros com os libertadores, subia aos blindados e cantava”.
(Arquivo RTP)

Prossegue, depois, com uma evocação dos cravos vermelhos – a flor da revolução, rapidamente investida de enorme popularidade, porque “era mais barata do que nunca neste ano em que a colheita tinha sido especialmente rica”. E sublinha ainda o carácter pacífico da revolução e o facto de os militares não se dirigirem à população com ordens, mas com pedidos e apelos.

Tal como Bieber em Die Zeitum artigo publicado em Der Spiegel na primeira semana de maio sublinha o carácter incruento da revolução: “Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial foi derrubada uma ditadura na Europa, com tanta facilidade, tão pouca efusão de sangue, tão rapidamente, como se se tivesse tratado de um simples exercício”.

O que não deixa de constituir um paradoxo e de oferecer um espetáculo inesperado: “Soldados de um Exército que ainda ontem massacrava mulheres e crianças na última guerra colonial deste mundo protegem agora os seus concidadãos, com um cravo vermelho no cano da espingarda, contra membros incontroláveis da polícia política”.

A liberdade de que continua a gozar um Kaúlza de Arriaga, a adaptação aos novos tempos de magnates como Jorge de Mello – tudo parece confirmar a ideia, retomada da Rádio Renascença, de “uma revolução amável, quase como no teatro ou no cinema”.
(Arquivo RTP)

Ao contrário de Bieber, Der Spiegel desdramatiza o perigo restauracionista e constata que a direita perde por falta de comparência, sentindo-se intimidada numa situação que ainda não acabou de compreender: “Assustada com a sua súbita e completamente inesperada expulsão do poder, permanece prudentemente na sombra”.

O artigo debruça-se sobre as tensões internas das Forças Armadas e ilustra-as com a desobediência dos artilheiros à ordem de fogo de um brigadeiro [Junqueira dos Reis] contra as forças estacionadas na Praça do Comércio, citando o comentário jocoso de um capitão sobre a eventualidade de um contragolpe: “Acredita que os generais vão conduzir blindados?”.

Na mesma edição, em entrevista a Mário Soares, a entrevistadora parece dar no entanto algum crédito à eventualidade de um contragolpe e prevê dificuldades para estabelecer a democracia num país onde não há hábitos democráticos.
“Uma vaga de greves percorre o país”
No final de maio, Die Zeit noticia a formação do I Governo Provisório e emite depois, pela pena de Horst Bieber, um comentário elogioso para Spínola, que na composição do gabinete teria cometido uma façanha de equilibrista, demonstrando “intuição do possível e conhecimento do necessário”.

O talento e a sensatez de Spínola estariam, segundo Bieber, ilustrados pela escolha de Palma Carlos, “um conservador correto com uma faceta liberal”, visto como “um símbolo da desejada ‘evolução na continuidade’”.

Forçado a observar à distância a realidade portuguesa, Bieber comete aqui um lapso evidente: a “evolução na continuidade” era um slogan do deposto Governo marcelista e, mau grado o inegável conservadorismo de Palma Carlos (na foto), ele em caso algum desejaria confundir-se com essa linguagem caída em desgraça.

(Arquivo RTP)

Em todo o caso, no balanço global da composição do Governo, o nosso autor exulta, porque os ministros socialistas e comunistas ficaram em minoria, o que significa que “não aconteceu a receada tomada do poder pela esquerda”.

Os motivos de preocupação de Bieber são outros e têm que ver com o que se passa na rua: “Uma vaga de greves percorre o país. Entretanto, já não se trata do saneamento de fascistas nas administrações das empresas. Trata-se muito mais de mínimos salariais”.

É precisamente esta realidade explosiva que no início de Junho atrai também as atenções de Der Spiegel, num artigo sem assinatura. Partindo de um nível médio de salários equivalente a uns 300 marcos, a vaga grevista reclama um salário mínimo equivalente a 600, mais 30 dias de férias, semana de 40 horas e o saneamento dos chefes mais detestados.

O Governo, com a pasta do Trabalho entregue a um ministro comunista, limitou-se a aumentar o salário mínimo para 3.300 escudos (equivalente a 330 marcos), com pouca expectativa de que a medida aplaque uma conflitualidade sempre reanimada pela inflação (30 por cento).

Os aumentos salariais, sublinha o artigo, poderão tornar inviáveis as pequenas empresas que vivem de salários baixos e provavelmente agravarão ainda a já galopante inflação. A reforçar esta profecia, o artigo apresenta um rol de movimentos reivindicativos desencadeados imediatamente a partir do 25 de Abril. Na primeira semana de governação de Palma Carlos, terão entrado em greve entre 40.000 e 60.000 trabalhadores. 

Os comunistas, diz-nos o artigo, “o partido com a melhor organização do país, mobilizam toda a sua influência sobre as massas para acalmar a agitação social e para impedir as greves”. No início de julho, uma entrevista com Álvaro Cunhal (na foto) dá bem a medida da moderação de linguagem que se tornou a marca do PCP, com a afirmação de que o partido apenas apoia as greves “em que os trabalhadores defendem os seus interesses”.
(Arquivo RTP)

A dinâmica da revolução portuguesa suscitava entretanto movimentações visando um golpe. Mas, ao contrário do receio expresso nas colunas de Die Zeit, essas movimentações não provinham de restauracionistas ostracizados pela revolução, e sim do interior do próprio bloco de forças que entretanto se guindara ao poder. A haver algo, seria um auto-golpe. E, com efeito, no início de Julho, presidente e primeiro-ministro empreendem uma tentativa para impor a sua autoridade.
A queda do Governo Palma Carlos
Em meados de Julho, um artigo de Der Spiegel explica a intentona por divergências entre os ministros civis da esquerda e da direita, e entre o MFA e a cúpula militar spinolista. A mais importante diz respeito à independência das colónias, com a esquerda a preconizar uma independência incondicional e com a direita a tentar ganhar tempo por via de um referendo.

A estas divergências de fundo vêm juntar-se incidentes que nada contribuem para distender o ambiente político, como a nomeação de Veiga Simão, antigo ministro da ditadura, por decisão de Spínola, para o posto de embaixador na ONU – uma escolha a destoar da anunciada política descolonizadora.

No meio desta atmosfera de crise, diz-nos o artigo, o primeiro-ministro Palma Carlos avançou uma proposta que previa mais poderes para si próprio, antecipação das eleições para a Presidência da República e adiamento das eleições para a Constituinte. A recusa da proposta por larga maioria do Conselho de Estado leva à demissão de Palma Carlos.
 
Na semana seguinte, um outro artigo de Der Spiegel comenta já a formação do II Governo Provisório, chefiado por Vasco Gonçalves, e a criação do Copcon, chefiado por Otelo Saraiva de Carvalho. Na imprensa começaram entretanto a surgir interpretações destes desenvolvimentos como “tomada do poder por oficiais de esquerda”. Vasco Gonçalves não é ainda apontado como um expoente da viragem à esquerda, mas como o “coronel de aparência ascética” que vai à televisão desmentir tais comentários.

Por seu lado, Die Zeit admite num pequeno artigo sem assinatura publicado a 19 de julho que a crise fora desencadeada pela reclamação de mais poderes por parte do primeiro-ministro, bem como pela sua pretensão de fazer plebiscitar uma Constituição provisória e um presidente da República – ou seja, o próprio Spínola. Die Zeit mostra-se quase tão pouco informado como Der Spiegel sobre os antecedentes e inclinações de Vasco Gonçalves e apenas deixa transparecer alguma inquietude ao considerar “surpreendente” a sua nomeação.
O PCP, decisivo para travar as "greves selvagens"
No início de agosto, Die Zeit publica um artigo enviado de Lisboa com a assinatura de Heinrich Jaenecke, referindo “o boato de que o general António Spínola, o salvador da pátria, está a pensar em demitir-se”, na sequência da queda do Governo Palma Carlos. O autor vai advertindo que Spínola afinal “não era o homem forte que muitos observadores estrangeiros julgavam” – um reparo que poderia ser dirigido à avaliação até aí apresentada pelo colega de redação Horst Bieber.

Segundo o autor, “a crise terminou com um inequívoco aumento de poder para o ‘Movimento’”, que tomou, através do seu decano, Vasco Gonçalves, a chefia do Governo. Os oficiais do MFA são em parte desconhecidos do grande público: “Na sua maioria têm menos de 40 anos e nenhum deles tem experiência de administração civil”.
(Arquivo RTP)

No balanço da crise, viu-se também reforçado o PCP, que “tomou partido pelos militares e contra o civil Palma Carlos”. Ainda segundo o artigo, o PCP é entretanto “o mais forte aliado natural do ‘Movimento’”, em parte por ter sido “o chefe do PCP, Álvaro Cunhal, e não o general Spínola, quem parou as greves selvagens”.

Por outro lado, Jaennecke lembra que “a grande massa dos portugueses viu na revolução a promessa de um nível de vida melhor e para centenas de milhares de trabalhadores o fim da ditadura traduziu-se em aumentos de salário, férias mais longas e outras regalias sociais”.

Mas, acrescenta, “algum dia será preciso pagar a fatura, e já hoje a taxa de inflação e o número de desempregados subiu de modo alarmante. Por enquanto os comunistas e os socialistas continuam comprometidos com a disciplina da situação de emergência, mas eles não vão querer ficar para sempre no papel de sargentos ao serviço dos jovens oficiais, e não vão poder fazê-lo quando houver eleições à porta”.

A análise de Jaennecke prestava-se à interpretação de que Die Zeit tivesse reavaliado, num sentido muito mais crítico, o papel de Spínola. E, com efeito, Thomas Weißmann, um investigador da Universidade de Chemnitz, assim a interpretou, afirmando que, “enquanto Spínola tinha sido apresentado anteriormente como fator de estabilização no processo revolucionário, a partir do verão desse ano, a imagem projetada do General Spínola denota uma notória perda de credibilidade”.

Esse descrédito, ainda segundo Weißmann, ter-se-ia acentuado especialmente a partir de 28 de setembro: “Depois da demissão de Spínola, Die Zeit caracterizou-o como um aristocrata teatral e despótico, incapaz de abandonar as suas ligações ao regime derrotado”. Mas, como adiante veremos, a análise de Jaennecke não é consensual no semanário, em especial por parte de Horst Bieber, que vai manter-se fiel admirador de Spínola até muito mais tarde.
O futuro das colónias no centro da política metropolitana
Numa primeira reação ao 25 de Abril, Der Spiegel tinha especulado, como vimos atrás, sobre a existência de supostos planos anticoloniais que Spínola estaria guardando no seu foro íntimo, para não alarmar a direita. Bieber, pelo contrário, no seu entusiasmo pela política de Spínola, fora mais perspicaz e entendera desde o primeiro instante que este procurava denodadamente manter o máximo possível de controlo português sobre os territórios africanos.

Ele enuncia os objetivos do general com uma fórmula que retrata bem a esquizofrenia do programa spinolista: "Acabar com a guerra colonial, mas conservar as colónias". E interroga-se: “Será o problema de África resolvido de uma forma tão compensadora para Portugal, para os colonos brancos e para os movimentos de libertação, que lhes permita aceitarem fórmulas de compromisso sem perderem a face?”.

Entretanto, também Der Spiegel irá entender rapidamente que Spínola (na imagem, em encontro com Mobutu, na ilha do Sal) não tem, afinal, qualquer agenda cripto-independentista. A idealização que dele esboçara num primeiro momento dura pouco. Logo no início de maio, o general é ridicularizado, com a sua imagem de monóculo e pingalim, como “uma caricatura do senhor colonial português”.
(Arquivo RTP)

Mesmo assim, o artigo em causa continua a acreditar a lenda de Spínola “várias vezes” se ter encontrado secretamente com responsáveis do PAIGC e - cúmulo da fantasia - possivelmente com o próprio Amílcar Cabral.

Num ponto o artigo deixa de alimentar dúvidas: “o general continua a encarar os territórios ultramarinos como ‘requisito essencial para a nossa sobrevivência’”. Logo após o 25 de Abril, por se terem apercebido desta atitude, os movimentos de libertação africanos denunciaram repetidamente a perigosidade deste novo-velho inimigo, porventura superior à do regime fascista.
Os soldados coloniais que "fazem greve à sua maneira"
Na semana seguinte, Der Spiegel enumera em novo artigo várias discrepâncias entre o ritmo do processo político na metrópole e nas colónias. Nos territórios africanos, a PIDE está ainda por desmantelar, as milícias de colonos continuam de pé e os jornais continuam a passar pela censura antes de virem a público.

O artigo explica as diferenças pela política spinolista, de conservar o controlo das colónias na perspectiva de uma “Commonwealth lusitana”, e pela preocupação de tranquilizar os colonos. As reações dos movimentos de libertação são claras: o líder angolano Agostinho Neto usa a metáfora do búfalo que, depois de ferido, tem de ser morto, para não se tornar ainda mais perigoso; e o líder moçambicano Samora Machel (na foto) anuncia uma “ofensiva geral”.
(Arquivo RTP)

Três semanas depois, Der Spiegel refere-se à situação nas colónias africanas, com especial destaque para Moçambique, onde um movimento grevista significativo traduz o despertar de uma consciência política da população negra.

E, acrescenta o artigo, “os próprios soldados coloniais de Portugal e entre eles especialmente os negros fazem greve à sua maneira: saídas em patrulha já só se fazem de forma negligente e as baixas por doença, nomeadamente na guarnição de Vila Pery, atingiam no fim do mês passado os quarenta por cento”.

No que diz respeito aos colonos, estes oscilam entre o pânico e a obstinação de resistir à vaga independentista. Em muitos casos, a debandada anuncia-se no elevado número de pedidos de emigração para a África do Sul, ou na corrida aos bilhetes de avião para a metrópole. Em muitos outros, a determinação de ficar traduz-se, por exemplo, no facto de uma centena de colonos alemães da região de Vila Pery terem pedido ao Exército português armamento ligeiro e pesado.

Sem surpresas, é precisamente em Moçambique que irá ocorrer no início de setembro uma tentativa de golpe contra a descolonização - de certo modo um ensaio geral do putsch abortado em Portugal três semanas depois.
A NATO e o “valor estratégico” de Cabo Verde
Mas, em junho, a crise moçambicana ainda se encontra em gestação e as negociações com o PAIGC sobre o futuro da Guiné parecem ser relativamente simples, porque o pequeno país pesa pouco no conjunto da economia colonial. O único ponto controverso dessas negociações, diz um curto artigo publicado por essa altura em Die Zeit, é a pretensão do PAIGC a incluir nelas o futuro de Cabo Verde.

E aqui, sublinha o artigo, não deverá esquecer-se “o significado estratégico [de Cabo Verde] para a NATO”, sendo que a resistência oposta pela diplomacia portuguesa à reivindicação do PAIGC representa também interesses da aliança atlântica.

Em meados de Agosto, novo artigo de Die Zeit volta ao tema de Cabo Verde, assinalando a recomendação unânime da Assembleia Geral da ONU para que a Guiné-Bissau seja aceite como 138º Estado membro da organização.

O artigo traça um breve resumo do percurso que conduziu a este ponto, voltando a sublinhar que Spínola não reconheceu a integração do arquipélago de Cabo Verde no novo Estado. E compraz-se em lembrar que “para Portugal e para os restantes países da NATO o que conta acima de tudo é o valor estratégico [de Cabo Verde]”.

Duas semanas depois, um artigo assinado por Bieber e com o significativo título “Cravos murchos” refere a assinatura do acordo de Argel (na foto), em que Mário Soares reconhecera a independência da Guiné-Bissau. O autor festeja o que diz ser “um êxito do general Spínola na sua disputa de poder com o ‘Movimento das Forças Armadas’”.
(Arquivo RTP)

Segundo Bieber, o braço de ferro entre Spínola e o MFA saldou-se no caso da Guiné-Bissau num acordo em que “o PAIGC teve de aceitar que os habitantes das ilhas de Cabo Verde decidirão, eles próprios, sobre o seu futuro”. Spínola, sustenta o nosso autor, beneficia também da sua superior visão de futuro: enquanto os “jovens oficiais” só pensam em desfazer-se das colónias “o mais depressa possível”, Spínola quer “conservar o que possa ser conservado”.

Mas Der Spiegel acabará por ganhar com o seu silêncio quase sepulcral sobre o tema. Os factos em breve se encarregarão de mostrar que, na sua arreigada convicção atlantista, Die Zeit confundiu desejos com realidades: no final de 1974, a diplomacia portuguesa vai abrir mão de Cabo Verde sem relutância de maior. 

O novo Estado independente será governado pelo mesmo PAIGC que conduzira a luta anticolonial na Guiné e que entretanto já instalara em Bissau o governo trazido das zonas libertadas. O PAIGC vai manter-se à frente dos destinos dos dois Estados, Guiné e Cabo Verde, até ao golpe de Estado de Nino Vieira, em 1980.
Utopia autonomista e fantasias de independência branca
Entretanto, no início de agosto, por ocasião de um discurso de Spínola, um artigo de Die Zeit diz ter havido em África uma ampla confraternização entre negros e brancos a festejar a promessa de independência feita pelo presidente português às colónias.

O comentário volta a ser largamente favorável a Spínola: “O general encontrou palavras à altura da grandeza desta decisão: ‘Alcançámos a mais difícil de todas as vitórias: a vitória sobre nós próprios, sobre os nossos erros e contradições’”.

