Morrer com dignidade

A dignidade é o que nos resta quando nos tiram tudo. É um acto consciente e corajoso que não depende da vontade dos outros. Se perdermos tudo na vida, do ponto de vista material, afectivo e familiar, resta-nos sempre a dignidade, ou seja, a forma como encaramos as coisas e os outros.

A dignidade manifesta-se sempre que conseguimos manter as nossas crenças, princípios e valores, contra tudo e contra todos e mesmo nas condições mais difíceis. É para isso que foi inventada a tortura, para vergar a vontade do que conseguem manter a dignidade mesmo nas piores circunstâncias, coisa insuportável para verdugos e ditadores, sabedores de que nunca conseguiriam suportar tamanhas privações na sua pequenez de espírito e de atitudes mesquinhas num vale tudo para adquirir e manter privilégios e poder. 

É também para vergar a dignidade das pessoas que existe o bullying, a perseguição reiterada de alguém para que perca aquilo que tem de mais valioso e que incomoda pessoas sem o mínimo de qualidade moral e intelectual, incrédulas com o brilho ou sucesso de alguém. Às vezes com a simples presença que ilumina uma sala ou um local de trabalho, sem que a pessoa em causa tenha de pronunciar uma única palavra.

A dignidade é um acto consciente, que norteia a vida da maior parte das pessoas, e todas reclamam o direito a viver com dignidade, mas nem todas compreendem que existe o mesmo direito na morte. Existe, por muito que isso possa violar os preceitos judaico-cristão de respeito pela vida como direito que não é nosso, mas que nos foi atribuído de forma divina e que por isso temos de perservar suportando as mais dolorosas privações em nome da vontade de Deus - tantas vezes invocada em vão e de forma incorrecta. 

Além disso está consagrado na Constituição da República Portuguesa que a vida é um direito inviolável. Isto vale em relação à vida dos outros, mas não está escrito que cada um de nós não pode decidir o que fazer com a sua própria vida. Se alguém está num estado de saúde de tal forma doloroso que lhe provoca um sofrimento insuportável, se não tem esperança de cura e quer abreviar as privações por que passa deve ter direito a escolher o momento em que põe termo à vida de forma digna. Terá de o fazer de forma consciente, informada e depois de o reafirmar sem dúvidas para ninguém. 

A lei portuguesa fala de "homicídio a pedido da vítima" e pune esta atitude, que considera criminosa, com uma moldura penal que pode ir até aos três anos de prisão. Sendo esta uma questão de consciência, de liberdade individual, pessoal e intransmissível, não entendo que seja tipificada como crime pela lei portuguesa a não ser para proteger as pessoas de tentativas de homicídio mascaradas de ajudas à morte assistida. Há ainda questões morais que devem ser respeitadas, e o código ético e deontológico da prática médica, que por definição existe para salvar vidas.

O referendo é a forma habitual utilizada por quem não se quer comprometer em questões fracturantes e não deve ser um expediente usado neste caso. Porque este é um direito fundamental, e os direitos fundamentais não se referendam. Porque a esmagadora maioria das pessoas nunca terá de passar por isso, felizmente, e estará a decidir em relação a uma circunstância que nunca saberá avaliar com rigor. Porque nestas coisas é fácil manipular a opinião pública com argumentos que tentam incutir nas pessoas sentimentos de culpa se decidirem de uma determinada forma, contra ou a favor. Porque um referendo em relação a uma questão como esta iria mobilizar apenas as pessoas mais radicais de ambos os lados, e teríamos uma imensa minoria a decidir em nome de uma maioria. 

Os referendos são válidos e devem ser feitos em questões que afectam as pessoas de uma forma geral e universal, em questões que são possíveis de se verificar no dia a dia de cada um de nós, e não de forma remota como - felizmente - creio que será este o caso.

Posto isto, deve investir-se em cuidados paliativos e garantir que esta é a primeira solução nos casos de pessoas a quem a doença ditou uma sentença de morte num curto ou médio prazo em condições de grande sofrimento e com uma degradação visível e acelerada das capacidades físicas e psicológicas.

Num país em que se avançou nos últimos anos em direcção ao respeito pelos direitos individuais ainda há muito a fazer nesta matéria, e não é com referendos que se avança, mas antes com um amplo debate, sério e honesto. Basta ouvir qualquer fórum de rádio, e a descrição de experiências na primeira pessoa, doentes e familiares, para perceber que o direito a morrer com dignidade não é apenas indiscutível, é urgente. 

E aos que defendem que não temos o direito de tirar a vida a ninguém, eu pergunto, e temos o direito de condenar essas pessoas a uma morte horrível e degradante, sabendo nós que podem sempre optar pela recusa de tratamentos ou pelo suicídio?

pub