Há bestas por toda a Península Ibérica

Em Portugal chamam-lhe violência doméstica. Em Espanha, estes crimes hediondos são enquadrados na violência machista ou violência de género. Dá igual, a designação muda, mas as bestas são as mesmas, tal como a inaptidão do Estado, do sistema de Justiça, a lentidão das autoridades, o desmazelo dos amigos e vizinhança. Não resisto… logo hoje que ia escrever sobre "A gravata de Pablo Iglesias".

Que drama tão grande, que dor do tamanho do mundo… a tragédia de Caxias. Uma mulher, aparentemente no cúmulo do desespero, age como um animal encurralado para fugir de uma besta. Agora, todos estão preocupados. Todos falam. Nas televisões sucedem-se entrevistas a psicólogos, psiquiatras, associações de apoio à vítima, assistentes sociais... É um "ai jesus" podre, mesquinho, que apenas vai durar enquanto der audiências, para logo se calar até que, de novo, se repita. Tudo isto é animalesco. Da atitude da mãe, que tenta pôr cobro a uma vida que deixou de o ser, abraçada às suas crias, à reação dos abutres, que se aproveitam da desgraça alheia para encher a barriga, e das hienas do "sistema", que andam à volta.

Em Espanha todos os dias se sucedem notícias semelhantes. As mais frequentes são as que dizem respeito à morte de mulheres às mãos de sus parejas. Assassinadas como caça, por pessoas que antes lhes juraram amor eterno… ou melhor, até que a morte os separe. Disso trataram eles.

Aqui no país vizinho, só este ano, ou seja, em 49 dias, já morreram 10 mulheres vítimas de violencia de género. Basta uma visita fugaz, uma análise rápida ao portal do Governo de Espanha que contem dados sobre este tipo de violência, para estremecer com os números: 54 mulheres assassinadas em 2013; 54 mulheres assassinadas em 2014; 59 mulheres assassinadas em 2015. Destes 167 casos, apenas 41 tinham sido alvo de denúncia, a esmagadora maioria por parte das vítimas, e só 12 tinham medidas de proteção em vigor (desde 2013, em Espanha, foram assassinadas 14 crianças, aquando da morte das mães). Mesmo assim, de nada lhes valeu. Tiveram o fim trágico dos outros.

As autoridades espanholas e a sociedade civil desdobram-se em ações para lutar contra as bestas (peço desculpa a quem ficar chocado com a expressão, a mim não me ocorre qualquer outra, melhor), mas não chega. Há linhas de apoio, páginas na internet, projetos com cães treinados para dissuadir os agressores ou ajudar os menores vítimas de violência doméstica a ventilarem emoções e aumentarem a autoestima.

A esmagadora maioria das vítimas sofre em silêncio. A dor da alma, o fracasso de uma relação abençoada, a preocupação pelo futuro dos filhos, a dependência económica, a repreensão dos familiares, o murmúrio dos vizinhos, o recomeçar do zero com o pavor de uma perseguição… tudo isto dói mais do que outra sova, um enxovalho dentro de quatro paredes ou uma guerra psicológica sem fim.

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara" (Ensaio sobre a Cegueira) e age, acrescento eu às palavras de Saramago.

Enquanto a sociedade continuar com esta "cegueira branca", sem ouvir gritos silenciosos, sem se preocupar verdadeiramente com o que se passa na casa ao lado, à espera de uma denúncia, de provas… tudo é primitivo. Um animal acossado esconde-se. Quanto às bestas, vão continuar por aí.

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