Seguidamente admite-se uma contradição do próprio Spínola, mas sempre em tom benigno: “Quando no início do ano ele se colocou à cabeça do golpe militar, pretendia pôr fim à guerra de treze anos, mas não destruir um império de cinco séculos. Primeiro, os súbditos de cor deviam simplesmente obter a autonomia, para poderem gradual e tranquilamente preparar-se para a independência plena”.

Die Zeit não considera, portanto, o projeto autonomista como  cedência tornada inevitável pela longa guerra de libertação, antes quer ver nele um passo calculado pelo colonialismo para aproximar gradualmente a independência.

De qualquer modo, Die Zeit vai admitindo que a “pressão” de jovens oficiais inexperientes, inimiga jurada da racionalidade política, torpedeia o plano neo-colonial: “Uma Commonwealth lusitana entre Portugal, Brasil e os três novos Estados africanos, que fale uma língua e não conheça discriminações de raça – por enquanto nada disto passa de um belo sonho”.

A locução “por enquanto” reflete o apego a um projeto que ainda não se dá por inteiramente malogrado. Mas o ritmo da revolução é implacável: a utopia autonomista passou meteoricamente pela cena política e nunca chegará a ter relevância. Sobre a mesa, nas colónias, fica apenas a alternativa de um putsch para a independência branca ou de negociações que reconheçam a vitória dos movimentos de libertação.
“Disparar sobre colonos brancos se necessário”Bem diferente de Die Zeit, a imagem veiculada em Der Spiegel sobre o futuro imediato das colónias situa-se nos antípodas do cenário de independência branca, imposta pelos colonos em conivência com uma parte do Exército.

Em meados de Agosto de 1974, uma entrevista com Mário Soares vai ao ponto de apresentar, num título sensacional, a disposição deste para mandar “disparar sobre colonos brancos se necessário”. 

No entanto, uma leitura atenta da entrevista mostra que Soares não pronunciou a frase como as aspas sugerem, embora tenha confirmado o pressuposto da pergunta em que Jutta Fischbeck usou essas palavras, dizendo: “O Exército não hesitará nesse caso, e não pode hesitar. O Exército já mostrou que tem mão firme e que pretende manter a ordem a qualquer preço”. O scoop não era tal mas a resposta não deixava de conter alguma coisa de sensacional.

No início de setembro, Der Spiegel entrevistará novamente sobre as colónias um dos responsáveis do poder da metrópole. Em conversa com o general Costa Gomes, Jutta Fischbeck glosa o mesmo tema que colocara a Mário Soares: “Irão as Forças Armadas impô-la [a descolonização] mesmo contra a vontade da população branca nas colónias?”

A resposta do general difere radicalmente da resposta de Soares: “É claro que a descolonização, principalmente em Angola, não pode fazer-se sem a concordância dos brancos, porque os brancos constituem em Angola o maior grupo de população, por assim dizer a maior tribo”.

A entrevista é feita em vésperas do golpe dos colonos em Moçambique e reflecte com precisão as instruções que Lisboa procura fazer cumprir pelas tropas ainda estacionadas na colónia.
As tropas portuguesas “cansadas e humilhadas”
Em artigo publicado no início de agosto com as assinaturas A.M. e J.J., Die Zeit despoja-se por um momento da sofisticada análise geoestratégica em torno de Cabo Verde e passa a apresentar a linguagem sóbria da reportagem feita in loco.

De Moçambique, os autores relatam que as tropas portuguesas começaram a evacuar as suas posições no norte do território: “Cansadas e humilhadas, elas abandonaram dezenas de posições na vizinhança da Tanzânia e da Zâmbia. Ainda antes de se ter proclamado um cessar-fogo, o Exército, por si mesmo, acabou com a guerra”.

A.M e J.J. referem também as movimentações de colonos e o surgimento de partidos africanos, improvisados para contestarem a previsível hegemonia da Frelimo. Descrevem a implantação da Frelimo nas regiões libertadas do norte do país, com escolas, creches e hospitais no meio do mato, mas sublinham ao mesmo tempo a dificuldade que o movimento teria para criar uma estrutura comparável em ambiente urbano.
 
Nesse Inverno moçambicano de 1974, Der Spiegel também aí tem dois jornalistas e ambos traçam igualmente o quadro de uma presença colonial em recuo. O jornalista Hans Hielscher relata que a atividade de construção foi suspensa, o turismo está paralisado e os navios se acumulam no porto de Lourenço Marques sem serem descarregados. A Siemens já enviou para a Alemanha as famílias dos trabalhadores que tem em Cahora-Bassa (na foto) e a frota de guerra norte-americana prepara-se para evacuar os cidadãos dos EUA. 
(Arquivo RTP)

Entre funcionários públicos e profissionais liberais, difunde-se uma atitude ambígua, de ganhar a simpatia da Frelimo para poder ficar e, ao mesmo tempo, de preparar a fuga para Portugal se tiver de ser.

Para alguns o desespero não tem remédio e o exemplo mais claro é precisamente o do cônsul-geral alemão, Wilhelm von Keudell, que no fim de 1973 ainda manifestava confiança no futuro da presença portuguesa, mas no início de setembro de 1974 já dizia ao jornalista de Der Spiegel que o país ia ser “atirado aos lobos”. Profundamente deprimido, o antigo oficial nazi produziu estas afirmações num dia e suicidou-se no dia seguinte.

O artigo de Hielscher regista o colapso da antiga ordem mantida pelo Exército e pela PIDE, com oito milhões de negros a ouvirem falar de política pela primeira vez. Agora, essa ordem ruiu e “muitos assalariados utilizam o vazio de poder para sublevações – e assim arruínam a economia do país. Embora os seus salários por dia tenham subido devido às greves, de 80 para 190 escudos e mais, os estivadores de Lourenço Marques demoram atualmente de modo catastrófico o transbordo de mercadorias através do ‘trabalho segundo as normas’”.

A Frelimo é considerada impreparada para exercer o poder, porque os seus dirigentes, “compreensivelmente, sabem mais sobre Kalashnikows e sobre táctica de guerrilha do que sobre administração”. Mas nota-se que colonos portugueses e alemães da Beira ficaram agradavelmente surpreendidos ao ouvirem pela primeira na rádio um comandante da Frelimo, em português macarrónico, a reclamar disciplina, trabalho árduo e nada de greves, alcoolismo, tabagismo e prostituição.
7 de setembro: o putsch abortado em Moçambique
Entretanto, Horst Bieber intervém nas páginas de Die Zeit a emendar o tom pró-independentista da reportagem atrás citada A.M. e J.J., e comentando já a tentativa de golpe em Moçambique. 

A notícia do acordo de Lusaka (na foto), prevendo um governo com maioria de ministros da Frelimo, caíra como uma bomba nas duas maiores cidades moçambicanas. Os colonos sublevaram-se, ocuparam o aeroporto, a emissora de rádio e os principais edifícios da administração em Lourenço Marques, e depois também na Beira. 
(Arquivo RTP)

Segundo Bieber, “a rebelião alastrou como um incêndio florestal e ganhou cada vez mais aderentes na população negra”. Sobre a reação da Frelimo, Bieber descreve-a da seguinte forma: “Ela fez saber que retomaria imediatamente a luta de guerrilha se Lisboa não reprimir sem demora o putsch”.

O autor manifesta a esperança de que o Governo português não ceda ao ultimato da Frelimo, e sustenta que “a maioria dos brancos e uma grande parte dos africanos, agora unidos num movimento democrático, recusam o papel dirigente da Frelimo”.

Mas tanto a ideia de “uma grande parte dos africanos” como o alegado carácter democrático desse movimento estavam já a ser desmentidos pela realidade. O próprio Almeida Santos, na altura ministro da Coordenação Interterritorial, havia de admitir nas suas memórias que se estava perante “uma revolução de supremacia branca”.

Aquilo que de facto alastrou como um incêndio florestal, foi a sublevação espontânea do “caniço”, controlando as estradas e, finalmente, fazendo abortar o golpe. Nessa cintura suburbana, a Frelimo, guerrilha rural que nunca aí tivera implantação significativa, torna-se também, de um dia para o outro, um partido urbano com apoio de massas.

A organização “Galo” é improvisada por iniciativa local como posto de comando da insurreição, com assumidas simpatias pela Frelimo, mas sem manter com ela qualquer ligação orgânica.
Prolongar a guerra em Angola depois da derrota em Moçambique?
Por seu lado, também Der Spiegel relata a ocupação da rádio e a libertação de agentes da PIDE em Lourenço Marques, seguidas por mobilizações de colonos noutras cidades, na expectativa vã de serem apoiados pelas vizinhas África do Sul e Rodésia.

Mas o artigo reconhece a realidade que escapou à análise de Bieber. O verdadeiro motivo de pânico entre os colonos não é a Frelimo, e sim a insurreição do caniço (na foto): “No sul foram negros mais perigosos do que a disciplinada tropa da Frelimo a tomarem o poder após o colapso da revolta branca – a populaça. [O jornalista de Der Spiegel Paul Schumacher] viu dúzias de carros virados e queimados. Africanos armados com paus, machados e pedras controlavam o trânsito com barreiras na estrada e roubavam as bagagens”.
(Arquivo RTP)

O governo português da colónia reagiu anunciando que as ruas de Lourenço Marques passariam a ser patrulhadas em conjunto pelo Exército português e pela Frelimo.O tenente-coronel Jorge Ribeiro Cardoso, um dos responsáveis da Força Aérea portuguesa recorda a imagem, que viu do ar, de multidões negras da “cidade do caniço” a avançarem sobre a “cidade do cimento” e comenta: “Foi de arrepiar”. O fim do Império. Memória de um soldado português. Alfragide: 2014, Ed. Caminho.

Ao abortar o golpe, clarificava-se a situação em Moçambique. Ficava por clarificar a de Angola, com as mais cobiçadas riquezas naturais e com o poder a ser disputado por três movimentos independentistas.

A ela se refere, em Die Zeit, o artigo de Bieber citado atrás, relevando a existência de uma minoria de colonos “perigosamente forte”, que não aceitará “um Estado negro de Angola”, que não hesitará em pegar em armas e que se move para impor uma solução de tipo rodesiano.

Afinal, porém, a montanha acabaria por parir um rato. A forte minoria de colonos de Angola apressou-se a fazer as malas e só nisso não hesitou. Vacinada pelo fracasso do golpe em Moçambique, nem sequer esboçou em Angola alguma tentativa parecida.

Isto ainda Bieber não podia profetizar em setembro de 1974. Segundo a sua análise, “Lisboa está agora a pagar a fatura para a tentativa de se desfazer das colónias o mais depressa possível”. E, mais uma vez, enaltece aqui a visão de Spínola: “Confirma-se agora o que o presidente de Portugal Spínola disse a um jornalista alemão logo no mês eufórico de maio: ‘Quem fez a guerra durante 13 anos, devia poder esperar 13 meses pela paz”.

Mas o prolongado desgaste sofrido com a guerra não predispunha ninguém a aceitar novos adiamentos da paz. Pelo contrário, ao manifestar a disposição para dilatar as hostilidades por mais 13 meses, Spínola criava para si próprio um dilema de ferro: ou instaurar uma ditadura ou renunciar à Presidência.
28 de setembro: o putsch abortado na metrópole
Na metrópole, a vaga reivindicativa dos trabalhadores e a urgência dos militares em porem fim à guerra são um cocktail explosivo, que vai acumulando cada vez mais matéria inflamável. A derrota de Spínola e Palma Carlos em julho adiou os planos da direita, sem contudo os neutralizar. A fórmula do auto-golpe, que falhara em julho, voltará a ser objecto de uma tentativa, mas agora complementada com uma componente populista, a medir em presença na rua.

Ainda assim, no final de agosto, Horst Bieber volta a publicar em Die Zeit um artigo sobre Spínola, emendando o tom abertamente crítico que antes surgira no citado artigo de Jaennecke. Para Bieber, a tensão entre Spínola e o MFA explica-se porque “Spínola conhece as dificuldades duma mudança abrupta, [mas] os jovens oficiais julgam-se capazes de dominar também esta crise; o general procura o maior denominador comum; o Movimento das Forças Armadas [procura] a forma mais direta de se livrar dos problemas de Portugal”.

Sobre o simplismo que vê na atitude do MFA, o autor prossegue depois, enumerando problemas (inflação, desemprego, quebra da produção) que, na sua óptica, já permitem escrever o epitáfio da revolução: “A euforia calou-se, o cinzento quotidiano domina e a paciência é uma virtude que não falta menos aos desorientados oficiais do que ao povo”.

No início de setembro, um artigo de Der Spiegel observa que o Governo de Vasco Gonçalves colocou a TAP sob controlo militar, para que a greve dos trabalhadores da transportadora aérea não comprometesse o plano de retirada dos 20.000 militares estacionados na Guiné.

E relata depois o episódio de um motim de 600 pides detidos em Caxias, com a manifestação antifascista que o motim ocasionou às portas da prisão e com a carga policial sobre essa manifestação. O episódio conclui-se com a intervenção de uma unidade militar a expulsar a polícia e a ser aclamada pelos manifestantes.

As tensões acumulam-se e os incidentes multiplicam-se, marcando inequivocamente o caminho para uma prova de força. Um artigo de Jutta Fischbeck em Der Spiegel lançará mais tarde um olhar retrospectivo sobre alguns desses incidentes.

Nele se recorda que, após ser convocada a manifestação spinolista da “maioria silenciosa”, Vasco Gonçalves e Otelo preconizaram a sua proibição. Spínola não hesitou em fazer detê-los a ambos. Entretanto, os sindicatos convocavam pique-niques e excursões, que constituíam a camuflagem para uma espécie de estado de prevenção do movimento operário, que trata de levantar barreiras à entrada de Lisboa para revistar as viaturas em busca de armas (na foto).
(Arquivo RTP)
Quando, finalmente o MFA impôs o cancelamento da manifestação e Spínola decidiu demitir-se da Presidência, Jutta Fischbeck foi ouvir o major Canto e Castro, da Comissão Coordenadora do MFA e citou-o a dizer que “a revolução do 25 de Abril não teria sido possível sem o general Spínola, mas vai prosseguir sem ele”.

Um primeiro comentário publicado em Die Zeit e assinado com as iniciais A.H. abstém-se sempre de dar à intentona o nome de putsch e descreve-a como “uma manifestação daquela ‘maioria silenciosa’ que até aqui não tinha ousado articular as suas reivindicações políticas”.
(Arquivo RTP)

O MFA deteve, diz-nos, deteve “opositores potenciais sob o pretexto de que estes teriam planeado um golpe de direita”. Os golpistas são vistos como “opositores potenciais” e a invocação do golpe é vista como um “pretexto”.

A renúncia de Spínola é encarada como uma dificuldade adicional para o cumprimento das tarefas prioritárias do Governo: “Sem a sua colaboração – e isso sabe-o Spínola melhor do que os seus jovens camaradas – não pode ser dominada a crise económica e financeira de Portugal, que constitui a mais forte ameaça à experiência democrática”.

Com efeito, prossegue o artigo, os jovens oficiais do MFA “na sua impaciência desprezam o compromisso”. Pelo contrário, “Spínola conhecia o negócio da política; ele garantia moderação e um esforço de equilíbrio”.
 
Na mesma edição, um artigo sem assinatura reforça a imagem de Spínola como “conservador, mas ao mesmo tempo única figura aglutinadora das diversas correntes políticas”. Também aí se apresenta a tentativa golpista como uma “manifestação de massas”, desconvocada no último instante sob a pressão das Forças Armadas e da esquerda.

O artigo reproduz sem crítica várias afirmações do discurso de Spínola ao demitir-se e anuncia o início das diligências de Vasco Gonçalves para constituir um novo governo, com uma “limpeza” anunciada dos apoiantes de Spínola.
Costa Gomes: “cortiça” ou “peixe de águas profundas”?
Uma semana depois, Die Zeit vai admitir, de forma condicional, que Spínola “teria tentado tomar o poder com um golpe”, logo acrescentando que a tentativa se explica porque o general “receava que o país caminhasse para uma ditadura de esquerda”. A isto acrescenta que, “contudo, o sucessor de Spínola, o general chefe de Estado-Maior Costa Gomes, recusou-se alegadamente a confirmar a ordem de Spínola para as tropas ocuparem pontos importantes e para deterem a direcção do MFA”.

No mesmo fôlego, proferem-se portanto as últimas palavras em abono da presidência de Spínola e as primeiras em abono do general que vai suceder-lhe no cargo.
 
Uma semana depois, outro artigo publicado em Die Zeit, agora com a assinatura de Robert Gerhardt, reflecte, logo desde o título (“Sem Spínola também é possível”) , uma posição mais favorável à nova arquitectura de poder pós-spinolista. Diz o autor que a demissão de Spínola e de outros altos cargos “não é o fim do mundo” e reconhece que ele não foi no 25 de Abril “o homem da primeira hora nem o ‘grande herói e pai da revolução’”.

O artigo continua, mesmo assim, a não admitir abertamente que foi jugulado um putsch de direita. Mas, sem ser ainda um putsch, a manifestação era, admite, “um presumível ensaio geral”.

Seguidamente, Gerhardt responde às vozes que receiam, depois do afastamento de Spínola, um poder monopolizado pela esquerda: “Os tratados da NATO e todos os outros acordos nacionais e internacionais serão conservados e respeitados. O processo de descolonização é impulsionado, Portugal torna-se uma ‘democracia pluralista’”.

Costa Gomes, diz-nos ainda o artigo, garante a fidelidade ao programa do MFA e os 400 oficiais do MFA contam entre eles apenas uma minoria de marxistas.

Por seu lado, também Der Spiegel sublinha o papel continuista de Costa Gomes, em especial na política externa e na questão colonial. Referindo o encontro entre Spínola e o ditador zairense Mobutu na ilha cabo-verdeana do Sal, o semanário recorda em seguida que esse encontro teve lugar duas semanas antes da demissão do mesmo Spínola. Mas Costa Gomes, acrescenta o artigo, apressa-se agora a mandar reafirmar junto de Mobutu os acordos do Sal.

A reafirmação não resolve, em todo o caso, as tensões que se adivinhavam para o futuro imediato de Angola e pode até tê-las agravado, deixa entender o artigo. Com efeito, ao dar satisfação às expectativas do protegido de Mobutu, Holden Roberto, e da sua FNLA, Costa Gomes objectivamente encorajou este movimento a entrar em Luanda para tomar posse dos lugares que lhe estavam prometidos no futuro governo de coligação, logo desencadeando na capital angolana os primeiros combates da guerra civil, ou da proxy war, que vai assolar o país nos anos seguintes.

Mas em Portugal a renúncia de Spínola à presidência sem dúvida transfere o foco das atenções para o seu sucessor. A expectativa algo perplexa dos primeiros tempos a seguir ao 28 de setembro vai-se dissipando com o tempo e dando lugar a uma imagem mais definida.
(Arquivo RTP)

Em fins de fevereiro de 1975, Die Zeit voltará a debruçar-se sobre a personalidade de Costa Gomes com um artigo de Manfred Harst , que já familiarmente dá conta da alcunha de “o Cortiça” entretanto colada ao general, com fama de ficar sempre à tona, qualquer que seja o sentido da corrente.

O autor do artigo contesta, no entanto, que Costa Gomes seja avesso a tomar posição como a alcunha sugere e descreve-o antes como alguém que espera pacientemente e acaba por decidir quando as condições se tornam propícias. Assim, por ocasião do discurso presidencial que marca a data das eleições (inicialmente para 12 de Abril), Harst comenta o seguinte:

“Ao contrário da maioria dos portugueses, Costa Gomes tem a virtude política da paciência. Ele esperou em silêncio que os radicais esticassem demasiado a corda e que os moderados se dispusessem à contraofensiva. O que muitas vezes se pôs na conta da frouxidão ou da claudicação da ‘eminência parda’, do cuidadoso mediador por trás dos bastidores, este ‘wait and see’ britânico, revelou afinal ser [a sua] força”.

O artigo prossegue com um pequeno inventário biográfico sobre o percurso do general, destacando a sua origem modesta, a sua autodisciplina, a sua capacidade para se calar na altura própria e não deixando de salientar o brilho da sua formação académica em Matemática.

Apesar de pelo menos um erro óbvio, ao atribuir-lhe um envolvimento no “motim da guarnição de Beja em 1961”, Harst capta acertadamente a importância decisiva do papel desempenhado por Costa Gomes, e também os traços de carácter que o tornam especialmente adequado a esse papel.

A título de exemplo, relata Harst um episódio que diz ter sucedido com o recém-graduado general Otelo Saraiva de Carvalho: “Em mangas de camisa, e em tom de quem está em mangas de camisa, ele increpou um general mais velho: ‘Quem manda agora somos nós, os jovens do MFA’. Costa Gomes apertou os lábios mais ainda do que habitualmente, pigarreou várias vezes, ajustou os óculos, inclinou-se para trás e, cortêsmente, chamou então Carvalho à parte: ‘Se você não se comportar, eu trato de que seja despromovido, não a major, mas a sargento”.

O papel que o Exército deve desempenhar é, do ponto de vista de Harst, o que Costa Gomes lhe destinou: “actuar na luta política como árbitro forte e intervir energicamente, quando as regras são grosseiramente violadas. O Exército como vigilante da democracia – sem dúvida um programa ambicioso, mas feito à medida de um homem que prefere esperar a pôr-se em bicos de pés, e que conserva seca a sua pólvora para o último e decisivo tiro”.
Uma revolução que se modera com o tempo?
Entretanto, Die Zeit reflecte nas suas páginas a perplexidade de redactores que observam à distância o processo revolucionário e que se interrogam angustiosamente sobre o sentido dos acontecimentos.

Em Janeiro de 1975, um artigo de Karl-Heinz Janssen inverte uma imagem corrente sobre a revolução dos cravos, que fazia dela um processo democrático ao princípio, cada vez mais radicalizado com o correr do tempo. Pelo contrário, explica o autor, a revolução começou muito mais à esquerda do que parecia e só com o tempo nasceu nela uma esperança de democracia e moderação.

Para entender o espírito inicial da revolução, diz Janssen, era preciso ter atentado nos seus símbolos: a figura de Catarina Eufémia (na foto) e a canção “Grândola, vila morena”. Seguidamente, desenvolve algumas suposições: “Europeus ocidentais que se preocupam face aos acontecimentos mais recentes não devem ter-se apercebido destes símbolos, ofuscados pela confiança que inspirava o monóculo do general escolhido pelos conspiradores para figura de proa. Mas a revolução não foi feita por generais da grande burguesia, e sim por jovens capitães provenientes da pequena-burguesia ou do operariado”.
DR

E prossegue: “Logo no programa inicial, eles anunciavam não só a libertação das colónias africanas, e não só o restabelecimento dos direitos democráticos fundamentais. O ‘Movimento das Forças Armadas’ pretendia também lançar os alicerces duma ‘nova política social’, declarava guerra aos monopólios e prometia defender os direitos dos trabalhadores. O coração dos oficiais patrióticos batia à esquerda. E, a competir com comunistas e socialistas, os próprios liberais e conservadores andavam com a palavra socialismo na boca”. Tudo isto que o autor considera motivo de apreensão estava presente desde o início.

Mas, ainda segundo Janssen, no início de 1975 as posições começaram a inverter-se. Os comunistas, que graças à sua organização foram os primeiros beneficiários da “Primavera de Lisboa”, tinham passado entretanto à defensiva, perante a iminência de eleições constituintes em que as sondagens não lhes davam mais de 12 por cento.

Por seu lado, os socialistas ganharam entretanto autoconfiança, ao recusarem a lei da unicidade sindical e uma política de Frente Popular. Janssen conclui com um prognóstico condicional: “Não surpreenderá que no final prevaleça uma maioria liberal-conservadora ou uma coligação de centro-esquerda”.
"A nação reage alergicamente ao seu passado político"
Uma semana depois, também em Die Zeit, um artigo de Robert Gerhardt começa com uma sugestiva descrição da efervescência política que vive o país, lembrando que um povo amordaçado durante décadas adquiriu subitamente um protagonismo político inesperado, e passou a ter um contacto intenso com campanhas de dinamização promovidas pelo MFA. Segundo o autor, “Palavras como ‘fascismo’, ‘reacção’, ‘luta popular’ ou ‘revolução’ tornaram-se expressões correntes”.

A isto acrescenta o autor: “A nação reage alergicamente ao seu passado político. Até altas horas da noite, discute-se sobre o socialismo, o comunismo e o fascismo derrubado, mesmo nos cafés das aldeias mais recônditas”. Ou, mais adiante: “Pela primeira vez em cinquenta anos, os simples trabalhadores do campo ficam a saber que têm um direito de participar [na vida política]”.

Mas o tom entusiástico destes primeiros parágrafos logo dá lugar ao receio de que uma overdose da “droga ‘política’” conduza o país por caminhos indesejados. E surge também uma referência apreensiva sobre “o terror de rua na cidade do Porto contra supostos fascistas e os desfiles de massas de grupos da esquerda radical em Lisboa”.

Daí, passa-se a recomendar a sensatez de “forças políticas moderadas, como o ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares”, e das suas advertências contra o perigo de guerra civil e, depois, de futuros militares do Grupo dos Nove, como Vítor Alves, ou próximos, como Carlos Fabião.

No número seguinte, um artigo de Manfred Harst refere-se aos poderes especiais que a Junta de Salvação Nacional recebeu do Conselho de Estado para eliminar instituições do regime deposto ou antecipar-se a “ataques contra a economia”. Segundo o autor, estes poderes especiais constituem uma vitória para o MFA e uma meia vitória para o PCP, bem como um “puxão de orelhas” para o PS e o PPD.

E, seguidamente, manifesta o receio de que os militares adiem a democracia e estabeleçam “uma espécie de ditadura desenvolvimentista”, porque, diz-nos, “o Exército é hoje indiscutivelmente a única força que pode impor medidas duras e impopulares para superar o estado desolador da economia; e os jovens oficiais – que entretanto descobriram alguns encantos do poder - perguntam-se com alguma razão se os políticos dispersos por inúmeros partidos e em guerra uns com os outros realmente poderão resolver os problemas do país mais depressa e melhor”.
“O MFA não pode resolver os vossos problemas”
A omissão de reportagens sobre a reforma agrária, as ocupações de terras, casas e empresas, e genericamente sobre os processos de autoorganização social da revolução, é uma marca de água de dois semanários que, quase sempre a grande distância e ocasionalmente com incursões no terreno, procuram entender o que se passa em Portugal.

E, nessas incursões, os primeiros destinatários da atenção dos jornalistas alemães são naturalmente os protagonistas militares e não a massa anónima que entretanto vai dando corpo a profundas transformações nas empresas, nos bairros e nos campos.

Ainda assim, Der Spiegel manifesta no final de 1974 curiosidade pelas “campanhas de dinamização” (na foto) empreendidas pelo MFA e regista que, “com atenção médica gratuita e construção de pontes, os soldados procuram ultrapassar a desconfiança dos que, ao fim de meio século de ditadura, caíram em completa apatia política”.
(Arquivo RTP)

Dois meses depois, numa das suas reportagens realizadas no terreno, Der Spiegel descreve uma das sessões da campanha, o concerto que os militares levam a uma povoação recôndita e contudo receptiva, as dificuldades que encontram ao tentar explicar a unicidade sindical e também a reveladora intervenção de um camponês já entrado em anos: “Talvez fosse melhor vocês explicarem primeiro o que é um sindicato”.

Antes de passar a descrever uma sessão com trabalhadores industriais, o artigo refere também o processo de gestão democrática das universidades, que veio substituir a autoridade incontestada de reitores nomeados pela ditadura. Agora tudo isso deu lugar aos conselhos directivos compostos por professores, estudantes e funcionários das escolas.

Vem depois o relato de uma sessão de esclarecimento na fábrica da cerveja “Sagres” em Vialonga, realizada após o horário de trabalho e mesmo assim participada por dois terços dos 900 trabalhadores da empresa.

A uma trabalhadora que interpela os militares sobre o que tencionam fazer quanto às deploráveis condições dos e das trabalhadoras precárias, responde o interpelado: “O MFA não pode resolver os vossos problemas, esse tipo de paternalismo é uma coisa do passado. Juntem-se e façam valer os vossos interesses”.
 
O MFA não tinha a pretensão de resolver os problemas da população, em especial no interior, mas as campanhas de “dinamização cultural” não deixavam de basear-se na expectativa algo ingénua de que um proselitismo amplo e generoso pudesse abalar as hegemonias conservadoras onde elas estavam mais enraizadas.

Ao tornar-se suspeito de querer revolucionar a província, o MFA viu a sua “dinamização cultural” ser energicamente atacada. Der Spiegel cita, a esse respeito, o comentário amargo do general Carlos Fabião: “Durante meio século o povo português viveu sob um despotismo tenebroso, sem qualquer liberdade, e nenhum dos governos amigos se incomodou especialmente com isso. Mas, agora que nos libertámos a nós próprios, todo o mundo se preocupa de que possamos cair numa ditadura do proletariado”.
 
No entanto, as palavras de Fabião não convencem nem tranquilizam inteiramente Der Spiegel que no final de fevereiro publica um artigo, advertindo em tom melodramático: “No difícil caminho de Portugal para a democracia surgiu a sombra ameaçadora da ditadura”.

O grito de alarme é lançado porque os 250 membros da Assembleia do MFA, após 12 horas de reunião, decidiram não voltar aos quartéis e sim “institucionalizar-se” na vida política do país. Apesar de a assembleia não ter especificado as modalidades da institucionalização, o artigo adianta ter havido propostas da esquerda militar no sentido de o “Conselho dos Vinte” se transformar num “Conselho da Revolução” com direito de veto sobre as decisões do Governo. Segundo as vozes proponentes, o MFA deveria fixar-se a si próprio a tarefa de destruir o sistema capitalista e de construir o socialismo.

Finalmente, constata-se com algum alívio que na discussão prevaleceram os “moderados”, e que o plano trienal aprovado não prevê a nacionalização dos bancos nem da grande indústria, mas apenas um controlo estatal reforçado. Não deixa, contudo, de sublinhar-se que o desfecho foi assim “desta vez”, subentendendo que tudo está em aberto para o futuro.
11 de março: o zénite da revolução
Em 14 de Março, um artigo de Die Zeit assinado por Manfred Harst comenta o putsch fracassado três dias antes. O défice de informação do autor é, neste caso, notório – ou o seu filtro claramente orientado à direita. Entre os antecedentes do putsch não refere a conspiração prévia, mas tão-somente o efeito provocatório da agitação e da violência física empreendida pela esquerda radical em Setúbal e Porto contra partidos de “centro-esquerda e centro-direita” (PPD e CDS). E em vez de falar de um putsch de Spínola, o artigo refere um “putsch dos páras” (o general que encabeçou a intentona não é sequer mencionado).

Os motivos apresentados para explicar o fracasso também são, além disso, errados: “A população não se mexeu, o Exército permaneceu leal. Ninguém está disposto a um putsch de direita”. 

Na verdade, e ao contrário do que sucedera na intentona de 28 de Setembro, não era suposto que a população participasse no putsch: houve mobilização civil, mas para derrotá-lo. E o Exército não permaneceu propriamente leal, e sim expectante durante várias horas, até a derrota do putsch decidir os seus comandos a proclamarem uma lealdade contrafeita, tardia e já quase supérflua. 

Alguns dos contragolpistas viriam depois, pelo contrário, a ser chamados à pedra por aquilo que foi considerado um excesso de iniciativa durante aquela decisiva jornada.

O artigo que Der Spiegel dedica ao golpe, publicado três dias depois, não é neste caso mais exacto que Die Zeit, nem escapa a um certo tom de alarme perante a radicalização do processo revolucionário português.

Começa por explicar o fracasso do putsch por o oficial da unidade atacada, Diniz de Almeida, e o da unidade atacante, Sebastião Martins, terem compreendido que deviam confraternizar em vez de se combaterem (na imagem, em baixo).
(Arquivo RTP)

Na verdade, nada disso aconteceu: a tensa conversa entre os dois oficiais foi inconclusiva e a confraternização deu-se, sim, mas “por baixo”, entre soldados do Ralis atacado e páraquedistas sitiantes (na imagem, em baixo). A partir desse momento, o comandante da tropa páraquedista já nada podia fazer.

(Arquivo RTP)

Depois, o artigo insinua a dúvida: “A tentativa de putsch de Spínola caíu nas mãos da esquerda como se tivesse sido encomendada. Tanto como ela teve de diletante, assim a resposta teve de implacável: ‘O tempo das cedências já lá vai’, declarou o membro da Junta, almirante Rosa Coutinho, um dos militares mais à esquerda”.

E a isto se acrescenta que o putsch “poderá servir de justificação para mais medidas”, enquanto o Governo se constitui com maior peso do PCP e seus aliados. O aspecto decisivo no balanço do golpe é um cui prodest altamente suspeito: “O bem organizado PC de Portugal, desde há semanas na defensiva, voltou à ofensiva desde a intentona golpista. Em comunicados, exigiu medidas imediatas contra os monopólios e os latifundiários”.

O pânico nos arraiais golpistas fica também retratado no episódio dos quatro oficiais, incluindo um general, que procuraram refúgio na Embaixada alemã. Der Spiegel cita o adido de imprensa da Embaixada, Klaus Rupprecht: “Não faço ideia de como vieram ter precisamente connosco. Ainda pensámos se não poderíamos passá-los a alguma outra Embaixada, mas quem é que quer uma batata quente assim?”.

E conclui que no dia seguinte finalmente os quatro oficiais decidiram entregar-se, depois de obterem garantias de que iriam ser julgados em tribunal ordinário.
Um epitáfio político para Spínola Na semana seguinte, o artigo de Die Zeit fica novamente a cargo de Horst Bieber. O jornalista reafirma aí as suas convicções sobre o papel positivo de Spínola na fase em que foi presidente: “O ascenso dos partidos não-socialistas foi mérito de Spínola”.

Descreve depois um processo de outing de políticos conservadores comprometidos com o fascismo, e a correspondente proliferação de grupúsculos direitistas, bem como a libertação do PS “do abraço cada vez mais sufocante dos comunistas”. A partir daí, passou a afigurar-se possível “uma maioria não-socialista na Assembleia Constituinte”.

Ora, a desastrada tentativa golpista de 11 de Março veio precisamente comprometer a viragem. Sob esse aspecto, Bieber, antes entusiasta da orientação e da personalidade de Spínola, passa agora a julgá-lo com severidade:

“Na semana passada, ele envolveu-se num putsch de oficiais de direita. A tentativa falhada rompeu quase todos os diques contra a enchente esquerdista (…) Os motivos da diletante intentona são desconhecidos; a alegação de Spínola de que a sublevação da direita pretendia impedir uma matança da Páscoa, de 500 oficiais e 1000 civis, não convence. Os efeitos, pelo contrário, já podem ver-se: os oficiais do MFA e os comunistas, que vinham caindo cada vez menos nas graças do eleitorado, viram aqui a sua grande oportunidade para neutralizarem ou para limitarem fortemente os partidos do centro e da direita”.

Céptico sobre a capacidade do PPD para conter o “assalto” da esquerda, e omisso sobre quaisquer expectativas a favor do PS, Bieber conclui que “actualmente só há uma força que poderia pôr um travão, a ainda forte oposição de oficiais no Exército”. Em todo o caso, remata, “com a sua acção completamente incompreensível, Spínola não prestou um serviço aos seus correligionários militares”. A viabilidade de um putsch menos “diletante” ficou visivelmente comprometida.
Exigência das nacionalizações: “não só os comunistas”
Na mesma edição em que surge o artigo de Bieber, Die Zeit apresenta uma apreciação mais matizada, em artigo assinado por Robert Gerhardt. Este autor observa que o ponto antimonopolista no Programa do MFA permaneceu no vago até ao golpe de 11 de março mas, a partir da entrada em funções do Conselho da Revolução, imediatamente se traduziu na estatização da banca e dos seguros, à qual deve seguir-se a de outras indústrias-chave. 

Essas medidas não são, no entanto, imputadas ao diletantismo da tentativa golpista, e sim a uma necessidade económica que já se fazia sentir de antes. Na linha de artigo anterior, Gerhardt não vê nos mais recentes desenvolvimentos uma prova de que Portugal vá a caminho do comunismo.

As estatizações, diz-nos o autor, eram praticamente inevitáveis desde que o Plano de Emergência de fevereiro, apontando para uma economia mista, se mostrara impotente para travar a sabotagem económica e a fuga de capitais, com o consequente agravamento do desemprego e da inflação.

E se Portugal viesse realmente a tornar-se um “bastião vermelho”, acrescenta ainda Gerhardt, “isso teria de atribuir-se à curteza de vistas dos antigos detentores do poder. Durante décadas, o povo português foi politicamente oprimido e economicamente explorado. Portugal era o paraíso dos privilegiados, uma ‘mina’ para o capital internacional. Os investimentos amortizavam-se no mais curto lapso de tempo, os lucros eram repatriados. Mas ninguém se preocupava com a situação social da população”.

Ao contrário de Bieber, Gerhardt considera que “a população apoia o MFA, se as aparências não enganam”. Mais adiante, referindo-se à expropriação dos latifundiários, pergunta retoricamente: “Quem pode admirar-se de as massas aprovarem a política do ‘Conselho da Revolução’? Quem pode surpreender-se por o povo português ser a favor de melhores salários, contra os despedimentos, pela expropriação e desmantelamento dos monopólios?”. O apoio vale para uma via socialista original, “que se situa entre o ‘campo ocidental’ e o Bloco Leste. A orientação poderia ser a da Argélia, da Suécia, ou da Jugoslávia”.
(Arquivo RTP)

Quase ao mesmo tempo, Der Spiegel volta a mostrar-se alarmado com a eventualidade de as eleições constituintes não terem lugar na data prevista e manifesta a sua apreensão por elas terem sofrido um adiamento de duas semanas – o que, bem vistas as coisas, não era substancial numa situação em que chegaram a ser dados os primeiros tiros duma guerra civil finalmente evitada.

O artigo começa logo por referir a nacionalização da banca e dos seguros como “a primeira medida verdadeiramente revolucionária do regime de Lisboa desde o derrubamento da ditadura de Caetano”. Mas, a partir daí, a análise das nacionalizações adopta um tom mais sóbrio e sereno: esta nacionalização, admite também, era “uma medida que não só os comunistas exigiam”. E discorre então sobre a banca “que praticamente estava nas mãos de umas vinte famílias portuguesas, que assim controlavam praticamente todos os ramos da economia do país”.

Depois, recorda que desde o 25 de Abril os banqueiros vinham usando o poder económico como arma política e dá o exemplo da família Espírito Santo, que financiou vários grupos de direita envolvidos em setembro no anterior putsch spinolista. Com este pano de fundo, não surpreende que também os “moderados” no Governo tivessem poucas reservas contra a expropriação da “Mafia financeira”, embora objectassem à rapidez e ao momento da operação.
A reforma agrária vista do outro lado
À reforma agrária ambos os semanários dedicam muito pouca atenção, embora o campo se encontre já em plena efervescência nessa primeira metade de 1975. E, quando finalmente Die Zeit se apercebe de que algo está suceder, refere o processo de forma unilateral e francamente hostil.

Assim, no final de Julho, um artigo de Bieber relata o caso de uma herdade do Ribatejo, em que os trabalhadores se puseram em greve para obterem um aumento salarial superior ao que acabava de ser decretado. Depois, quando o patrão despediu dois deles, tomados como instigadores da greve, os trabalhadores manifestaram a intenção de expropriar a herdade. Recorrendo ao tribunal, o patrão obteve ganho de causa contra a expropriação, mas viu-se obrigado a readmitir os dois despedidos.
 
Apesar da sentença, e ainda segundo o relato de Bieber, os trabalhadores ocuparam a herdade e sequestraram o patrão. O tribunal voltou a dar-lhe razão contra a expropriação, mas a polícia não cumpriu a ordem judicial. Após novas insistências do patrão, o Conselho da Revolução ordenou a desocupação da herdade, mas a tropa do Copcon designada para executar a ordem recusou fazê-lo. Ainda por cima, os funcionários do banco onde o patrão tinha conta decidiram congelá-la.

A concluir o relato, Bieber cita em tom aprovativo o patrão, que diz “ter desistido demasiado cedo: noutros lugares, os proprietários ameaçados organizam uma autodefesa armada – e disparam mesmo, porque é o que os radicais estão a pedir …”.

O jornalista de Die Zeit, informado sobre o ponto de vista dos proprietários agrícolas, mas não tanto sobre o dos trabalhadores, conclui sobre a existência de um ambiente geral de decepção. O motivo sintetiza-se num veredicto surpreendente: “Não teve lugar uma reforma agrária”.
(Arquivo RTP)

Os ecos da reforma agrária chegam também de forma muito indirecta a Der Spiegel que, já no início de maio, dedicara um artigo às medidas tomadas para preparar uma possível evacuação de emergência da base que a Força Aérea alemã mantém em Beja – precisamente na zona de intervenção da reforma agrária. Enquanto Bona negoceia com Lisboa a entrega das instalações da base, “a maior parte dos alemães já mandou os móveis e alguns mandaram a família para casa”.

Para além de várias explicações sobre os motivos que tornaram obsoleta essa base concebida no auge da Guerra Fria, Der Spiegel observa que entretanto algumas centenas de pilotos alemães e suas famílias se habituaram a viver no Alentejo em condições privilegiadas, “à maneira dos latifundiários locais, com serviçais baratos e obedientes”.

Essas centenas foram reduzidas desde o 25 de Abril a meia centena de militares e funcionários civis. Uma ocupação de casas deixadas livres pelos militares regressados à Alemanha obrigou mesmo a que os militares portugueses interviessem para proteger os restos da guarnição alemã e para dissuadir os ocupantes “anarquistas” de empreenderem novas iniciativas desse tipo.

Decorridos vários meses, Der Spiegel voltará a referir-se à base alemã em Beja, mas desta vez para dar conta de um possível contágio da guarnição pelo ambiente revolucionário circundante: vários soldados recusaram-se a servir à mesa na messe dos oficiais e o comandante da base decidiu transferir compulsivamente 40 desses militares “por actividades esquerdistas”. Em consequência “quase todos os seus soldados começaram a manifestar-se em conjunto com a população simpatizante, até ele anular a transferência”.
 
Tal como Die Zeit se limita a relatar a reforma agrária vista com os olhos de um proprietário expropriado, Der Spiegel relata-a vista com os olhos de militares alemães, perturbados no seu idílio alentejano, ou influenciados pela rebeldia dos tempos e das gentes.
A caminho das eleições constituintes
Na última semana de março, Horst Bieber escreve desde Lisboa, a pouco tempo da data marcada para as eleições. Chegado à capital portuguesa e banhado na realidade da revolução, o nosso autor conta agora com uma viragem à esquerda nas eleições, isto porque “meio século de capitalismo autoritário desacreditou ideias como a economia de mercado livre ou a iniciativa empresarial. No campo, a pobreza descarnada nota-se mais do que em Lisboa ou no Porto. Um rifão de cá diz que não se pode pôr esfomeados de guarda à despensa”.

Tanto como este historial de décadas, o que torna agora provável uma viragem à esquerda é o desastrado putsch que Spínola empreendeu em 11 de Março. Depois dele, “veio tudo de uma vez: estatização de bancos e seguros, remodelação do Governo, proibição de três partidos que para os comunistas se tinham tornado concorrentes ou críticos incómodos, duros ataques contra a liberdade de imprensa e os grupos de direita”.

E acrescenta Bieber: “Os homens que rodeiam Cunhal aproveitam a oportunidade, enquanto dura a indignação unânime; Spínola deve ser de momento o homem mais odiado de Portugal”.

Sobre as causas do putsch que originou este volte-face, o nosso autor reproduz comentários que não acreditam a teoria da “matança da Páscoa”, e sim a da casca de banana: os comunistas tê-la-iam posto no caminho de Spínola, difundindo o boato sobre a “matança da Páscoa”, fazendo crer esse boato ao general, e saltando depois sobre a desastrada precipitação dos golpistas.

O país, que parecia iniciar uma viragem à direita, vivera por isso uma radicalização que agora desafia todas as capacidades de análise e previsão: “Em Portugal, tudo continua a ser possível”.
 
Mesmo assim, Bieber volta a um dos seus temas predilectos, o dos “cravos murchos” , insistindo sobre o divórcio crescente entre o MFA e a população: “Os militares desapareceram da rua. Já lá vão os tempos em que a população entusiasmada confraternizava com os soldados”.

O jornalista refere-se ainda à situação nas empresas, que classifica de instável: “Comunistas e extremistas de esquerda controlam com rédea curta as células de empresa, sem se preocuparem com a legitimação democrática. Eles organizam assembleias, impõem melhores condições de trabalho ou o saneamento de chefes indesejados. Eles afugentam quem pensa de outro modo, e cujas qualificações não podem dispensar, e impedem despedimentos”.
"Portugal ainda não é uma segunda Cuba"
Na semana seguinte, Bieber volta a enviar um artigo escrito em Lisboa, avaliando a constituição do IV Governo Provisório como um “compromisso”, em que “Portugal andou mais um passo para a esquerda, mas não derrapou para a esquerda”. O autor cita a desconfiança de Vasco Gonçalves relativamente aos partidos e não deixa de registar que o MFA obrigou os partidos a assinarem um Pacto antes de irem às urnas.

Bieber empreende depois historiar as raízes da desconfiança do Exército para com os partidos, que do seu ponto de vista explica tanto a coacção exercida sobre estes para assinarem o Pacto como a atitude isolacionista que considera latente na política externa.

E sublinha, a este respeito, quatro características: a rejeição da NATO, a rejeição de uma espécie de “Plano Marshall” para Portugal, a desconfiança face à Comunidade Europeia e a tentação terceiro-mundista. Nos primeiros dois pontos, atribui ao MFA uma certa permeabilidade à influência dos únicos que, sustenta, têm uma política clara – os comunistas. E fantasia que “eles [os comunistas] defendem a saída da NATO, e relações institucionalizadas com a Comecon e o Bloco de Leste”.

Entretanto, Der Spiegel continua a manifestar preocupação face aos perigos que impendem sobre a democracia portuguesa, a curta distância das eleições para a Constituinte. Num artigo publicado no início de abril , sem chegar a aderir à visão tremendista de Kissinger, afirma: “Portugal ainda não é uma segunda Cuba. E no entanto criou-se uma dinâmica política que cada vez mais empurra o país para a opção, após quase 50 anos de ditadura, entre uma democracia pluralista ou um regime totalitário”.

Regredindo a uma visão conspirativa da história portuguesa recente, o artigo pergunta-se “até que ponto o motor do derrubamento da ditadura, o ‘Movimento das Forças Armadas’ (MFA), tem uma orientação comunista”.
Pacto MFA-partidos: “a Constituição já está outorgada”
Sobre as eleições, outro artigo de Der Spiegel na semana seguinte vai ao ponto de atribuir a um documento do Conselho da Revolução um plano “que prevê uma ditadura militar por mais três a cinco anos e desse modo reduz as eleições da assembleia constituinte marcadas para 25 de abril a uma espécie de sondagem de opinião política”.

A ideia de uma eleição esvaziada de significado surge depois, ao constatar o entusiasmo do PS pela campanha eleitoral - que se insinua ser ingénuo, “como se tudo ainda estivesse em aberto”. Do ponto de vista do artigo, a observância formalmente correcta das regras democráticas na campanha explica-se porque o MFA pode dar-se ao luxo de cultivar as aparências quando, no fundo, “a Constituição, que devia ser feita pela assembleia a eleger, já está outorgada”.

Na semana seguinte, em palavras introdutórias a uma entrevista com o almirante Rosa Coutinho, Der Spiegel volta à carga com o tema da Constituinte esvaziada de significado, porque o Pacto MFA-partidos “já prescreve as linhas fundamentais da futura Constituição”. O esvaziamento é, aliás, duplo, porque “na semana passada o Governo Provisório do general Gonçalves já avançou com importantes decisões: a nacionalização de empresas-chave e uma ampla reforma agrária”.

Depois, na entrevista propriamente dita não predominam os temas que o texto introdutório sugere: Rosa Coutinho é sobretudo questionado sobre as relações entre o PCP e o MFA, sobre a recomendação do MFA para que votem em branco as pessoas indecisas sobre o partido a escolher, e sobre os regimes socialistas que poderiam servir de modelo ao MFA (descartando, na resposta, os regimes leste-europeus, e admitindo maiores afinidades com as experiências de Cuba, Perú, Jugoslávia e Argélia).

Decorrida mais uma semana, Der Spiegel volta em breve artigo ao tema do Pacto MFA-partidos, salientando que se trata de um condicionamento da democracia, em que “aos políticos não restou outra escolha se não a de aprovarem o modelo constitucional que lhes era imposto, na esperança de, com este gesto de submissão, salvaguardarem algum direito a ser ouvidos”.

E pergunta depois retoricamente: “Se já hoje falta aos oficiais [do MFA] a coragem para ousar o risco da liberdade, como é que querem tê-la mais tarde, quando já se tiverem habituado a mandar e estiverem corrompidos pelo poder?”
"Mais do que simples encenação democrática"
No dia das eleições constituintes, Die Zeit volta a publicar um artigo de Horst Bieber, oscilando entre o receio enunciado no título (“Eleições sem valor?”) e a admissão de que as eleições possam influenciar o rumo da vida política.

Bieber reitera, por certo, a denúncia do Pacto MFA-partidos, afirma que as eleições não são inteiramente livres porque “a Constituição já está definida” e acrescenta: “Os militares querem continuar a empunhar a roda do leme entre três a cinco anos mais. Quem poderá confiar que depois disso voltem aos quartéis? Eles tomaram gosto ao poder e muitos julgam-se detentores da única verdade política”.

Mas, por outro lado, afirma também: “O resultado do jogo ainda está em aberto. E por isso as eleições são mais do que uma simples encenação democrática – mesmo se elas têm basicamente o carácter de uma sondagem. Pela primeira vez desde o putsch se pergunta ao povo que opinião tem. A sua resposta pode acelerar, retardar ou travar a marcha para o socialismo”.

Mais concretamente, Bieber apercebe-se de que “um claro veredicto das urnas a favor dos partidos não-comunistas, como ele surge em todos os prognósticos eleitorais, irá reforçar os militares moderados. Depois das eleições poderão conquistar-se posições de poder com as opiniões maioritárias”.

Neste caso, os desenvolvimentos ulteriores virão mostar que Bieber viu mais claro e mais longe do que Der Spiegel, que continua a reiterar a sua tese sobre a Constituinte esvaziada.
Os resultados eleitorais como arma política
Na primeira edição de Die Zeit após as eleições, um artigo de Bieber considera os resultados “um puxão de orelhas” para o MFA, ao expressarem uma recusa de qualquer projecto comunista, e também uma recusa da sugestão de voto em branco (segundo Bieber “nulo”) lançada pelo próprio MFA, que equivalia ao pedido de um “cheque em branco”.

Por isso mesmo, remata Bieber, “o resultado eleitoral obriga o ‘Movimento das Forças Armadas’ a repensar os próprios fundamentos da sua posição”.

Na semana seguinte, Bieber limita-se a publicar sobre Portugal uma pequena nota referente aos incidentes ocorridos no 1º de Maio em Lisboa, quando Mário Soares foi impedido de entrar no Estádio do INATEL.

Comenta-os como um sintoma de “quantos direitos os comunistas já conseguiram por chantagem, usurpação ou apropriação secreta”, sublinhando que, mesmo na eventualidade de o incidente se explicar por um excesso de zelo da segurança do PCP, o silêncio posterior da direcção do partido já denota uma renúncia desta ao discurso de frente popular, de unidade contra a reacção e de uma via portuguesa para o socialismo. Os comunistas, diz Bieber, “já não parecem estar dispostos a partilhar o poder”.

Mais uma semana volvida, e Bieber refere que “os socialistas, depois de terem engolido muitas afrontas, insurgem-se agora. Em vez de se inclinarem perante o desejo de reconciliação do primeiro-ministro, eles, reforçados pelo resultado eleitoral, apresentaram uma série de reivindicações”.

O caderno de exigências do PS consiste, segundo Bieber, em eleições municipais, eleições sindicais e limitação da influência do PCP sobre a imprensa. O calendário que Bieber tem em vista contém prazos curtos e pressupõe um planeamento pouco conforme ao ambiente revolucionário: 90 dias, contados a partir de 2 de junho, para a Assembleia Constituinte concluir o seu trabalho; e eleições municipais ainda antes do fim de 1975.

Em Der Spiegel Mário Soares é entrevistado logo no início de maio por Siegfried Kogelfranz e Jutta Fischbeck, exibindo em todas as respostas a acrescida autoconfiança do PS após as eleições. À observação dos entrevistadores, de que não é suposto os resultados eleitorais influenciarem a política do Governo, Soares (na foto) corrige: “[Não é suposto] influenciarem a composição do atual Governo, isso é outra coisa”.
(Arquivo RTP)

Com esta deixa sobre a política do Governo, os entrevistadores comentam que o PS terá visto como apressada a decisão governamental de nacionalizar grande parte da economia. Soares sai neste caso pela esquerda: “Numa revolução age-se sempre de forma um tanto apressada. Sem impulso revolucionário não é possível iniciar grandes reformas”.

Mas, à pergunta seguinte, sobre se a envergadura das reformas não torna indispensável a cooperação com o PCP, responde o líder do PS: “O nosso parceiro mais importante é o Movimento das Forças Armadas, não o Partido Comunista”.
“Caso República”: no limiar do “Verão quente”
Em fins de maio, um artigo de Der Spiegel refere-se pela primeira vez ao “Caso República”, dando conta da manifestação de militantes socialistas à porta do diário República. A manifestação, diz-nos o artigo, protestava porque “tipógrafos influenciados pelo PC tinham ocupado a redação do jornal, sequestrando o chefe de redação Raul Rego e todos os jornalistas”.
(Arquivo RTP)

Seguidamente relaciona a tomada do República com a concepção manifestada por Otelo, que é citado a profetizar a extinção dos partidos, e com o plano de “Aliança Povo-MFA”, preconizado entre outros pelo mesmo Otelo e pelo almirante Rosa Coutinho. Faz notar, além disso, que dias antes a Assembleia do MFA aprovou o plano, consistente numa rede de comités de base, nas fábricas e nos bairros.

Os socialistas, diz-nos também o artigo, recusaram liminarmente qualquer sistema conselhista e o próprio líder do PCP deu pela primeira vez sinais de inquietude perante a resolução do MFA.
 
A ideia de uma conspiração do PCP para usurpar um dos poucos diários que ainda não controlava tornar-se-á depois popular e corrente, até por explicar de forma simplista as complexidades da crise. E essas complexidades estão patentes no desconforto que o mesmo artigo deteta numa direção comunista ultrapassada pelos acontecimentos. No entanto, a análise veiculada pelo artigo não retira daí quaisquer ilações para entender o que realmente se passou na ocupação do República.

A visão da maioria dos historiadores aponta entretanto para uma ocupação desencadeada por operários gráficos situados à esquerda do PCP, à qual este partido reagiu, ultrapassado por uma iniciativa que lhe era estranha, mas tentando tirar dela os benefícios possíveis. Essa era já, aliás, a visão dos dirigentes socialistas na altura, mesmo se alguns deles ocasionalmente lançaram mão de uma teoria da conspiração mais instrumental para mobilizar as suas hostes.

Assim, o próprio Raul Rego, entrevistado em Der Spiegel (na  foto) no final de junho, abstém-se de acusar os comunistas da ocupação do jornal. A uma pergunta sobre se acredita que a mão do PCP estivesse por trás da iniciativa de ocupação, Rego responde: “Não sei. Mas o que eu sei é que o Partido Comunista claramente se aproveita desta acção”.
(Arquivo RTP)
O Copcon, "a fazer política por conta própria"
Entretanto, um artigo de Bieber em Die Zeit considera o “Caso República” “sintomático”, por introduzir “o último round na luta dos comunistas pelo controlo total dos media”. Tal como Der Spiegel, Bieber atribui ao PCP uma manipulação inteiramente responsável pelo conflito e observa que, “além deste jornal [República], do recém-criado Jornal Novo e do semanário Expresso, os comunistas detêm entretanto firmemente nas suas mãos todos os jornais de Lisboa”.

Assim explica que a parada seja alta e Soares tenha de correr um risco tão sério como o de suspender a participação do PS no IV Governo Provisório.

Na mesma edição outro artigo do mesmo Bieber explica o “Caso República” com um erro de cálculo dos militares: “A ideia ingénua de que os socialistas devessem aceitar sem protesto a perda do seu jornal mais importante volta a provar como os oficiais compreendem pouco a política e os partidos, como as suas representações mentais continuam prisioneiras do esquema de ordem e obediência”.

E mais adiante: “Eles sujeitaram-se conscientemente à suspeita de que, na sua longa marcha para o socialismo português, só aceitam o PC como parceiro”.

Em termos mais genéricos, o artigo enuncia a “encruzilhada” em que Portugal se encontra: ou o caminho de uma “democracia pluralista”, pressupondo o regresso dos militares aos quartéis e uma provável ajuda económica ocidental; ou uma “segunda Cuba”, com um sistema estalinista, que Cunhal poderia alcançar mediante a manipulação dos militares; ou ainda uma ditadura militar desenvolvimentista, à imagem do exemplo peruano de então, que “fascina muitos oficiais portugueses”.

No desenlace da crise, um artigo publicado em Der Spiegel compara os processos português e moçambicano – desfavoravelmente para Portugal, de onde transmite uma imagem de caos e anarquia, exemplificada em primeira linha pelo desfecho do “Caso República”: quando o Conselho da Revolução finalmente decidiu a entrega do jornal aos redatores, diz-nos o artigo, as tropas do Copcon deixaram, pelo contrário, entrar os tipógrafos.

A conclusão é que “o Copcon já está a fazer política por conta própria”, como entretanto se vai confirmando também no giro dramático da Rádio Renascença, de emissora da Igreja para plataforma de agitação revolucionária.

Duas semanas depois, o mesmo Der Spiegel volta ao tema do Copcon a fazer a sua própria política, em roda livre: “Quando o primeiro-ministro Vasco Gonçalves há pouco mandou devolver à Igreja a emissora católica Rádio Renascença, ocupada pelos trabalhadores de esquerda, o chefe do Copcon recusou-se a evacuar os ocupantes. O Conselho da Revolução desautorizou o primeiro-ministro e determinou a nacionalização da emissora”.
Otelo, o actor “ávido de protagonismo”
No início de agosto um artigo de Horst Bieber em Die Zeit debruça-se extensamente sobre a personalidade e o papel de Otelo. Começa por biografar muito resumidamente o chefe do Copcon, realçando as suas raízes na comunidade branca de Moçambique e a sua conhecida propensão para o teatro.

Prossegue sobre as perspectivas “imerecidas e inesperadas” com que a sorte o presenteou, mas notando “que o seu temperamento, a sua tendência para a pose e a sua ânsia de publicidade regularmente se lhe atravessam no caminho e o fazem fracassar”. Já na guerra colonial, as qualidades de liderança do capitão eram contrabalançadas com “os principais defeitos – impaciência e inconstância – que ele não conseguia refrear”.
(Arquivo RTP)

A sua promoção a major sob o patrocínio de Spínola não o impediu de entrar em rota de colisão com o general, e de guardar – rancorosamente, sugere-se – uma conta pendente contra ele, que depois iria saldar na melhor oportunidade: “Carvalho nada esqueceu e, em setembro de 1974, no primeiro de vários actos de aberta indisciplina, empurrou o seu antigo chefe para fora do cargo presidencial”.

Paralelamente, recorda o percurso de Otelo, de major a general graduado e comandante do poderoso Copcon, que fez dele “o homem mais popular de Portugal”; mas para logo acrescentar que, afinal, “Spínola teve razão: Carvalho servia, no melhor dos casos, para comandante de batalhão; a tropa do Copcon desfez-se-lhe entre os dedos”.

E explica essa decomposição da tropa com a politização fomentada pelo próprio Otelo, e a consequente indisciplina: “Porque havia a tropa de ser mais obediente do que o chefe, compincha e em mangas de camisa, que se vangloriava abertamente de ignorar ordens do primeiro-ministro, do Conselho da Revolução e do seu superior direto, o chefe de Estado, general Costa Gomes?”

A fatura da informalidade de Otelo, prossegue o autor, foi-lhe apresentada no incidente dos comandos da Amadora. Bieber afirma que Otelo quis afastar da unidade o coronel Jaime Neves, bem como outros nove oficiais e quatro sargentos, mas foi forçado a recuar.

Mais adiante, afirma que Otelo “age neste momento sob a influência de uma jovem, conhecida como Maria do Carmo [sic] e que dirige uma ‘Brigada Revolucionária’ [re-sic]”. Com distorções desculpáveis a um observador distante, estará a referir-se a Isabel do Carmo e ao seu partido, o PRP-BR [Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias].

A concluir, sustenta o autor que o PCP se encontra em acentuada perda de velocidade e que “os confrontos se concentram nos moderados e nos utopistas – personificados pelo presidente Costa Gomes e por [Otelo Saraiva de] Carvalho”. Este hesita ainda entre assistir ao seu próprio enfraquecimento ou tentar um golpe de Estado: “Um oficial sensato renunciaria a esta última ideia para não aparecer como um mentiroso e para não quebrar a unidade das tropas. Mas um actor fardado e ávido de protagonismo …?”
Partidos "com uma função auxiliar"
Paralelamente à discussão sobre o “Caso República”, corre uma outra, mais genérica, sobre o regime que irá prevalecer na revolução portuguesa.

Um artigo de Der Spiegel lembra que logo desde o 25 de Abril de 1974 se faziam ouvir entre os militares vozes como a de Otelo, contestando que as Forças Armadas devessem entregar o poder aos partidos “de mão beijada”. O compromisso então assumido, de que os militares voltariam aos quartéis e os partidos se ocupariam da política, volta um ano depois a ser posto em causa em nome de uma diferente arquitectura institucional.

Segundo Der Spiegel, os militares não sabem exactamente o que querem como alternativa a uma democracia parlamentar: “ou um bloco de ‘Comités de Defesa da Revolução’, como [Otelo Saraiva de] Carvalho ficou a conhecê-los em Cuba, ou a extensão das ‘Comissões de Moradores’ existentes em alguns bairros e que gozam de ‘extraordinária simpatia’ por parte de Carvalho”.

O artigo empreende depois um excurso teórico, sustentando que, seja qual for o modelo adoptado, ele não dará corpo a um regime de democracia directa, porque os seus serão sempre órgãos outorgados de cima para baixo, ao contrário dos modelos conselhistas conhecidos na História e caracterizados por terem surgido “espontaneamente a partir de baixo”.

No final de Junho, Die Zeit publica um artigo de Bieber comentando a aprovação do PAP (Plano de Acção Política) após uma maratona de discussões, longa de uma semana, no Conselho da Revolução.

O autor resume “os pontos principais do documento: construção de uma sociedade sem classes por via pacífica, estatização dos meios de produção, igualdade de oportunidades para os cidadãos, pluralismo socialista, colaboração dos partidos, recusa de um sistema conselhista ou de uma ditadura do proletariado e proibição de milícias armadas”.

No balanço global da discussão, considera que se impôs a “ala moderada” do MFA, explicando assim a satisfação com que o documento foi acolhido pelos “partidos democráticos” e a frieza que marcou a atitude do PCP. Mas prossegue, ainda assim, com as baterias apontadas ao paternalismo do MFA, e contradizendo em boa parte o que começara por considerar uma vitória da “ala moderada”.

Considera que o MFA encara os partidos como tendo uma “função auxiliar” e explica que o seu verdadeiro entendimento do trabalho político está exemplificado na actividade da 5ª Divisão: “esclarecimento político no campo, alfabetização, educação para a autoajuda e autogestão, seja na construção do saneamento básico ou na organização de um autocarro escolar ou do apoio da vizinhança aos idosos, doentes ou famílias com muitos filhos, a explicação da dependência económica e portanto política de até aqui”.

Bieber sublinha ainda que os partidos são bem-vindos se protelarem as suas ambições em prol da realização destas tarefas. E arrisca o prognóstico de que, a não o fazerem, “o MFA não hesitaria em proibi-los”.

O nosso autor matiza depois este vaticínio e volta às tendências “moderadas” do MFA, estimando que a valorização dos partidos é mais clara na Assembleia do movimento do que no seu órgão de topo, o Conselho da Revolução.

Ele aponta o dedo a Otelo, por uma série de recentes decisões antidemocráticas. Estas foram objecto de crítica do MFA, mas para além das palavras está a realidade militar. E esta, ainda segundo Bieber, é a de um Copcon que se mantém como último baluarte da disciplina, ao contrário das unidades militares não afectas ao MFA, onde diz registar-se um acentuado relaxamento das normas de conduta.
Democracia parlamentar ou democracia conselhista
Duas semanas depois, um pequeno comentário de Bieber em Die Zeit refere-se a um discurso em que Costa Gomes exigiu mais trabalho e menos retórica. O autor vê no discurso um sinal de que estaria a abrir caminho no MFA uma atitude realista perante a gravidade da situação económica.

O importante, afirma, seria que “os portugueses aprendam a pagar as conquistas revolucionárias com mais trabalho, a enterrar as esperanças demasiado elevadas e mesmo a adiar aspirações legítimas”. Politicamente, o autor vê aqui um possível prenúncio da demissão de Vasco Gonçalves, bem como um sinal de que o PCP foi além das marcas e será agora colocado no seu lugar.

Em artigo publicado na semana seguinte, esfumou-se inteiramente o optimismo de Bieber, que volta a recear a instauração de uma “ditadura desenvolvimentista”. O autor comenta a demissão dos ministros e secretários de Estado do PPD, seguindo a curta distância o exemplo dos do PS.

Simultaneamente, refere a aprovação na Assembleia do MFA da estrutura do novo regime a instituir: “Portugal deve ficar com um sistema de conselhos, uma ‘democracia directa’. Daí em diante, as eleições por voto secreto tornar-se-ão tão supérfluas como os partidos. Num lapso de tempo de três a quinze anos, o povo deverá tomar todo o poder”.

A descrição de “comités de bairro, grupos de trabalhadores, administrações locais, cooperativas, colectivos”, tal como alegadamente são previstos no projecto, atribui-lhes contornos suspeitos: “Estes grupos de base deverão eleger, ‘por braço no ar’, delegados às assembleias gerais a nível local, distrital e regional, que no fim deste processo constituirão uma assembleia a nível nacional”.

Bieber lembra também que três semanas antes a mesma assembleia tinha recusado o mesmo projecto e critica com severidade o modo como agora se aprova esta estrutura: em maratona realizada no “Centro de Sociologia Militar”, com muitos oficiais ausentes, com o presidente Costa Gomes a retirar-se a meio da noite, e vários outros depois dele, e com os restantes a aprovarem a moção já de madrugada, numa assembleia sem quorum.
 
No balanço deste golpe de teatro, Otelo é apresentado como “o vencedor” – isto porque, diz-se também, tinha sido ele a encorajar os extremistas de esquerda no seu aventureirismo. Bieber responsabiliza os amigos de Otelo no Conselho da Revolução por lhe tolerarem as extravagâncias, em prol de uma aparência de unidade que se insiste em apresentar para o exterior. 

E entretanto, conclui apreensivo, “criam-se os primeiros grupos de base a nível local, festejados pelos comunistas como ‘passo decisivo na revolução socialista’. Desse modo surge, ao lado do Conselho da Revolução, da Assembleia do MFA e da Assembleia Constituinte, um outro carril do poder político”.

Quase ao mesmo tempo, Der Spiegel compara a “unidade e eficiência” da Frelimo nos nove meses de existência do Governo de Transição com a balbúrdia de lutas intestinas em que se exaurem as diversas facções militares portuguesas. Aqui, opina, “a questão essencial – e não resolvida – é [a de saber] se os partidos políticos vão ser titulares fundamentais do poder ou serão simplesmente tolerados ou mesmo proibidos”.

Denuncia depois a alegada tentação do MFA, de proibir os partidos, de instaurar uma “democracia popular” de partido único e de manter, segundo declaração atribuída a Rosa Coutinho, o poder militar durante mais 30 anos. A fórmula achada pelo Conselho da Revolução após um prolongado retiro é, considera o artigo, uma solução de compromisso: os partidos podem existir, mesmo que não queiram o socialismo, mas o “República” tão-pouco voltará às mãos dos proprietários originais.
O espectro do “golpe de Praga”
Depois de ter ignorado longamente o pequeno país ibérico e a explosão que nele se gestava, a imprensa alemã que agora analisamos, recém-saída da Guerra Fria e ainda mal habituada às implicações da Ostpolitik brandtiana, denota uma dificuldade evidente em compreender os vários processos em curso nos partidos comunistas europeus. E, desde logo, o PCP é exemplo paradigmático da dificuldade, nesse cúmulo de factores de incompreensão que consistia em ser, ao mesmo tempo, português e comunista.

É certo que tanto Der Spiegel como Die Zeit admitem o protagonismo do PCP na contenção da vaga de greves que imediatamente sucedeu ao 25 de Abril. Mas, ainda assim, permanece sobretudo em Die Zeit o receio de que a participação governamental do PCP seja principalmente um ardil para preparar, a partir do interior do poder, uma espécie de “golpe de Praga”. Entre os dois polos desta ambiguidade oscilam muitos dos seus comentários, em especial a partir do 28 de setembro.

Assim, um mês decorrido sobre a falhada intentona, um artigo publicado nas páginas de Die Zeit com a assinatura G.V. referia a iminência de uma visita de Willy Brandt a Portugal, alertava os socialistas portugueses contra a aparência de quererem “ultrapassar pela esquerda” o PCP e contra as “tentações da Frente Popular”. E não deixava de recordar a dívida do PS português ao SPD, sustentáculo da sua fundação, manifestando a expectativa de que Brandt pudesse corrigir a excessiva permeabilidade do PS à influência do PCP.

Na mesma edição, um artigo de Peter Bender não se refere directamente ao processo revolucionário português, mas tem-no presente ao comentar a conferência de partidos comunistas que irá ter a sua primeira sessão em Varsóvia.

Bender não encara aí os partidos comunistas governamentalizados como cavalos de Tróia para um possível golpe de Praga - hoje em Portugal, amanhã em Itália ou França. Pelo contrário, ele vê na participação governamental dos comunistas os prenúncios de um aggiornamento eurocomunista, que ainda não designa com esse nome, mas que já apresenta muitas das suas características distintivas.

Outra é a visão do Departamento de Estado norte-americano, cujo chefe, Henry Kissinger, enviou a Lisboa o vice-director da CIA, Vernon Walters, para avaliar a situação e, depois dessa visita, adiou a reunião do Grupo de Planeamento Nuclear da NATO, principalmente por não querer discutir questões tão sensíveis na presença de um Governo gonçalvista, com participação do PCP.

O artigo de Die Zeit assinado com a abreviatura L.R. (Lothar Ruehl) noticia o adiamento sem outro comentário além da dúvida sobre a permanência de Portugal na Aliança.

Mas um artigo publicado pouco depois em Der Spiegel deixa um comentário crítico sobre a paranoia anti-comunista do Departamento de Estado norte-americano e observa: “Olhando de perto, pouco fica da muito propalada visão de horrores de um Portugal vermelho”.

E passa a lembrar que o Congresso do PCP, a instâncias de Álvaro Cunhal, retirou do programa qualquer referência à ditadura do proletariado e que os governos portugueses com participação comunista não fizeram menção de expropriar, nacionalizar ou colocar sob controlo do Estado “uma única empresa, nacional ou estrangeira”.
Eurocomunismo e renúncia à "ditadura do proletariado"
Em Janeiro de 1975, um artigo de Die Zeit assinado por Andreas Kohlschütter parece aderir à visão de Kissinger e sugerir desde o título (“A luta de Moscovo pela Europa”) que os partidos comunistas, ao serviço de Moscovo, se encontram no limiar da luta pelo poder.

A propósito da conferência de 28 partidos comunistas em Berlim-Leste, refere, contudo, o policentrismo que entretanto se impôs no movimento comunista e que é, precisamente, um dos requisitos para que os seus diversos partidos possam sobraçar pastas ministeriais nos países respectivos.

De salientar que, neste artigo, se evidencia um conhecimento ainda incipiente sobre o sentido em que está a desenvolver-se cada partido do leque policêntrico, sobreavaliando a renúncia do PCP à fórmula da “ditadura do proletariado” e atribuindo pelo contrário ao PCE o propósito de “incitar os partidos irmãos à luta revolucionária nas barricadas”.
(Arquivo RTP)

Em breve se tornará claro que era, afinal, o partido português o guardião da ortodoxia pró-soviética e o partido espanhol uSegundo testemunhos contemporâneos, nomeadamente de Hans-Ulrich Bünger, Willy Brandt (na foto) tinha já então uma ideia mais realista do que eram os partidos comunistas. Por isso mostrou interesse pela anunciada presença de Santiago Carrillo no congresso do PS e por isso dava sinais de desconforto face à polarização do conflito entre PS e PCP.m dos pioneiros da inovação eurocomunista. E, em qualquer das duas variantes, o “golpe de Praga” não é um modelo a seguir.

Por seu lado, também o chefe de redação de Die ZeitTheo Sommer, virá a referir-se à confluência dos partidos francês, italiano e espanhol que mais tarde e em graus diversos iria ser designada como eurocomunismo.

Ele considera, aliás, essa confluência “mais significativa do que os desenvolvimentos em Lisboa”, que parece considerar redutíveis a uma nota de rodapé. As suas esperanças focam-se na expansão do que, com gosto duvidoso, designa de “comunismo branco”, apto a suceder ao “comunismo vermelho” de Moscovo e à dissidência “amarela” de Pequim.
O PCP e o papel da Assembleia Constituinte
Acontece que o rumo de cada partido se encontra menos determinado pela escolha de fórmulas ideológicas, entretanto em larga medida ritualizadas, e muito mais pelas suas escolhas políticas no terreno.

E, se a posição do PCP contra a vaga de greves contrariava em alguma opinião publicada a imagem de um partido conspirando pelo seu “golpe de Praga”, já a discussão sobre o futuro da Constituinte, sua composição e papel a desempenhar por ela, era de molde a reanimar os receios sobre alegados planos do PCP no sentido de uma “ditadura militar desenvolvimentista”.

Assim, Der Spiegel inquieta-se logo em dezembro de 1974 sobre a insistência de Cunhal para que o MFA obtenha "assentos de pleno direito na Assembleia Constituinte". E, depois de ser abandonada essa proposta, interroga-se sobre a alternativa sugerida pelo mesmo Cunhal de que fosse “previamente alcançado um acordo entre os partidos democráticos e o MFA sobre as linhas gerais da Constituição e da política futura” – uma das primeiras referências ao que virá a ser o Pacto MFA-partidos.

Por seu lado, Die Zeit publica em fevereiro de 1975 um artigo sem assinatura sublinhando um ponto que tinha efectivamente grande importância na política do PCP: o alerta contra as vozes favoráveis a que a Assembleia Constituinte exorbite as suas competências e pretendem que ela, muito para além de elaborar a Constituição, “se torne uma assembleia legislativa, da qual o Governo seria dependente”.

Para além das interrogações sobre a política do PCP, há as que dizem respeito à natureza e funcionamento do partido, às suas ligações internacionais e à personalidade dos seus quadros dirigentes. Já no início de abril de 1975, Bieber irá debruçar-se nas páginas de Die Zeit sobre a personalidade do líder comunista Álvaro Cunhal. Dele faz um retrato oscilando entre a admiração e a abominação.

O nosso autor admite que a URSS possivelmente não seja favorável a um governo comunista em Portugal, tendo em conta os danos que um tal governo traria à política de desanuviamento, às perspectivas em Espanha, ao ‘compromisso histórico’ em Itália e à Frente Popular em França.

Mas, apesar disso, Bieber acusa Cunhal de “provocar o Ocidente”, com declarações “cínicas” que desvalorizam a liberdade de imprensa e de opinião, as eleições com voto secreto, a liberdade de imprensa e o direito de propriedade. Entre as “provocações” inclui mesmo a de Cunhal, alegadamente, reclamar a saída da NATO – neste caso uma alegação infundada.

O artigo desenvolve toda uma análise psicológica sobre a perigosidade de Cunhal: depois de muitos anos de clandestinidade, prisão e exílio, ele sentir-se-ia “enganado” ao ver o fascismo cair por acção do MFA e o novo regime nas mãos de oficiais que ele se vê obrigado a aconselhar, porque detêm o poder e não fazem ideia do que devem fazer.
Uma nota da Comissão Política do CC do PCP em 4 de Fevereiro de 1975 advertia sobre os perigos de “uma política precipitada e aventureirista em relação à NATO”, sustentando desse modo a proibição pelo Governo de uma manifestação contra a presença de uma esquadra da NATO em Lisboa.
Citando sempre dissidentes do PCP que não identifica, Bieber acaba por classificar Cunhal como um apparatschik “solitário” e, por isso, “perigoso”.
O “conselho” de Moscovo para a tomada do poderA ideia de um aparelho misterioso e opaco surge também nas páginas de Der Spiegel, em artigo que cita aprovativamente o diário francês Le Monde a classificar o PCP como “o menos conhecido e o mais bem organizado PC da Europa ocidental”, tendo por isso sobrevivido à ditadura quando os outros partidos portugueses desapareciam. E prossegue, afirmando que mesmo depois do 25 de Abril “uma parte dos camaradas continua a trabalhar como na clandestinidade”.

Com uma informação claramente truncada, supõe a existência de “uma ala nacional-comunista” em torno de Octávio Pato (na foto) – que na verdade foi durante toda a sua vida adulta um seguidor indefectível de Álvaro Cunhal.
(Arquivo RTP)

As repercussões da revolução portuguesa na esquerda internacional continuam a merecer dos nossos dois semanários uma atenção constante. Em artigo publicado em Die ZeitRolf Zundel refere-se aos ecos que a polémica sobre o diário República despertou nos partidos socialistas e comunistas da Europa.

Assim, ele observa que os comunistas italianos, jugoslavos e espanhóis tomaram partido contra os seus correligionários portugueses e a favor do PS de Mário Soares. Curiosamente, Mitterrand e os socialistas franceses, para não agravarem o potencial de tensões dentro da sua aliança com o PCF, só timidamente declararam o seu apoio a Soares.

Durante o Verão de 1975, o alarme sobre uma usurpação do poder pelos comunistas transtorna até os analistas mais serenos. Se algum tempo antes Bieber ainda apontava em Die Zeit a inconveniência que teria para a URSS um governo comunista em Portugal, agora é Der Spiegel que ignora tais ponderações e refere “um novo conselho para a tomada do poder em Portugal”, que Moscovo teria emitido, cinicamente, logo após a assinatura dos Acordos de Helsínquia por Brejnev.

Der Spiegel refere ainda que o “conselho” foi dado sob a invocação da autoridade de Lenine e, curiosamente, empreende uma discussão exegética, para demonstrar que Lenine preconizava exactamente o contrário.
Portugal sob suspeita na NATO
Como vimos atrás, Horst Bieber precipitou-se em fevereiro a acusar o PCP de um plano para retirar Portugal da NATO, sem que essa acusação tivesse fundamento. Mas é verdade que a dinâmica da revolução punha em causa os fundamentos da presença de Portugal num bloco militar anti-socialista. Os desenvolvimentos que vieram com o 11 de março, em especial, alarmavam as potências ocidentais, que a ela reagiam de formas diversas.
 
No dia das eleições constituintes, Die Zeit publica um artigo do mesmo Bieber, manifestando o receio de que uma hostilização demasiado vocal da revolução por parte de potências da NATO possa inverter a tendência dita “moderada”, que parece desenhar-se no favor do eleitorado: “Uma gritaria ocidental sobre um Portugal comunista seria a forma mais segura de atirar para os braços de Cunhal os orgulhosos, sensíveis e teimosos militares”.

E, prevendo um agravamento da crise económica, recomenda à CEE uma atitude solidária, que não deixe qualquer vácuo passível de ser preenchido por uma ajuda soviética. A suposição vai mesmo ao ponto de prever que nesse caso “Portugal, hoje a balançar inseguro na linha de demarcação entre os sistemas, cairia na esfera de influência soviética e passaria para o campo inimigo”.

No início de junho, um extenso artigo publicado em Der Spiegel refere as preocupações norte-americanas ao ser conhecido o processo negocial no sentido de poderem fazer escala na Madeira, durante o ano, 500 navios da frota mercante e da frota pesqueira soviética.

Der Spiegel observa que o alarme norte-americano é injustificado, porque a Espanha franquista há muito que concedeu idênticas permissões à URSS. Mas aqui o contexto é tudo e nenhuma jurisprudência do direito marítimo internacional podia persuadir o Departamento de Estado de que as negociações fossem, neste caso, alheias à deriva socialista suposta em Portugal.
 
Em todo o caso, o artigo de Der Spiegel foca a sua atenção principalmente na cimeira da NATO que por esses dias decorre em Bruxelas, precisamente sob o signo da obsessão norte-americana de impedir que o governo português continue a ter acesso a segredos militares da aliança. O contrassenso que a NATO tem de enfrentar, diz-nos Der Spiegel, é o de “um dos países membros eventualmente se tornar comunista, e no entanto tencionar permanecer na aliança”.

Uma atenção especial é prestada à reunião entre Vasco Gonçalves e Helmut Schmidt, que se envolveram em azeda troca de de argumentos, com o chanceler alemão a afirmar “que há um limite a partir do qual não se pode tolerar novos passos para a esquerda em Portugal”. Chegado a este ponto, Der Spiegel recorda que Bona sempre tinha contrariado o fatalismo norte-americano, de considerar Portugal perdido para o ocidente, mas que “entretanto também a preocupação prepondera no Governo Federal [alemão] e se leva agora mais a sério os receios de Washington”.

Porém, segundo a análise de Der Spiegel, esse fatalismo é estéril e paralizante, porque nem a NATO está inclinada a intervir militarmente em Portugal nem os EUA podem correr esse risco depois do descalabro que foi a guerra no Vietname. Lamenta-se em todo o caso que “a alternativa possivelmente mais prometedora, de ajudar Portugal logo desde o derrubamento do Estado salazarista com créditos vultosos, não fosse assumida por nenhum dos parceiros da aliança e muito menos pela América”.
Açores: "uma compreensível afeição pelos americanos"
A política de Kissinger acaba por nunca se traduzir numa verdadeira iniciativa para expulsar Portugal da NATO ou para dar o tiro de partida de uma guerra civil no país. Mas irá manter, até ao final do PREC uma atrição constante com as autoridades de Lisboa.

E, mais adiante, Die Zeit irá ocasionalmente publicar artigos nessa linha, como um de Barbara von Jhering relatando vários episódios de rejeição dos comunistas por uma população açoriana inclinada para o independentismo. Depois, lembrando as remessas de uma comunidade emigrante estabelecida nos Estados Unidos, e os benefícios da base norte-americana nas Lajes para a população local, a autora acrescenta: “Ao ódio contra os comunistas corresponde uma compreensível afeição pelos americanos”.

Globalmente, as considerações emitidas no artigo configuram um apoio, sem preocupações de discrição, ao separatismo açoriano: cita, sem críticas nem contraditório, a pretensão da FLA a representar 90 por cento da população, justifica essa popularidade com uma exploração multicentenária do arquipélago pelo continente e cita a expectativa da FLA em obter a independência muito brevemente, contando com um apoio norte-americano que, de momento, não é publicamente assumido pelos próprios EUA.
A RFA e a “política de paciência”
Ao sairem do Governo gonçalvista o PS e, depois, o PPD, o Conselho da Europa apressa-se a aprovar uma resolução vedando aos países-membros qualquer cooperação com “regimes autoritários”. Der Spiegel observa sarcasticamente que esta nova “doutrina de Bruxelas” apontada contra Portugal é bem mais incisiva do que o foi para a ditadura dos coronéis gregos.

Acrescenta ainda que a aprovação deve ter sido mais difícil para a coligação social-liberal de Bona do que para os outros governos europeus, considerando a “política de paciência” que Hans-Dietrich Genscher continua a implementar no Auswärtiges Amt e considerando também as advertências de Willy Brandt, entretanto à frente do SPD, contra uma interrupção da ajuda económica a Portugal. Nessa linha, Genscher argumentara em Bruxelas a favor da concessão de créditos da CEE a Portugal, sob condições políticas precisas.

E a Alemanha Federal mantinha assumidamente a intenção de fazer a Portugal um empréstimo de 70 milhões de marcos, apesar das dúvidas manifestadas pelo chanceler Helmut Schmidt sobre a eficácia “injecções de dinheiro” na reanimação de uma economia que se considera em estado ruinoso. Com estas reservas, Schmidt iria ao encontro do primeiro-ministro italiano Aldo Moro e do presidente francês Giscard d’Estaing, ambos convencidos de que a democracia em Portugal está condenada.

Na mesma semana, Die Zeit publica um artigo de Wolfgang Hoffmann sobre as perspectivas do investimento alemão em Portugal. O artigo está baseado em declarações prestadas por empresários alemães e em informações do antigo secretário de Estado do Desenvolvimento da RFA, Karl-Heinz Sohn, todas recolhidas no relatório resultante de uma visita a Portugal. Sohn é, em si mesmo, uma escolha reveladora como relator sobre um país que se encontra no olho do furacão.
 
Karl-Heinz Sohn começou a sua carreira como funcionário sindical, teve desde 1966 responsabilidades de topo na Krupp e foi em 1969 nomeado secretário de Estado. Dois anos depois foi enviado ao Chile, para convencer Allende a não estabelecer relações diplomáticas com a RDA. Durante o PREC foi enviado a Portugal para avaliar a segurança do capital alemão.
Sempre baseado no relatório, o artigo considera que a probabilidade de serem nacionalizadas empresas alemãs em Portugal é remota, mas logo acrescenta que isso não basta para tornar o país atraente para o investimento alemão.

E enumera os problemas que têm feito retrair os investidores: a incerteza sobre o que acontecerá em casos de iliquidez da respectiva empresa, sobre a natureza da intervenção do Estado em tais casos, a probabilidade de ocorrer uma tal iliquidez num país com cada vez mais letras protestadas, a dificuldade no acesso ao crédito, e – principalmente – a quebra da produtividade.

A esta lista de queixas, acrescenta o autor do artigo o aumento dos salários, em cerca de cem por cento no ano de 1974, atingindo o equivalente a “quase” 400 marcos. E acrescenta uma observação que não deixa de surpreender: “Enquanto as mulheres na República Federal [da Alemanha] continuam a protestar contra os baixos salários, as portuguesas realizaram plenamente o princípio ‘salário igual para trabalho igual’”.

Os gestores alemães citados no artigo são os de grandes multinacionais - da Triumph, da Grundig, da Hoechst, da Siemens. O tom geral das declarações prestadas é moderadamente optimista: o gestor da Triumph refere que movimentos de ocupação têm sido raros nas empresas alemãs; o da Hoechst lamenta-se por estar impedido de fazer despedimentos quando quer, mas diz-se confiante em dobrar o cabo tormentoso da revolução; o da Grundig quer falar pouco e produzir o suficiente; o da Siemens lembra que não se pode perder a cabeça “sempre que algures muda um governo”.
 
O autor do artigo conclui, porém, com aparente falta de confiança no optimismo prudente dos empresários. Considera ele que o mais importante é saber “se o Governo consegue refrear a base, ou seja, os trabalhadores e os inúmeros sindicatos locais, que se arrogam todo o tipo de direitos, e se consegue reconduzi-los à disciplina da economia”.

E, em tom enigmático, remata com uma citação de Sohn: “Ele aconselha os empresários alemães a aguentarem, até ter passado a fase revolucionária. ‘Nessa altura a situação clarificar-se-á – seja lá como for’”.

Em meados de setembro, um artigo de Kurt Becker em Die Zeit reafirma a análise da situação portuguesa como encontrando-se em processo de estabilização e parte daí para argumentar que a Comunidade Europeia deve envolver-se activamente na ajuda económica a Portugal.

Segundo Becker, antes seria compreensível hesitar na concessão dessa ajuda, porque “ela podia ser desperdiçada politicamente”. E logo acrescenta: “Mas hoje a hesitação poderia revelar-se como um erro grave”.

Considerando o risco de agravamento da pobreza, potenciado pela chegada dos retornados, o autor cita o chanceler Helmut Schmidt, com o seu “imperativo” de manter Portugal na NATO. E explica que o risco não é certamente o de perder o pequeno país membro - com o trunfo geoestratégico dos Açores - para um alinhamento com o bloco de Leste, e sim o de vê-lo afastar-se pela via da neutralização; ou, alternativamente, o de vê-lo ficar, mas sob a influência exclusiva dos EUA.
V Governo Provisório: “fuga para a frente”
Em 10 de julho, tomando as suas distâncias face ao MFA, o PS decide finalmente sair do IV Governo Provisório. Num artigo pelo menos tão confuso como a situação política portuguesa, Der Spiegel aplaude e condena ao mesmo tempo: aplaude a demissão dos ministros socialistas pelo sinal que deram, mas logo a seguir condena-a por os demissionários terem desse modo abdicado de influir sobre o rumo dos acontecimentos.

O artigo prossegue especulando sobre um possível conluio entre Otelo e os “moderados” para destituir Vasco Gonçalves e nota que este começara por pronunciar-se contra o sistema conselhista, contrariando Otelo e o Copcon. Mas logo a seguir afirma que Vasco Gonçalves optou depois por uma “fuga para a frente”, juntando-se ao projecto conselhista, acordando uma versão mitigada desse projecto com Otelo, e impondo ambos por essa via uma derrota ao “moderados”.
 
Uma semana mais tarde, Der Spiegel considera que o projecto conselhista está à beira de poder impor-se. Descreve uma manifestação em São Bento, à porta da Assembleia Constituinte, com um misto de observação presencial e de preconceito ideológico:

“Ergueu-se um aplauso frenético, jovens e muito jovens – acima dos 30 não havia quase ninguém – subiram para ao pé dos soldados, nos blindados, e acariciaram o aço esverdeado. Juntos gesticularam então contra São Bento – os soldados e civis com os seus punhos, os blindados com os seus canhões. Claro que ninguém queria tomar a Assembleia Constituinte, se não podia tê-lo feito”.

Seguidamente recorda que nessa noite, “quando a Internacional ressoou em São Bento, os povos podiam ouvir os seus acordes não só em português, mas também em francês e em alemão. E um visitante vindo da Renânia sentenciava: ‘Claro que a Assembleia tem de ser dissolvida. Já não é sem tempo’. Em Petrogrado trataram disso – da dissolução da Constituinte – duas dúzias de marinheiros e soldados, uns dois meses depois do putsch de Lenin de 1917”.

Estereótipos de turistas revolucionários e metáforas históricas àparte, Der Spiegel acredita verdadeiramente que é impossível de prever “se a Assembleia não será dispersada já amanhã e se não começará a guerra civil”.

No final de Julho, um artigo de Bieber em Die Zeit volta às ondas de choque causadas pela demissão dos governantes do PS e do PPD e afirma que o PCP, apesar de insultar os demissionários, não queria vê-los partir nem deseja permanecer sozinho no Governo. 

Mesmo entre os seus apoiantes mais fiéis – a base de apoio com que conta na cintura industrial de Lisboa e no Alentejo –, o PCP sofre, diz-nos Bieber, uma erosão da sua popularidade: “Os trabalhadores são quem mais sofre com a inflacção, a recessão e – especialmente em Lisboa – com os aumentos de alugueres e a falta de habitação”.
A aliança de otelistas e “moderados”
No primeiro dia de Agosto volta a surgir em Die Zeit um artigo de Bieber, dando conta da constituição de um triunvirato entre Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo, cujas respectivas localizações políticas descreve nos termos seguintes:

“Costa Gomes colocou-se, com a prudência que lhe é própria, numa posição próxima do Partido Socialista. O primeiro-ministro [Vasco] Gonçalves deixa cada vez menos dúvidas de que se sente ligado ao Partido Comunista de Cunhal. [Otelo Saraiva de] Carvalho é o protagonista e o poderoso protector daqueles grupos utopistas e de extrema-esquerda que já identificam o chefe do PC, Cunhal, com os ‘fascistas’”.

Considerando estes posicionamentos profundamente divergentes dos triúnviros, Bieber augura-lhes um rotundo fracasso: “Como o até aqui todo-poderoso Conselho da Revolução a si próprio se despojou de poderes e a Assembleia [do MFA] aprovou a solução da troika, a inevitável luta pelo poder e pela liderança irá agora travar-se entre estes três homens”.

Neste quadro, intui Bieber já então, os oficiais “moderados” começaram a apostar que Otelo possa virar-se contra Vasco Gonçalves e que Melo Antunes possa ambicionar o lugar do primeiro-ministro. Soares, por seu lado, aposta agora numa aliança Costa Gomes-Otelo contra o terceiro triúnviro.

Sendo assim, o MFA é colocado perante o dilema de dar ouvidos ao movimento encabeçado pela direita, pelo PS e pela Igreja católica, ou então optar assumidamente pelo caminho da ditadura militar. Ora, este “é um papel perante o qual os militares hesitam – ainda hesitam –, por muito que estejam dispostos a suprimir os partidos e a criar uma ‘democracia portuguesa’, especial, baseada em organismos conselhistas”.

No meio da hesitação dos militares e do “caos” crescente, o autor conclui voltando a um dos seus temas dilectos – o da iminência de um “homem forte”.
Manifestações pela democracia e assaltos a sedes partidárias
Entretanto, Der Spiegel continua dominado pelo receio de uma radicalização revolucionária. Em apoio a Mário Soares, realizou-se no Porto uma manifestação calculada em 70.000 pessoas e outra em Lisboa, a da Fonte Luminosa, calculada em 100.000. As tentativas conotadas com o PCP de erguer barreiras nos acessos às duas cidades tinham fracassado – “de forma patética”, diz-nos o artigo.
(Arquivo RTP)

E, no entanto, Der Spiegel continua a acreditar que “os socialistas voltaram a perder terreno face ao avanço do general Gonçalves”. Em abono deste balanço cita as críticas do então líder do PPD, Emídio Guerreiro, ao PS, bem como a “deserção” de quatro destacados socialistas que se disponibilizaram a colaborar com o V Governo Provisório.

Em meados de agosto, outro artigo de Der Spiegel dá conta da vaga de assaltos contra 40 sedes do PCP no norte do país e da ocorrência de dois mortos quando os militantes comunistas defenderam a tiro a sua sede em Fafe.

O papel da Igreja católica na mobilização dos assaltantes é constatado pelo semanário, que regista a presença do bispo João da Silva Saraiva numa manifestação com milhares de pessoas em Coimbra e as declarações do cardeal-patriarca, António Ribeiro, explicando que o silêncio da Igreja sob a ditadura de Salazar não a obriga a ficar calada nos tempos que correm. Der Spiegel admite aqui que “esta força, que agora subitamente apela à resistência contra a ditadura, foi o melhor suporte da ditadura de Salazar e Caetano”.

Dias depois, Die Zeit publica um artigo, sublinhando a existência de uma “crise duradoura”, já com 52 sedes comunistas incendiadas, nove mortos, 40 feridos, e com o PCP a coibir-se de lançar uma contraofensiva, tanto por recear a guerra civil, como por sentir o descontentamento da sua própria base a nível sindical. Fundamentalmente, diz o artigo, o PCP receia a evolução da oficialidade menos comprometida até agora, como é o CEME Carlos Fabião que “afastou o segundo homem da unilateralmente pró-comunista 5ª Divisão”.
(Arquivo RTP)

Para além disso, Bieber refere o confronto, na oficialidade das Forças Armadas, entre os documentos de Melo Antunes e de Otelo Saraiva de Carvalho, este a ficar claramente em minoria. E volta a sublinhar algo que a observadores menos prevenidos ainda parece inconcebível: que, para lá do confronto, “Carvalho e Melo Antunes parecem estar unidos na condenação dos comunistas”.
O “Documento dos Nove” e a crise do gonçalvismo
E, com efeito, dentro do aparelho militar a relação de forças está em vias de deslocar-se substancialmente. Já na semana anterior, um artigo do mesmo Bieber em Die Zeit comentara o surgimento do “Documento Melo Antunes”, como ponto de viragem: se até então o futuro do país parecia disputar-se entre estalinistas pró-Cunhal e “utopistas radical-socialistas” pró-Otelo, agora entraram em cena os “moderados”. Com o seu documento, deixaram claro que pretendem o afastamento de Vasco Gonçalves, a limitação do poder do PCP e um regresso ao programa original do MFA, com as correspondentes garantias de pluralismo político.

Segundo o autor, “a oposição até aqui silenciosa encontrou finalmente um núcleo de cristalização”. Por isso, o documento recolheu em 72 horas o apoio de 400 oficiais e foi de alguma forma aclamado em quatro quintos das unidades das Forças Armadas. E, embora o Conselho da Revolução tenha suspendido nove dos seus membros que apoiam o documento, “o terreno da decisão transferiu-se do Conselho da Revolução para as guarnições”.

Bieber volta depois a elaborar sobre a hipótese de Otelo e respetiva facção lançarem o seu peso na balança ao lado dos “moderados”, tomando posição “contra os comunistas, que de qualquer modo ele [Otelo] não aprecia”. Esta hipótese de reagrupamento das forças poderia esconjurar o perigo de guerra civil, mas não deixaria de trazer para o primeiro plano o conflito entre os vencedores – “moderados” de um lado, e os “utopistas radicais” do outro.

Na última semana de agosto, Die Zeit publica três pequenos artigos sem assinatura. Um deles resume a política do “Grupo dos Nove”: irreversibilidade da opção socialista, confirmada nas eleições constituintes, mas refreamento de um ritmo de transição para o socialismo “demasiado rápido”; recusa de um socialismo segundo o modelo leste-europeu e de uma revolução levada a cabo “por uma vanguarda com uma base social de apoio muito limitada”; recusa, também, do modelo social-democrata adoptado em diversos países ocidentais; pluralismo político e garantia dos direitos e liberdades fundamentais.

Uma outra peça apresenta alguns tópicos sobre o posicionamento político do chefe de Estado-Maior do Exército, general Carlos Fabião, à data considerado como o mais provável sucessor no cargo de primeiro-ministro ao periclitante Vasco Gonçalves. Fabião, diz-nos a pequena nota, é favorável à “moderação”, pretende pôr termo ao que considera o “terror psicológico” exercido contra os soldados e contra os pequenos camponeses do norte, que são tratados de “reaccionários” mal manifestam alguma reserva sobre a política vigente.
Vasco Gonçalves debaixo de fogo vindo do seu campo
Outra peça publicada em Die Zeit apresenta, enfim, uma breve cronologia dos últimos dias para ilustrar o caos existente e o perigo de uma guerra civil.

Num dia, o presidente augura ao primeiro-ministro apenas uns dias de permanência no cargo, os apoiantes de Melo Antunes e de Otelo procuram entender-se contra Vasco Gonçalves.

No dia seguinte, os gonçalvistas contra-atacam e publicam declarações da Comissão de Sargentos, e de unidades do Exército e da Marinha, em apoio ao primeiro-ministro. Mas entretanto discute-se também na praça pública a composição de um eventual Governo de Fabião.

Mais um dia, e goram-se as expectativas de um acordo entre meloantunistas e otelistas. Nos dias seguintes, o comandante da Região Militar do Centro ordena manobras das suas tropas, Costa Gomes reclama uma reestruturação do Conselho da Revolução e o PCP cria uma frente com organizações à sua esquerda.

Mais lento que Die Zeit a avaliar a nova situação, Der Spiegel está ainda no início de setembro a desvalorizar o “Documento dos Nove”, classificando como “tragicomédia” a polémica desencadeada em torno dele. Mas depois acaba por admitir que “o primeiro-ministro pró-PC, general Vasco Gonçalves, atacado desde há semanas sobretudo pelos socialistas, ficou agora também sob fogo vindo das suas próprias fileiras”.

Apesar de Melo Antunes e os outros subscritores do documento estarem ameaçados de expulsão do Conselho da Revolução, o seu documento circulou pelas unidades militares e recebeu nelas um amplo apoio.

E aqui admite-se que algo mudou: “Mesmo a gente do Copcon à volta do general Otelo de Saraiva Carvalho, populista e desejosa de [estabelecer] uma democracia conselhista, desautorizou a estratégia dirigista de Vasco Gonçalves, de fazer a revolução com uma pequena elite de quadros, em caso de necessidade contra a vontade da maioria”. E até o PCP “pela primeira vez se distanciou alguns centímetros” do primeiro-ministro.

O artigo conclui que o novo paralelogramo de forças parece tornar possível uma destituição de Vasco Gonçalves.

E, com efeito, o afastamento de Vasco Gonçalves irá consumar-se nos dias seguintes e Der Spiegel constata que Costa Gomes conseguiu obtê-lo de forma incruenta. Mas logo acrescenta que nenhum dos problemas do país foi resolvido e que falta ver se os desenvolvimentos seguintes continuarão a ocorrer sem derramamento de sangue.

Spínola, segundo o estado de alma que se lhe atribui, deve olhar a situação do país com satisfação, sem entender que o tempo corre contra ele, porque a queda de Vasco Gonçalves anuncia, afinal, a hora dos “moderados”, um programa para o novo Governo Provisório inspirado pelo PS e tudo igual nas intenções do Exército sobre o general exilado: prendê-lo caso ponha o pé em Portugal.
VI Governo Provisório: “haverá inevitavelmente purgas”
No primeiro número de Die Zeit em Setembro, um artigo de Robert Gerhardt constata a mudança de ambiente político em Portugal, com o fado a reocupar nas emissões radiofónicas o lugar da música de intervenção, e com Vasco Gonçalves a deixar a chefia do Governo contra a promessa, que nesse momento já se antevê falaz, de uma suposta chefia das Forças Armadas.

Desconhecendo ainda o destino da promessa, o autor do artigo já enumera as objecções correntes contra a nova nomeação de Gonçalves: dos chefes de Estado-Maior do Exército e da Força Aérea, dos socialistas e popular-democratas, dos comandantes de várias regiões militares. Do PCP, restam apenas ténues palavras de conforto; e da 5ª Divisão, nada – porque esta foi “suspensa” por Costa Gomes e ocupada manu militari a mando do Copcon.

O novo primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo (na foto), é descrito como “um candidato do compromisso”. O seu projecto é constituir um Governo com mais ministros civis que militares e com a participação de PS, PPD e PCP.
(Arquivo RTP)
 
Gerhardt releva o significado da derrota sofrida nas eleições para o sindicato dos bancários pela lista que o PCP apoiava, bem como da perda de popularidade do PCP entre os militares. E acrescenta que o PCP se uniu em 15 de agosto, numa unidade revolucionária” com as “brigadas revolucionárias”, a quem atribui uma forte influência sobre Otelo, com várias outras organizações da esquerda radical – como a Liga Comunista (na verdade a LCI, organização trotskista que designa como “marxista-leninista”) e a LUAR (que designa como “anarquista”).

O artigo aponta também uma certa inconstância política ao PCP, primeiro a apostar nesta unidade à sua esquerda, depois a negociar o seu peso na composição do novo Governo.
 
Finalmente, refere-se à convocação da Assembleia do MFA, em que passará a vigorar o “pluralismo”, por ter havido plenários nas unidades que deixaram de fora “vários oficiais pró-comunistas”. O sentido das votações nos plenários de unidade explica-se por “soldados e oficiais terem despertado e verificado que iam incondicionalmente a reboque de uma bem organizada tropa de choque comunista, que afinal os conduziu a um beco sem saída”.

Ao ser conhecida a composição do VI Governo Provisório, Der Spiegel considera-a como uma vitória do PS, que finalmente o vê como “o seu Governo”, e que por isso logo se apressa a despachar uma dúzia de dirigentes em missão a várias capitais europeias.

“Mário Soares e os seus socialistas, diz-nos o artigo, nunca foram tão fortes como hoje. O programa com que o sexto Governo Provisório entra em funções é completamente ao seu gosto: ‘Comunistas fora, socialistas dentro’, reza a divisa, segundo a qual haverá inevitavelmente purgas, não só a nível de governo”.

Outros que escapam às purgas, adaptam-se aos novos tempos e nadam com a corrente. Otelo e Rosa Coutinho, que antes mostraram simpatia pelo socialismo cubano, visitam agora a Suécia, em busca de um novo modelo.

Poucos dias depois, Die Zeit publica um artigo de Horst Bieber referindo também um “êxito de Soares” na composição do VI Governo Provisório: quatro ministros socialistas e dois apartidários próximos do PS, dois popular-democratas, apenas um comunista.

Refere também que Cunhal teve dificuldades em explicar aos seus camaradas mais impacientes que, mesmo assim, era preciso permanecer no Governo para conhecer e prevenir mais eficazmente qualquer manobra contrarrevolucionária. Daí parte para especular que Cunhal teria a sua posição à cabeça do PCP “seriamente abalada” e, mais adiante, para se fazer eco de boatos segundo os quais grupos dissidentes da esquerda radical estariam clandestinamente a “distribuir armas e a preparar-se para a guerrilha urbana”.

Mais fiáveis são as observações sobre a purga dos gonçalvistas no Conselho da Revolução e sobre a substituição do modelo cubano pelo modelo sueco como referência preferida para a maioria dos militares.

Ainda assim, o nosso autor questiona a opção socialista que o novo primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, continua a preconizar, “porque a catastrófica situação económica e financeira proíbe a Portugal qualquer experiência socialista, sempre associada a desperdício e quebra de produção”.
“A mais profunda crise de autoridade” do MFA
Em 10 de outubro, o mesmo Horst Bieber assina um breve artigo que reafirma a vitória dos oficiais “moderados” sobre os “pró-comunistas”, mas apenas para constatar imediatamente, decepcionado, que “ainda os oficiais mal se puseram de acordo e já as guarnições se dividem, lideradas por comandantes fanáticos, que em nome do princípio preferem correr o risco de uma guerra civil – só para não cederem à maioria e ao bom senso”.

Apesar das expectativas de que o VI Governo Provisório restabeleça a disciplina nos quartéis e nas ruas, Der Spiegel publica em meados de outubro um artigo admitindo que o MFA “atravessa actualmente a sua mais profunda crise de autoridade. Nunca até aqui a hierarquia e a disciplina do Exército descarrilaram tanto como nas últimas semanas”.

E, para sustentar esta desolada constatação, o artigo vai buscar a mais improvável das citações à mais improvável das fontes: “Quando damos uma ordem, o subordinado responde: ‘Ah sim?’; ou então: ‘E será boa ideia?’; ou ainda: ‘Será mesmo preciso fazer?’, segundo a descrição que fez há pouco tempo sobre o estado do Exército, durante uma visita à Suécia, o brigadeiro Otelo de Saraiva Carvalho”.

Depois de citá-lo, o artigo ridiculariza Otelo, “que, segundo as suas próprias palavras gostaria de se tornar ‘um Fidel Castro da Europa’ [e a quem] agora só ocorre um derradeiro apelo ao ‘bom senso’”, como forma de evitar a confrontação aberta entre dois campos antagónicos.
 
Em 7 de Novembro, um curto artigo assinado por Horst Bieber debruça-se sobre as ameaças de putsch militar, tornadas mais prementes devido a dois factores: a chegada dos retornados da colónias, a agravar exponencialmente um desemprego já alto; e o colapso da disciplina nas Forças Armadas, que avoluma o perigo de um golpe da direita.

Na semana seguinte, um outro artigo do mesmo autor menciona o atentado bombista ordenado pelo Governo contra os emissores da Rádio Renascença como forma de calar o “incitamento ao ódio” e de disputar aos extremistas de direita a “maioria silenciosa”. Mas logo acrescenta que a tentativa vem provavelmente tarde e que distrai o Governo da preocupação de dominar as dificuldades económicas.

Estas dificuldades são atribuídas ao próprio processo revolucionário e exemplificadas no caso de um empresário sueco do sector de vestuário, que teve de assistir à “duplicação dos salários com horário encurtado, contratação de 20 costureiras imposta pelo plenário de trabalhadores e algumas greves selvagens”.

E prossegue, relatando que o empresário quis vender a empresa ao seu administrador, mas foi cercado pelos trabalhadores e pediu a intervenção do embaixador sueco, que finalmente foi “espancado” pelos sitiantes.

Por outro lado, apresenta um retrato da comunidade retornada e sua relação com a dinâmica do combate político em Portugal. Bieber contrasta o estilo expedito e potencialmente violento dos retornados com o que “a política à portuguesa até agora significou: muito palavreado, muita gritaria, pouca acção e ainda menos violência”.

E acrescenta: “Os [colonos] africanos são feitos de outro material, são mais duros, mais determinados e principalmente, ao contrário da maioria dos portugueses, não são beneficiários da revolução e sim suas vítimas. Eles perderam tudo e, segundo creem, só podem ganhar alguma coisa mediante um putsch de direita ou uma guerra civil”. O artigo refere também o processo de armamento dos grupos retornados mais militantes, o seu financiamento, e as forças que os disputam – desde os exilados spinolistas às forças da direita.

Bieber afirma também que se multiplicam as ocupações de casas, terras e fábricas e acrescenta que “em muitos casos os trabalhadores proclamaram abertamente: ‘A lei não se nos aplica, a nós aplicar-se-á apenas a futura legislação revolucionária’”.

E cita os retornados que, perante este quadro, publicaram uma carta afirmando: “A esquerda traiu-nos a favor dos pretos. Não vamos tolerar que agora também traia Portugal”.
O contra-relógio para adiar a independência de Angola
O papel significativo que os retornados desempenham na agonia final da revolução reflecte principalmente o colapso dos Acordos de Alvor, o início de uma nova guerra em Angola e o consequente êxodo dos colonos. Os dois semanários que aqui analisamos tinham dado até aí muito mais atenção a Moçambique do que a Angola, embora Der Spiegel já no final de 1974 tenha referido brevemente dois factos essenciais que agora vão assumir todo o seu significado.

Em primeiro lugar, Angola é a mais rica e a mais cobiçada das três colónias portuguesas no continente africano: “Em relação à população, Angola tem um excedente de exportações triplo dos EUA”.

E, em segundo lugar, a tropa portuguesa está completamente desmoralizada, sendo que os soldados “invejam os seus camaradas na Guiné-Bissau e em Moçambique: ‘Daqui a pouco, eles estarão em casa’, dizia um soldado de guarda ao aeroporto da capital, Luanda, ‘mas quanto tempo é que nós ainda vamos ter de andar aqui às voltas?’”

No início de 1975, Der Spiegel volta a referir a desmoralização do Exército português, que é suposto conservar 24.000 militares em Angola até fevereiro de 1976, mas sendo evidente que “as tropas de Lisboa, cansadas da guerra, não parecem dispostas a deixar-se agora envolver numa guerra civil dos africanos”. Por isso mesmo, “neste momento já abandonaram as ruas de Luanda às milícias de guerrilheiros”.

Em Portugal, o Governo e a hierarquia militar sentem a necessidade de impor uma viragem abrupta que restabeleça a sua autoridade nos quartéis e que, a partir daí, lhes permita também fazerem-se obedecer em Angola. Só assim conservariam os trunfos indispensáveis para poderem ainda pesar no conflito que aí se desencadeara, impedindo eventualmente que um dos movimentos, o MPLA, proclame a independência na capital que controla.

Mas o Governo do MPLA sempre irá proclamá-la no dia 11 – o 25 de Novembro virá com duas semanas de atraso para poder impedir a proclamação da independência. E, diz-nos Der Spiegel, “ainda poucas horas antes da hora marcada para a independência, o chefe de Estado Francisco da Costa Gomes – em tempos comandante supremo das tropas portuguesas em Angola – fez uma última tentativa a favor do MPLA: convocou os ministros e os líderes partidários para uma reunião extraordinária e reclamou que o governo fosse transferido para o MPLA, de modo a evitar um vazio de poder. O primeiro-ministro Azevedo, o líder socialista Soares e o chefe social-liberal Sá Carneiro ameaçaram nesse caso com a demissão”.

O bloqueio dos três políticos citados a uma posição pró-MPLA virá depois a ser ratificado pelo Conselho da Revolução, mas isso de pouco lhes serve, porque Otelo “anunciou que iria de futuro boicotar as reuniões [do Conselho da Revolução] e enviou um telegrama de felicitações ao MPLA”.

Entretanto, também na Alemanha a polarização de forças visível em Angola e em Portugal se replica em conflitos internos do SPD. Menos de duas semanas antes do 25 de Novembro, um artigo de Gerhard Ziegler em Die Zeit refere que Willy Brandt e o seu convidado Mário Soares discursaram em comício realizado em Frankfurt e foram criticados numa carta aberta com 60 assinaturas de militantes social-democratas, acusando Soares de agitar o espantalho de um perigo comunista quando na realidade deveria estar atento ao perigo da direita.
Governo em greve: “algo único no mundo”
A quatro dias do desenlace de 25 de Novembro, Horst Bieber volta a publicar um artigo que considera a esquerda em maré de contraofensiva, após quatro semanas de recuos, e começa por realçar a derrota sofrida pelo Governo de Pinheiro de Azevedo perante o cerco de dois dias à Assembleia Constituinte pelos trabalhadores da construção civil:

“Na sexta-feira, Azevedo cedeu: o aumento salarial de 25 por cento concedido contradiz o programa económico de emergência que o Governo tinha anunciado poucas horas apenas antes do cerco. Segundo os especialistas, o resto do programa irá assim para o lixo”.
(Arquivo RTP)

Desta vez, Bieber não considera que a constatada ultrapassagem à esquerda dos sindicatos, por grupos indiferentes à gravidade dos problemas económicos, traduza uma perda de influência do PCP em prol desses grupos. Pelo contrário, o artigo elabora sobre uma convergência temporária entre PCP e extrema-esquerda, com o inconstante Otelo a virar as costas às reuniões do Conselho da Revolução e manifestações de rua a reclamarem o regresso de Vasco Gonçalves à chefia do governo.

Globalmente, traça um quadro sombrio: “O perigo de uma divisão de Portugal agravou-se. Durante o fim de semana, juntou-se na cidade portuária nortenha do Porto, um baluarte dos socialistas, uma maioria da Assembleia Constituinte, suficiente para aprovar resoluções. Os outros partidos do centro preferiram manifestar-se mais a norte. Portugal apresenta entretanto um território em faixas: centro e centro-direita no norte, socialistas no meio, comunistas e radicais no sul”.

E acrescenta imediatamente, para não deixar dúvidas: “No norte, o ambiente está a serenar nas empresas e nos campos, no sul aumenta o número de ocupações de casas, fábricas e terras”.

Com os olhos postos na “luta decisiva”, relata ainda o artigo, o Governo “ordenou a criação de uma unidade de 400 homens, ‘incondicionalmente devotados à revolução’, mesmo em casos em que tenha de actuar contra ‘forças revolucionárias’” (refere-se ao AMI, Agrupamento Militar de Intervenção).

Der Spiegel só virá a referir-se ao decisivo episódio da greve da construção com um atraso de três semanas. Em artigo já escrito no rescaldo do 25 de Novembro, recordará que a greve levou ao cerco da Assembleia Constituinte e fez do primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, durante 37 horas, um prisioneiro dos manifestantes, e obrigou os deputados a dormirem nos seus assentos (na imagem), “porque o chefe do Copcon, [Otelo Saraiva de] Carvalho se recusou a enviar as suas tropas contra os trabalhadores".
(Arquivo RTP)

A isto acrescenta: "O Governo apoiado principalmente por socialistas e social-liberais não se demitiu em consequência disto, mas entrou em greve – algo único no mundo”. Explica depois que Costa Gomes convocou o Conselho da Revolução para decidir que o comando da Região Militar de Lisboa deveria passar das mãos de Otelo para as do capitão Vasco Lourenço. E conclui: “Os moderados tinham alcançado uma vitória – mas não por muito tempo”.

O chefe de redação de Die ZeitTheo Sommer, manteve-sesilencioso durante a revolução portuguesa, mas virá a pronunciar-se a posteriori, resumindo os acontecimentos destas últimas semanas do PREC: “Álvaro Cunhal parecia apostado em voltar a tentar a tomada do poder que no princípio do ano lhe tinha escapado. O Governo Azevedo, pelo contrário, fraco e sem vontade de se impor, refugiou-se na greve. Portugal continuava a parecer uma antecâmara da democracia popular, ou uma praça de armas para o confronto militar”.
25 de Novembro: “quem manipulou quem”
Na edição de 28 de Novembro, Die Zeit volta a publicar um pequeno artigo de Bieber mais uma vez clamorosamente desactualizado: com a situação em Portugal já firmemente controlada pelo bloco novembrista, o autor relata ainda que “o Governo está em greve por não receber suficiente apoio dos militares; a cúpula militar verga-se às exigências de grupos extremistas de esquerda que controlam as ruas de Lisboa”, e assim por diante.

Para cúmulo, acrescenta ainda, “unidades de páraquedistas começaram na terça-feira a ocupar por iniciativa própria importantes posições na capital e nas estradas de acesso a Lisboa”.
(Arquivo RTP)

Na avaliação do sucedido, começa por interrogar-se: “Foi este o sinal para o começo da guerra civil?” E prossegue: “O bom senso e o sentido de responsabilidade demitiram-se em Portugal. Sem destino e sem direcção, o país encaminha-se para o caos económico e político”. E novamente o refrão de vários anteriores artigos seus: “A situação pede a gritos um homem forte. Seja ele quem for: a luta pela liderança ameaça tornar-se dura ou mesmo sangrenta”.

Der Spiegel, mais uma vez beneficiado pela sua data de publicação, é o primeiro de ambos a discorrer sobre a revolta dos páraquedistas no 25 de Novembro e seu desenlace - sem calar um sarcasmo nem ocultar um certo desdém: “Visto de fora foi quase um golpe de opereta, e no entanto ele tem alguma coisa de tragédia. Porque a acção desesperada dos radicais de esquerda - contra um Governo que lhes parece de direita, embora esteja mais à esquerda que a maioria dos outros governos da Europa ocidental – empurra Portugal para o caos político”.

O artigo interroga-se também sobre “quem aqui manipulou quem”, confessando a sua incapacidade para dar à pergunta uma resposta categórica. Isto porque, acrescenta, “o Partido Comunista, cujo apoio os rebeldes sem dúvida esperavam – ou que foram por ele mandados para a frente – demarcou-se na terça feira da tentativa de golpe com um comunicado: ‘As forças de esquerda cometem um erro grave se sobrestimarem o seu poder e se deixarem arrastar para uma acção desesperada’”.

Refere também de passagem a detenção de 65 oficiais e sargentos de esquerda, a destituição de Otelo e Fabião, e a dissolução do Copcon, mas logo acrescenta que, “com isso, o perigo de uma ulterior confrontação armada não está de modo algum esconjurado. Porque as linhas da frente da revolução lusitana mudam constantemente e de forma desconcertante”.

Exemplo disso são os páraquedistas de Tancos, agora sublevados contra o Governo dos “moderados” e que eram considerados até pouco tempo antes uma tropa de elite, de mentalidade conservadora.
A "hora dos políticos"
Na primeira edição de Dezembro, um artigo de Bieber em Die Zeit comenta enfim o desfecho do 25 de Novembro como uma “derrota total dos putschistas”, que identifica como “páraquedistas de extrema-esquerda, unidades da polícia [refere-se ao Regimento de Polícia Militar] e regimentos de artilharia”. Espera-se que essa derrota ponha fim ao “oscilar desgastante entre os extremos de esquerda e de direita, que depois de divergências ruidosas mas incruentas acaba sempre por se resolver no último minuto a favor dos mais sensatos”.
(Arquivo RTP)

O bom senso finalmente vencedor, sustenta Bieber, só uma vez se viu derrotado durante a revolução: quando o MFA decidiu exercer ele próprio o poder, para garantir a transição socialista à portuguesa.

No sucessivo, o movimento dividiu-se, caiu o Governo de Vasco Gonçalves sob a pressão da rua, recuaram os comunistas e seus simpatizantes militares e tudo isto deu a radicais pró-maoistas e pró-castristas, ainda segundo Bieber, a oportunidade para tomarem a dianteira no combate ao Governo com as consequências expectáveis: “Desobediência assumida a ordens do Governo e apoio descarado à populaça dominante nas ruas de Lisboa por um triz não os levaram ao seu objectivo”.

Mas, logo acrescenta também, o Governo acabou por reagir com dureza no último instante: “Tropas leais ao Governo sufocaram, com o preço de quatro vidas humanas, a tentativa de rebelião de unidades da esquerda radical”. Depois de serem detidos ou despojados de poder os oficiais comprometidos, os comunistas demarcaram-se da intentona, mas ainda assim perderam influência e posições, nomeadamente na imprensa.

O slogan do momento é o “socialismo em liberdade” mas, admite Bieber, “o surpreendente sucesso dos moderados não teria sido possível se não se tivesse posto ao seu lado um grupo de oficiais até agora silencioso: a geração dos militares profissionais mais antigos, que vinha observando a dissolução das Forças Armadas e o colapso de toda a autoridade com um irado ranger de dentes”.

E conclui profetizando que o próximo confronto será entre os militares e os políticos, com tudo para que estes ganhem, porque “os oficiais aperceberam-se dolorosamente dos limites das suas capacidades. Os políticos têm novamente uma oportunidade – e com eles a liberdade e a democracia”.

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